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Facebook: pensar antes de usar

Image credits: Jaya Nicely.

O que Zuckerberg não gosta é que alguém questione, não exactamente a legitimidade do seu negócio, mas as implicações práticas, simbólicas e políticas do Facebook. Comporta-se mesmo como um fabricante de automóveis que, socorrendo-se de uma verdade insofismável – todos os cidadãos tiram ou podem tirar gratificantes vantagens dos veículos fabricados – recusasse qualquer tipo de responsabilidade na poluição do planeta.

João Lopes, Sound + Vision: Amigos e inimigos do Facebook, 2014-11-14.

A todos os homens é dada a chave dos portões do céu. A mesma chave abre os portões do inferno.

Richard Feynman, The Meaning of It All: Thoughts of a Citizen Scientist, 1998.

No final do ano passado o Facebook contava com cerca de 1230 milhões de utilizadores activos, dos quais 757 milhões acedem à rede social todos os dias.

A esta realidade somam-se outros dados relevantes: uma sondagem ao universo de cidadãos norte-americanos permite-nos saber que 64% dos adultos utilizam o Facebook e, destes, metade utiliza o site como fonte de acesso a notícias – o que corresponde a um terço daquela população.

Um olhar mais detalhado aos números permite-nos concluir que apenas uma parte (38%) deste último grupo afirma considerar o Facebook como fonte principal de informação. Importa no entanto ter em conta que estamos perante um fenómeno tendencialmente crescente e que o número de utilizadores que tem nessa página o veículo central de acesso a notícias aumenta à medida que vamos considerando a população mais jovem.

O peso do Facebook como fonte de tráfego dos sítios web de meios de comunicação é assim cada vez maior e tem influência na própria produção dos conteúdos jornalísticos. Os artigos tendem a ser escritos e intitulados tendo presente a repercussão potencial que vão ter na internet e, em particular, nas redes sociais. A título de mero exemplo, publicar que [Angela] Merkel diz que Portugal tem demasiados licenciados não é o mesmo que referir que Angela Merkel defende aposta no ensino técnico especializado – sendo a última asserção mais próxima do justo relato dos factos.

A verdade é que o Facebook vem contribuindo para uma progressiva e persistente degradação do jornalismo ou, pelo menos, de algumas formas de jornalismo que vão ganhando visibilidade ao recorrer a processos de apelo ao sensacionalismo e à emoção.

O problema decorre, em primeiro lugar, dos mecanismos de funcionamento do próprio Facebook. Com a perda de expressão dos blogues, as principais páginas da internet abandonaram o célebre formato cronológico-invertido para adoptarem algoritmos automáticos de valorização de conteúdos tendo por base o número de “gostos”, comentários e partilhas. Ao impulsionar esse modelo de publicação, o Facebook está efectivamente a retirar aos utilizadores o controlo sobre aquilo que vêem.

O resultado é uma rede que valoriza o que é mais popular mas despreza a unicidade daquilo que é especial. As distorções surgem pela prevalência de conteúdos mais apelativos e populares, favorecendo o clickbait e desvalorizando histórias com mais conteúdo e melhor qualidade. Como consequência, o público deixa de ver muitas coisas publicadas pelos seus contactos ou pelas páginas que os utilizadores estão voluntariamente a “seguir”.

O caso torna-se ainda mais controverso quando o algoritmo do Facebook valoriza outras páginas e outras publicações mediante o seu próprio sistema de monetização. Como seria de esperar, os posts pagos são considerados preferencialmente na escala de relevância, ganhando maior visibilidade.

O ecossistema que resulta desta conjugação de populismo e publicidade tem dado lugar a sites de pseudo-notícias que abandonaram qualquer referência de ética de conteúdo, tendo por fim alcançar o máximo retorno financeiro possível. Quanto mais escandaloso ou sensacional for o título, mais provável será a hipótese de receber “gostos” e partilhas. Para essas páginas o único objectivo é alavancar as suas visualizações – sendo certo que quantas mais visualizações obtiver, mais será o revenue alcançado por via da publicidade.

Mas se é verdade que o Facebook é o principal catalisador deste processo, a responsabilidade última impende sobre os utilizadores que adoptam a rede social como meio de acesso priviligiado a notícias e se submetem acriticamente aos seus processos de selecção automática.

Acompanhando o desvanecer da cultura blogue, muitos dos novos internautas deixaram de construir os seus próprios canais de recolha de informação através de feeds criteriosamente seleccionados, para passarem a ter nas plataformas pré-formatadas das redes sociais a sua principal experiência web. Ao fazê-lo, os utilizadores estão a abdicar da possibilidade de tornar a internet numa poderosa fonte de informação seleccionada e editada por si, para mergulharem num mundo caótico de sensacionais irrelevâncias e conteúdos pagos, sem critério e sem fim.

O resultado último é uma desqualificação da experiência pessoal, tornando a cultura web e o jornalismo refém das regras impostas por corporações privadas com os seus algoritmos e prioridades publicitárias.

Como quase tudo o que envolve a evolução da tecnologia o Facebook é uma plataforma com enorme potencial, tanto para o bem como para o mal. Cabe a cada um construir a sua rede de conteúdos ou ser vítima das regras impostas pela própria rede. No entanto, num mundo em que a internet será absolutamente intrusiva para as próximas gerações, parece estar ausente de qualquer discussão social a necessidade de uma educação para a vida online. Como tudo aquilo que evolui "por defeito", as tendências que estão já no terreno não permitem acalentar grandes esperanças.

Editorial: todos os clics são bons?



O formato blog, com as suas características próprias, partilha regras que se inscrevem na tradição mais longa de outras formas de comunicação escrita. Os seus conteúdos repartem-se, de modo geral, por entre três tipologias principais.

Podemos considerar, em primeiro lugar, a simples divulgação ou partilha de notícias tendo por base um comunicado ou uma fonte de informação, incluindo, por exemplo, uma outra página da internet. Este tipo de post corresponde àquela que foi uma das grandes funções iniciais dos blogues: a função de apontador de informação seleccionada “manualmente” pelo autor-blogger, antes da prevalência dos algoritmos automáticos de atribuição de importância com base nos likes, no número de comentários ou de partilhas de um link.

O post de divulgação mantém ainda hoje uma grande utilidade para os leitores dando a conhecer acontecimentos relevantes e os sítios onde estes poderão encontrar informações mais detalhadas. São também os conteúdos mais rápidos de produzir. No entanto, são posts que colhem, em geral, pouco tráfego, atraindo poucos comentários e poucas ligações subsequentes.

No extremo oposto da mera divulgação temos o texto de desenvolvimento ou mesmo o ensaio crítico. Trata-se de um conteúdo elaborado, com referenciação de múltiplas fontes, que contém trabalho de investigação e análise aprofundada dos temas. São certamente os textos mais recompensadores para quem lê mas consomem um tempo considerável de preparação. Por outro lado o esforço da escrita assertiva e equilibrada nem sempre é recompensado com um retorno visível da parte dos leitores.

Entre estes dois tipos de post temos aquele que é o conteúdo mais popular: o texto de opinião. Apesar de demorar um pouco mais tempo a compor do que a mera divulgação tem a vantagem de requerer uma única fonte – o próprio autor – e a sua capacidade de exprimir um ponto de vista com argumentos suficientes para ocupar o necessário volume de texto. Basta juntar um título apelativo e os clics começam a rolar.

O blogger responsável poderá sentir algum pudor na publicação de textos de opinião rápidos e irreflectidos. No entanto a experiência continuada mostra que, para obter sucesso na internet, não importa sequer se se tem razão nos argumentos. Na verdade, se o número de visualizações de um blogue é medida de sucesso, por vezes até pode ser preferível estar errado. Em especial se estiver em causa o retorno financeiro em função do tráfego online.

Qual julgam ser afinal o conteúdo mais popular: aquele texto reflectido, equilibrado, que abraça a complexidade de um determinado tema, ou o texto condescendente, unidimensional e até, talvez, factualmente incorrecto, mas capaz de deixar os leitores em brasa na caixa de comentários e nas redes sociais?

Para os contadores de páginas não há distinção entre clics bons e maus. Não há sistema que diferencie entre os leitores que partem felizes e os que voltam em estado de fúria. Na internet dos números o que importa é que os posts sejam visitados, gostados e partilhados. E para isso é preciso escolher um lado – e fazê-lo rápido.

Talvez para o autor de um blogue a decisão mais importante que terá de tomar reside no conteúdo e na forma da sua escrita, tendo em conta estes vários tipos de publicação. Para os que desejem aventurar-se no mundo mais denso das ideias a blogosfera irá revelar-se tantas vezes um aparente deserto, inóspito e inaudível. Em especial num país onde o mérito dos argumentos não tem correspondência com a sua qualidade objectiva mas com o prestígio das pessoas que os subscrevem. Ah, as massas da internet, sempre tão argumentativas, tão fáceis de caricaturar, tão fáceis de marginalizar, tão fáceis de ignorar.

Mas se não queremos fazer da internet um pântano de posts que “vos vão fazer chorar”, talvez valha a pena resistir nesse trilho mais solitário da escrita. Algures, afinal, estará alguém. A ler.

À espera que o longo prazo nos caia em cima

Image credits: Matias Santa Maria.

Daqui a uma década teremos uma geração, agora na casa dos vinte anos de idade, a meio dos trinta e rapidamente a caminho dos quarenta, confrontando-se com o facto de que a vida lhe passou ao lado. Muitos destes portugueses nunca terão conhecido um emprego estável, transitando entre estágios pouco relevantes e contratos precários, remunerações baixas e uma perspectiva de futuro esvaída de qualquer previsibilidade.

Que cultura social será produto desta realidade? De que forma encarará esta geração conceitos como paternidade ou solidariedade inter-geracional? E em que ideologias e actores políticos se irá rever esta nova geração de portugueses? Como se transformará então o sistema político?

Este não é um problema do médio ou do longo prazo. Este possível futuro resultará de factores que estão já em efeito no nosso presente. Fragilização das regras laborais. Redução do rendimento do trabalho. Desemprego. Emigração. Baixa natalidade. Perante este quadro, esta conjugação perigosa de variáveis, dificilmente podemos ignorar que estamos perante um dos principais problemas que a nossa democracia alguma vez enfrentou.

No entanto o debate corrente sobre a situação portuguesa é trazido quase todos os dias para uma discussão pedestre, do curto prazo. Desprezando uma observação ampla dos problemas somos entretidos com o desfile selectivo de índices parcelares, variações homólogas, dados que permitem extrair todas as conclusões possíveis.

Pior ainda quando as teses de políticos e comentadores são apresentadas com formato aparentemente científico, como se de verdades indiscutíveis se tratassem. Disso exemplo é o discurso da inevitabilidade promovido por governantes e sustentado por alguns especialistas da área do jornalismo económico. Uma verdade é tão mais científica quanto mais vasto for o conjunto das variáveis consideradas. Quando essa verdade se formula a partir da observação selectiva de meia dúzia de variáveis mais não é do que uma refinada mentira, por mais académico-científica que seja a sua formulação retórica; sendo certo que a melhor mentira é aquela que contém o máximo de verdade possível nos argumentos que a sustentam.

Circunstância contraditória ao ouvirmos abordar temas de médio e longo prazo, como o debate recente sobre natalidade, como logo se levantam ideias políticas diametralmente opostas daquelas que nos têm sido impostas nos últimos anos como sendo inevitáveis. Em boa verdade o discurso da inevitabilidade não parece ter já outro alcance que não o desejo de manter a opinião pública num patamar pedestre de pensamento, junto ao chão, sem vislumbre do horizonte. Não se trata de ignorar a importância de questões tão sérias como o rigor na gestão das contas públicas e na aplicação dos dinheiros do Estado. Trata-se apenas de reconhecer que, perante a gravidade histórica que nos apresenta a prospectiva do futuro próximo, saber se vamos cumprir a meta do défice deste ano é o menor dos nossos problemas.

Uma década de A Barriga de um Arquitecto

Comecei a escrever este blogue, há dez anos, com uma citação de Richard Feynman: Podemos saber o nome de um pássaro em todas as línguas do mundo, mas no fim, não sabermos nada sobre esse pássaro... Por isso, vamos olhar para o pássaro e ver o que ele está a fazer – é isso que interessa. Eu aprendi bem cedo a diferença entre saber o nome de algo e saber algo.

Sempre me intrigou a forma como construímos as nossas ideias. Aquele lugar por defeito de onde todos partimos com as nossas certezas, tudo aquilo que pensamos saber, tudo aquilo que lemos algures, e de como todas essas certezas nos afastam do mundo. Recordo outra das citações favoritas deste blogue, uma passagem de Terre des Hommes de Exupéry, que mais depressa nos ensina a terra do que todos os livros. Porque nos resiste.

Não sei se escrevo bem, tantas são as vezes em que tropeço nos meus próprios erros, mas sei que escrevo muito melhor do que há dez anos. Hoje não publicaria mais de metade dos textos de então. Hoje não pensaria sequer as mesmas coisas. O blogue mudou-me, e a vida com ele, e com o passar dos anos tornei-me blogger.

Em tempos pensei na vergonha que seria estar ainda a fazer isto a anos de distância. Hoje imagino que se me deixarem um tablet nas mãos estarei, daqui a umas quantas décadas, a blogar, ou talvez já a youtubar, do lar. Com ou sem retorno, com mais ou menos leitores. Se os blogues existem para estabelecer ligações, aprendi também que não existem para chegar a toda a gente. O público que importa é uma pessoa apenas.

Por fim, se existiu um fio condutor nestes dez anos de escrita foi a vontade de traduzir pelas palavras um olhar lúcido sobre as coisas. Falhei redondamente, tantas vezes. Mas o blogue ensinou-me a desconstruir todo um modo de falar, escrever e, acima de tudo, pensar, que se cola a nós como uma segunda pele na passagem pelos corredores da academia. Por vezes, não há maior inimigo da arquitectura do que as palavras.

Eleições à Ordem dos Arquitectos – reestruturação financeira, o tema ausente



As eleições para o mandato 2014-2016 dos órgãos sociais da OA têm lugar num momento particularmente importante da sua história. O orçamento anual da Ordem, resultante do contributo dos seus associados, encontra-se no início de uma curva descendente. Esta circunstância de declínio é particularmente dramática porque resulta de conjunto de alterações estruturais na sua orgânica financeira. No entanto, pese embora a gravidade da situação, o tema parece de todo ausente dos programas das (poucas) listas candidatas.

Verificam-se actualmente diversos fenómenos relevantes na vida da associação. O número de admissões de novos membros começou a decair, situação que tenderá a agravar-se com a diminuição de vagas preenchidas no curso de arquitectura. Por outro lado, o número de pedidos de suspensão de inscrição tem vindo a aumentar significativamente. Segundo os dados divulgados recentemente pela Ordem esta situação exprime uma diminuição real da classe activa, tendo em conta que o número de suspensões é já superior ao número de admissões. O mesmo facto é corroborado pelo decréscimo de certidões requeridas pelos membros.

Estamos assim à beira de um novo ciclo da história da Ordem dos Arquitectos, um tempo que assinala o fim de um paradigma de crescimento orçamental continuado. A isto corresponde também uma transformação profunda da sociologia da profissão. Em uma década, os arquitectos passaram da geração 1000 euros para a geração 700 euros, abeirando-se agora para rendimentos pouco acima do salário mínimo. Assistimos afinal ao deflagrar de um conjunto de factores dramáticos, entre a saturação do mercado de trabalho e o colapso da economia da construção.

Significa isto que o horizonte futuro, independentemente do panache social da profissão de arquitecto, confronta a Ordem com um cenário de representação de uma classe profissional rapidamente a caminho da classe média-baixa. Perante isto, num tempo de “aguenta-aguenta”, a mal fadada actualização de quotas mais não fará do que sublinhar o derradeiro incentivo à suspensão de muitos associados que suportam, já com dificuldade, o actual valor de quotização, alavancando negativamente o rácio entre suspensos e novos inscritos.

O novo mandato que agora se incia é, forçosamente e por todas estas razões, o mandato da reestruturação financeira. O atrofiamento inevitável dos recursos financeiros da Ordem irá ditar essa necessidade e obrigará a tomar decisões difíceis. Este é o tema mais importante que envolve o presente acto eleitoral. A questão, no entanto, não é sequer abordada nos programas das listas candidatas.

Entre o enunciar de lugares comuns, ideias tantas vezes repetidas e chavões despidos de significado ou consequência, o silêncio em torno deste problema revela inconsciência, falta de vontade e determinação para enfrentar uma conjuntura tão difícil. Certo é que não haverá forma de o evitar. Ou as futuras direcções lideram este processo, tomando medidas inéditas, por ninguém desejadas, mas fundamentais, ou seguirá a reboque das circunstâncias.

Está em causa um debate profundo e urgente em torno da defesa da missão essencial da Ordem dos Arquitectos, que reflectisse seriamente sobre muitas das suas actividades secundárias, sobre a sua orgânica regional, sobre a estrutura patrimonial e outras áreas com relevante impacto financeiro. É esse debate que teima em não existir.

Quotas – mais do que uma questão jurídica, uma questão política

O recente comunicado do Conselho Directivo Regional do Sul da Ordem dos Arquitectos sobre os processos de cobrança coerciva levantados a um número expressivo de associados permite conhecer em detalhe o enquadramento jurídico da questão mas falha naquilo que deveria ser uma leitura política do problema.

A Ordem dos Arquitectos é uma associação profissional. Representa pessoas. Tem, aliás, o dever de representar, em primeiro lugar, aqueles que na nossa profissão se encontram em situação de maior vulnerabilidade em consequência de crise que estamos a viver.

De uma empresa de seguros, de telecomunicações, de energia, não esperaremos outra coisa que não seja o trato escrupulosamente jurídico junto dos seus clientes, na defesa do seu interesse próprio – e, mesmo nesse contexto, trata-se de uma actuação tantas vezes criticável. Mas de uma associação representativa de uma classe profissional temos o direito de esperar e exigir mais.

Poderemos defender que a ausência de uma cláusula no regulamento de quotas contemplando a suspensão automática dos associados, em caso de falta de pagamento muito prolongada, constitui uma falha desse documento. Uma falha pela qual os associados não devem ser penalizados, em particular quando estão em causa situações de acumulação de dois, três e mais anos de dívidas.

Mas, acima de tudo, a questão é eminentemente política. Não basta dizer que a OA é sensível à actual conjuntura socioeconómica dos seus membros, é preciso traduzir essa sensibilidade em factos tomando decisões que atestem a excepcionalidade desta conjuntura.

A decisão de processar colectivamente associados nesta situação revela insensibilidade e falta de vontade política para encontrar, em tempo útil, soluções alternativas. É chocante ver a Ordem utilizar a força dos seus recursos institucionais para confrontar aqueles que se encontram numa situação mais vulnerável. Esta actuação é um erro que nada mais faz do que contribuir para a sensação de distanciamento que muitos arquitectos têm já para com a sua instituição – um facto que a Ordem não deve de todo ignorar e de que poderão vir a resultar consequências ainda mais graves no futuro.

Por todas estas razões, deve a Ordem dos Arquitectos promover uma resposta rápida à situação entretanto criada, desistindo destes processos judiciais, declarando a suspensão da inscrição destes associados e amnistiando estas dívidas acumuladas. Porque os fins não justificam todos os meios.

Quotas – Comunicado da Ordem dos Arquitectos

O Conselho Directivo Regional Sul da Ordem dos Arquitectos publicou o seguinte comunicado sobre a questão das quotas. Segue-se a redacção, que pode ser igualmente lida e descarregada aqui.

QUOTAS – COMUNICADO AOS MEMBROS

Na sequência de um conjunto de notícias recentemente publicadas nos media e do consequente impacto destas nas redes sociais, referente à metodologia de cobrança de quotas aplicada pela Ordem dos Arquitectos - Secção Regional do Sul (OA-SRS) cumpre-nos, a título de esclarecimento, informar, por este meio, os nossos membros do seguinte:

A OA-SRS contacta trimestralmente com os arquitectos que têm a sua situação de quotização por regularizar através de todos os meios que tem ao ser dispor (carta, telefone e e-mail), que são fornecidos pelos próprios e da sua responsabilidade manter actualizados. Quando a dívida é superior a uma quota anual, o processo é remetido para o Conselho Regional de Disciplina do Sul para que este órgão actue em conformidade com o Estatuto da Ordem dos Arquitectos (EOA) e demais regulamentos.

De acordo com o Regulamento de Quotas em vigor, no seu artº 5º | Consequência do Não Pagamento de Quotas, lê-se:

1. O Membro Efectivo que não proceda ao pagamento atempado do valor da quota fica obrigado à liquidação dos respectivos juros de mora, calculados à taxa supletiva legal.

2. O Membro Efectivo que tiver em falta o pagamento de uma prestação trimestral não tem direito a:

1. a) Receber as publicações da Ordem;

2. b) Beneficiar dos serviços prestados aos Membros Efectivos da Ordem que se mostrem condicionados ao pagamento pontual da quota.

3. Sem prejuízo do processo de cobrança coerciva, o respectivo Conselho Directivo Regional deve participar disciplinarmente junto Conselho Regional de Disciplina competente do Membro Efectivo que tiver em falta o pagamento de quatro prestações trimestrais da quota.

Esgotadas todas as tentativas de celebração de acordo de pagamento faseado para regularização da dívida, e atingidas pelo menos 3 quotas anuais por regularizar, não existe outro recurso legal para a OA-SRS actuar que não seja a resolução por via contenciosa.

No ano de 2013, dos cerca de 3.500 processos de dívida em curso na OA-SRS, 380 avançaram para contencioso e 97 terminaram, inevitavelmente, em execução. O processo contencioso inicia-se com um contacto por parte do advogado, numa tentativa última de acordo entre as partes. A todo e qualquer momento do processo, caso não esteja a exercer os actos próprios da profissão, o arquitecto pode solicitar a suspensão da sua inscrição na Ordem dos Arquitectos (OA), evitando a acumulação de dívida.

O EOA e demais regulamentos em vigor não permitem a suspensão de inscrição de um arquitecto por decisão unilateral da OA, por motivos de não pagamento de quotas. A aceitação do pedido de suspensão é deferido pela OA a pedido do próprio arquitecto, caso não esteja a exercer os actos próprios da profissão.

A quota anual da OA é de 190,00€. Este valor não é alterado desde 2004. A referida quota pode ser liquidada anual ou trimestralmente e mediante a modalidade de pagamento que optem, os arquitectos podem beneficiar de diversos descontos (10% no pagamento em tranche única - 171,00€/ano, ou 5% no pagamento por débito directo -180,50€/ano)). Além disso, de acordo com o actual Regulamento de Quotas, durante os primeiros cinco anos de inscrição na OA, os arquitectos beneficiam automaticamente de um desconto de 20% na quota anual (152,00€/ano).

Anualmente, em Assembleia Geral, é apresentado o Orçamento geral para o ano seguinte, bem como o relatório de contas do ano anterior desta instituição. Nestes actos públicos, os arquitectos presentes apreciam e votam os documentos nos quais se espelha a actividade da OA no âmbito nacional e regional. Posteriormente, estes documentos são disponibilizados em todos os websites da OA para que os membros os possam consultar.

Analisando os últimos anos de actividade, no que se refere à OA-SRS, verifica-se a seguinte evolução:

- o número membros efectivos com inscrição activa aumentou de 9.352 em 2010 para 10.386 em 2013;

- o número de admissões de novos membros reduziu de 430 em 2010 para 306 em 2013;

- o número de Arquitectos Estagiários reduziu de 463 em 2010 para 414 em 2013;

- o número de pedidos de suspensão de inscrição em 2010 foi de 304 e em 2013, até dia 1 de Dezembro de 2013, foi de 617. Actualmente, existem um total de 2.558 arquitectos com a inscrição suspensa na OA-SRS, dos quais 294 têm a situação de quotização por regularizar;

- dos actuais 10.386 membros efectivos com a inscrição activa, 3.233 encontram-se com a situação de quotização por regularizar;

- a soma dos custos estruturais teve uma redução de 20% de 2010 para 2013.

Verifica-se o aumento do número de membros, a par com a diminuição do número de admissões e arquitectos estagiários. Assiste-se hoje em dia a uma diminuição da classe activa, dado que o número de suspensões é superior ao número de admissões. Com base neste cenário, e considerando que servir um elevado número de arquitectos implica um reforço dos meios humanos e tecnológicos disponíveis, as direcções da OA-SRS, ao longo destes últimos anos, têm desenvolvido todos os esforços ao seu alcance na procura constante de uma maior eficiência e menor despesa no seu funcionamento, regulando a profissão, defendendo a arquitectura e servindo os arquitectos.

Interessa-nos estimular o debate de ideias e a discussão em torno de todos os temas que afectam os arquitectos e arquitectura. Como é do conhecimento de todos os Arquitectos, encontra-se em curso o processo de revisão do EOA e, consequentemente, a revisão dos demais regulamentos, incluindo o de quotas.

A OA-SRS, sensível à actual conjuntura socioeconómica dos seus membros, da crise que o sector da construção atravessa e que afecta directamente os arquitectos e a arquitectura, tem defendido a urgente revisão do EOA e demais regulamentos. Acreditamos que, num futuro próximo, este objectivo será alcançado, salvaguardando a integridade económica dos seus membros, na certeza que continuaremos a contribuir com a nossa posição junto do Conselho Directivo Nacional, órgão responsável pela revisão e aprovação deste tipo de documentos.

No imediato, e no enquadramento hoje possível, a OA-SRS tem tentado encontrar, dentro das obrigações a que está legalmente sujeita, soluções no sentido de minimizar o impacto que a situação de incumprimento acarreta, seja para o arquitecto, seja para a sustentabilidade económica e financeira da instituição.

O Conselho Directivo Regional do Sul

Ordem dos Arquitectos penhora por quotas – uma opinião


Segundo a Ordem dos Arquitectos Portugueses “dos cerca de 3800 processos de dívida, 97 terminaram, inevitavelmente, em execução”.

A Ordem dos Arquitectos tem em curso 259 acções judiciais por falta de pagamento de quotas, das quais 97 terminaram em execução de penhoras de salários e bens. No total, o número de processos de dívida dos associados ascende aos 3800 casos. A notícia, publicada pelo Correio da Manhã no passado dia 7 de Novembro, foi partilhada e comentada nas redes sociais por vários arquitectos, motivando a emissão de um esclarecimento formal da parte do Conselho Directivo Regional Sul da OA (disponível na íntegra aqui). No essencial, a declaração expõe o seguinte:

A OA-SRS contacta trimestralmente com os arquitectos que têm a sua situação de quotização por regularizar através de todos os meios que tem ao ser dispor (carta, telefone e e-mail), que são fornecidos pelos próprios e da sua responsabilidade manter actualizados. Quando a dívida é superior a uma quota anual, o processo é remetido para o Conselho Regional de Disciplina do Sul para que este órgão actue em conformidade com o Estatuto da Ordem dos Arquitectos (EOA) e demais regulamentos. Esgotadas todas as tentativas de celebração de acordo de pagamento faseado para regularização da dívida, atingidas 3 quotas anuais por regularizar, não existe outro recurso legal para a OA-SRS actuar que não seja a resolução por via contenciosa. No entanto, o processo contencioso inicia-se com um contacto por parte do advogado, numa tentativa última de acordo entre as partes. Dos cerca de 3800 processos de dívida, 97 terminaram, inevitavelmente, em execução. A todo e qualquer momento do processo, caso não esteja a exercer os actos próprios da profissão, o arquitecto pode solicitar a suspensão da sua inscrição na OA, evitando a acumulação de dívida.

O EOA e demais regulamentos em vigor não permitem a suspensão de inscrição de um arquitecto por decisão unilateral da OA, por motivos de não pagamento de quotas. A aceitação do pedido de suspensão é deferido pela OA a pedido do próprio arquitecto, caso não esteja a exercer os actos próprios da profissão. A quota anual da Ordem dos Arquitectos é de 190,00€. Este valor não é alterado desde 2004. A referida quota pode ser liquidada anual ou trimestralmente e mediante a modalidade de pagamento que optem, os arquitectos podem beneficiar de diversos descontos.

Como é do conhecimento de todos os Arquitectos, está curso o processo de revisão do EOA e, consequentemente, a revisão dos demais regulamentos, incluindo o de quotas. A OA-SRS, sensível à actual conjuntura sócio-económica dos nossos membros, da crise que o sector da construção atravessa e que afecta directamente os arquitectos e a arquitectura, tem defendido a urgente revisão deste regulamento e a possibilidade de inclusão da figura da "suspensão por incumprimento". Acreditamos que, num futuro próximo, este objectivo será alcançado, salvaguardando a integridade económica dos seus membros. No imediato, e no enquadramento hoje possível, a OA-SRS tem tentado encontrar, dentro das obrigações a que está legalmente obrigada, soluções no sentido de minimizar o impacto que a situação de incumprimento acarreta.

O Conselho Directivo Regional Sul da Ordem dos Arquitectos

Estas declarações merecem reflexão e motivam um conjunto de questões. O CDRS afirma que “o EOA [estatuto da ordem] e demais regulamentos em vigor não permitem a suspensão de inscrição de um arquitecto por decisão unilateral da OA, por motivo de não pagamento de quotas”, sendo a solução remetida para um “futuro próximo”. Importa interrogar qual a dificuldade em introduzir uma nova norma ao regulamento de quotas da ordem, efectivando que a falta de pagamento por um período alargado de tempo (12 ou 18 meses) signifique a suspensão automática da inscrição – acrescida da eventual necessidade de pagamento de uma taxa adicional aquando da sua reactivação. O modo indefinido com que se aborda a solução do problema parece evidenciar pouca vontade e insensibilidade perante a situação dos associados, mais do que uma verdadeira dificuldade formal em proceder ao aditamento do actual regulamento.

Por outro lado, parece questionável – e até duvidoso no plano jurídico – que a OA considere válidas (ou seja, em efeito pleno) as inscrições de pessoas com falta de pagamentos acumulados em mais de dois ou três anos, mesmo não existindo uma cláusula específica no regulamento para esse fim.

Importa considerar que a falta de pagamento de uma prestação faz com que a OA deixe de emitir a declaração semestral comprovativa de inscrição na ordem, impedindo os arquitectos de submeter projectos nas entidades licenciadoras. Para efeitos práticos, o membro da ordem com as suas quotas em atraso tem igualmente os seus direitos (compreensivelmente) diminuídos, ou seja, parcialmente suspensos. No entanto, para efeitos de cobrança e acumulação de dívidas ad aeternum, a OA já parece considerar a sua inscrição plenamente válida.

É certo que os associados podem requerer a suspensão da sua inscrição em qualquer momento. E que muitas destas situações decorrem da falta de informação e desatenção continuada dos respectivos membros. Mas isso não deixa de confrontar a OA perante o significado, real, simbólico e político, das suas deliberações.

Temos assim que, por um lado, a OA se declara impotente para declarar a suspensão unilateral da inscrição dos associados, por falta de pagamento continuado, devido à ausência de enquadramento regulamentar. No entanto, para proceder judicialmente contra estes com processos de execução e penhora de bens, a OA já se considera legitimada no plano legal.

Não estando em causa a eventual legitimidade jurídica desta actuação, ainda assim discutível, não deixa de ser questionável a sua legitimidade ética.

Todo este debate se prende, também e inevitavelmente, com o valor da quota anual, fixada em 190,00€. A OA afirma que as quotas não são alteradas desde 2004, argumento a que recorre com alguma regularidade. No entanto, também é verdade que o número de membros inscritos nunca deixou de aumentar de forma crescente, devido ao número de novos licenciados em arquitectura, pelo que a base de quotização nunca deixou também de aumentar.

O que está efectivamente em causa é a necessidade de baixar o valor da quota, tendo em conta o seu valor expressivo e considerando que os próprios arquitectos têm vindo a assistir a uma redução de rendimentos pesada nos últimos anos.

Deixo o meu exemplo pessoal enquanto técnico superior da função pública, condição que partilho com grande número de arquitectos, testemunhando que a nossa redução de rendimentos nos últimos anos se fixa entre os 15% e os 20%. O rendimento líquido mensal deste conjunto de profissionais é hoje igual ao dos vencimentos de 2006, com a agravante que em 2013 o salário inclui a diluição de 1/12 de um subsídio de férias. Explicado de forma simples, os técnicos superiores recebiam em 2006 o mesmo que recebem hoje, com mais dois subsídios de férias, recebendo agora esse valor e apenas um subsídio de férias adicional – e este último por força da decisão do Tribunal Constitucional.
Temos assim que a redução do valor de um subsídio de férias corresponde a uma perda de 7% do vencimento, acrescendo a incidência da inflacção por um período de 7 anos.

Quanto aos nossos colegas do sector privado podemos apenas supor que, na generalidade, pior será a sua redução de rendimentos, para além de todos aqueles que hoje se encontram sem actividade.

É também por esta conjuntura que a postura formal da OA em relação a estes incumpridores se afigura tão desproporcionada e eticamente questionável.

Exprimindo a minha opinião pessoal, que sujeito a todas as críticas, entendo que a OA devia alterar com absoluta urgência esta situação, declarando a suspensão imediata destes associados e amnistiando estas dívidas acumuladas.

Enviei por correio electrónico estas interrogações ao Conselho Directivo Regional Sul da Ordem dos Arquitectos no passado dia 22 de Novembro, não tendo ainda sido possível a este órgão efectuar o seu esclarecimento ou apresentar o seu ponto de vista. Fica, no entanto, aberto o debate, aqui no blogue, a todos os que quiserem participar.

Bilhete postal







A história dos incêndios também se conta nas casas devolutas, nas hortas abandonadas, nos abrigos fechados do pasto e dos animais, nas ruínas dos moinhos de água. A culpa, votaram na televisão, é dos donos dos terrenos que não limpam as florestas. Onde estão eles? Não passaram tantas décadas assim. Por aí andavam percorrendo esses montes, por trilhos hoje invadidos de silvas, recolhendo os restos da mata a que hoje, lá longe da cidade, chamamos de resíduos. Para aquecer as habitações nas noites frias, cozinhar os alimentos, fazer as camas dos animais que depois serviriam de adubo aos solos de cultivo. O que mudou, então, foi todo um modo de nos relacionarmos com o território. Esta gente não existe mais e aqueles gestos não teriam hoje qualquer sentido. O problema dos incêndios é assim, em grande medida, o problema da nossa relação com o mundo.

Brasil que futuro?



Por entre as imagens de imensas multidões que nos chegaram do Brasil nas últimas semanas encontramos, publicadas um pouco por toda a internet, fotografias de cidadãos que trouxeram para a rua as suas próprias palavras de ordem. Gente reclamando pela gestão responsável dos dinheiros do Estado, contra o despesismo e a corrupção, por mais investimento na saúde, na educação e em melhores infraestruturas públicas.

É um lugar-comum dizer que o Brasil é um país de futuro. Estima-se que possa ser, em 2020, o sétimo maior produtor de petróleo do mundo, podendo mesmo alcançar o quinto lugar. O Brasil tem hoje todas as condições de partida para assegurar o crescimento da sua economia durante várias décadas. Daqui a vinte anos será, sem qualquer dúvida, um país diferente e melhor. No entanto, apesar de todas as perspectivas promissoras, o caminho que agora se abre aos brasileiros é difícil e o país corre o risco de falhar o objectivo último de alcançar um desenvolvimento sustentável para as futuras gerações.

Se os recursos disponíveis parecem ser imensos, os problemas com que o Brasil se confronta são igualmente grandes e profundos. Com fortes insuficiências de infraestruturas básicas, de transportes, equipamentos públicos, segurança, habitação e urbanismo em geral, o caderno de encargos do progresso é extenso e irá requerer um grande esforço do Estado, ou seja, de todos. Se o Brasil permitir que este ciclo de crescimento seja conduzido como uma corrida ao ouro, entregue à corrupção e ao despesismo, deixando sobrepor a especulação e o lucro fácil ao planeamento e à exigência de boas práticas, todos os benefícios de uma política de investimento podem vir a ser desperdiçados.

Acima de tudo, o risco maior é cair na tentação de tornar os recursos do futuro num aval para o endividamento do presente. Se o país se entregar a políticas de sobreaquecimento rápido da economia por via do expansionismo assente na disponibilidade dos dinheiros públicos, sem critério rigoroso das suas necessidades, da justeza e da boa gestão dos gastos, o Brasil estará trilhando numa armadilha fatal para o seu destino. A maior armadilha de todas – aquela que porventura muitos brasileiros podem nem sequer imaginar – é que é possível fazer má política de investimento público em nome de boas causas. Deus, e o Diabo, estão nos detalhes. Motivos justos à vista de todos – tais como o investimento de larga escala em escolas, hospitais e outros equipamentos públicos – podem também ser usados de forma demagógica para promover o despesismo, o exagero, o favorecimento e a corrupção.
Não basta por isso investir na educação, na saúde ou nos transportes; é preciso investir nessas áreas mas investir bem, de forma justa, equilibrada e planeada.

Daqui a vinte anos o Brasil será diferente e melhor. Mas as suas perspectivas podem ser as de um país na charneira do mundo ou as de um país refém das dívidas e dos erros entretanto cometidos. Os brasileiros que estão saindo para a rua, levando consigo as suas próprias palavras de ordem, reclamam um maior discernimento no uso dos seus recursos e querem fazer parte dessa batalha. O futuro do Brasil decide-se hoje.









Imagens via Tumblr #changebrazil, #ogiganteacordou, #vemprarua.

Crítica de arquitectura: disparar sobre o mensageiro

A ambiguidade que paira entre divulgação, opinião e crítica – esta última assente num trabalho mais profundo de investigação e contextualização, de referenciação da história, dos conteúdos e das ideias – é por certo um dos desafios que se coloca à expressão do pensamento erudito sobre o mundo que nos rodeia; a este respeito escrevi recentemente em Da arquitectura como narrativa política. O caso torna-se no entanto mais complicado quando essa indistinção parte dos próprios críticos, neste caso de arquitectura. No ensaio Os analfabetos do presente Pedro Levi Bismark enuncia o «últimas reportagens» como sintoma de um processo de desvalorização crítica da imagem, denunciando-lhe a ausência de critério arquitectónico, estético ou político.

Coloca-se, em primeiro lugar, um equívoco de partida. O exemplo em causa, como tantos outros sítios web de fotógrafos de arquitectura, tem explícita uma fundação empresarial. Estes profissionais são – tal como os arquitectos – prestadores de serviços e a sua presença na internet é uma extensão natural da sua imagem; algo que se traduz, no interface gráfico e nos conteúdos que divulgam, tanto no domínio corporativo como no campo criativo. É assim com Iwan Baan, Cristobal Palma, Hertha Hurnaus, Fernando Guerra, como com tantos outros.
Afirmar, em relação ao caso particular do fotógrafo português, que não pode ser esquecido de modo nenhum é que um site como este não é uma publicação de arquitectura, onde texto e fotografia se cruzam para construir uma crítica de obra é “disparar sobre o mensageiro” em nome de um equívoco que o próprio crítico parece alimentar.

Será indesmentível que a fotografia se tornou, no mundo da rede, um veículo poderoso de divulgação da arquitectura produzida – mais do que do seu “valor crítico”. Uma boa foto de arquitectura não é necessariamente consequência de um bom projecto nem o fim último de um edifício consiste em ser fotografado. A arquitectura, existindo para ser vivida, abre sobre o mundo um diálogo com o lugar, com o tempo, com a memória. A representação fotográfica é mais uma extensão desse diálogo, não sendo indiferente o discurso formal da própria imagem e o seu destinatário editorial. Uma fotografia comissionada por um arquitecto não tem os mesmos parâmetros estéticos de uma comissão para a Dwell, como esta diverge dos padrões editoriais de uma Wallpaper; e, no entanto, nestes como noutros exemplos mais, podemos estar a falar de um só edifício. Para a mesma arquitectura, muitas “imagens” possíveis.
O que é questionável é alimentar uma visão caricatural em que a chancela de um fotógrafo se traduz numa paródia de “selo de qualidade” da própria arquitectura. Como se o facto de obras de diferentes arquitectos serem fotografadas por Iwaan Baan ou Fernando Guerra as colocassem num mesmo patamar “crítico”. O caso torna-se mais grave quando se enuncia o caso particular de Álvaro Siza, merecedor de uma secção autónoma destacada no site do fotógrafo português, como estando lado a lado com um outro exemplo publicado numa rede social, ignorando o valor editorial dessa distinção.

O equívoco expresso por Pedro Levi Bismark torna-se ainda mais explícito quando coloca no mesmo plano o «últimas reportagens» com o «archdaily», este último o blogue de arquitectura mais visitado do mundo. Vale a pena reflectir sobre o que isso significa: qual o seu “valor crítico”. Resposta: nenhum. O «archdaily» não é um espaço de crítica de arquitectura e, no entanto, a sua política editorial não é de todo inócua. Ele concorre, com outros blogues semelhantes, pela publicação de conteúdos “em primeira mão”. Um press-release com imagens mais ou menos sensacionais de um projecto, enviado a dezenas ou centenas de emails de blogues, vê-se publicado em poucos minutos. Nesta blogosfera a novidade e a celeridade traduzem-se em hits, o que por sua vez se converte em fonte de revenue.

Não desenvolvendo sobre os projectos qualquer conteúdo crítico, a publicação num «archdaily» não se traduz por isso num valor qualitativo da obra. Um projecto não é bom ou mau por ser publicado na internet. No entanto, esta lógica de reciprocidade entre blogues e empresas de arquitectura tem uma consequência perversa quando dela se pretende extrair uma representatividade crítica; algo que o «archdaily» invocou por diversas vezes sob a forma de editorial. Como se a exposição de um projecto e a sua submissão ao “comentário” fossem em si mesmo uma forma de sujeição à “crítica” popular, o que por sua vez se traduziria num “valor” democrático. Ao fazê-lo, o «archdaily» alimenta os piores equívocos redutores da noção de crítica de arquitectura no espaço público.

Por muito que isso escandalize noções pueris de democraticidade que reinam na internet, a verdade é que a crítica de arquitectura será sempre uma actividade minoritária, de nicho. Trata-se, no entanto, de um espaço contido mas poderoso onde podemos encontrar coisas como o BLDGBLOG, o City of Sound, o Fantastic Journal, o Kosmograd, entre tantos outros, que desenvolvem o trabalho crítico de mapear os conteúdos – dos projectos, dos desenhos, dos textos, das fotografias – com o cruzamento de múltiplas referências.
O aspecto mais infeliz do texto do Pedro Levi Bismark é confundir estes diferentes planos na tábua rasa de uma generalização que alimenta esse mesmo olhar iletrado e indistinto sobre “as imagens” que hoje se abatem sobre nós num volume sem precedentes. O que ali se traduz é uma patologia recorrente na crítica escrita entre nós, pronta a disparar sobre o mensageiro de forma fácil mas que tantas vezes se demite de abordar os verdadeiros temas do nosso país em crise e do território sociológico em que vivemos. Nunca como hoje fez a crítica de arquitectura tanta falta, nem esteve tão ausente.

Odeio os meus amigos

O défice de nerdismo nacional é um problema que me assiste. Vou ao ponto de considerar o facto de não ter amigos nerds como um dos dramas da minha existência. A questão coloca-se da seguinte maneira: há toda uma panóplia de temas que fazem parte do meu universo de interesses pessoais sobre os quais não tenho quase ninguém com quem conversar. Pessoas que compreendem a importância de ir à estreia do Hobbit envergando pés-de-hobbit ou uma frondosa barba oficial do Gandalf. Aficionados da ficção científica ou do fantástico, cromos dos comics, do cosplaying e das estátuas-miniatura de super-heróis, gente que vibra com a visão da nave espacial Enterprise a elevar-se dos mares ou com o prospecto de passear pelas ruas virtuais da cidade flutuante de Columbia…

Sei que este não é um assunto sério, e tanto mais num país em crise. Mas a carência do espírito tongue-in-cheek que caracteriza a cultura-nerd reflecte um pequeno problema da sociedade portuguesa. Uma falta geral de entusiasmo pela diversidade e riqueza das formas de expressão humana.

Um dos traços mais “obnóxios” de uma certa postura (falsamente) intelectual reside na pose de enfastiamento generalizado, como se esse fosse um traço de grande selectividade mental. A consideração a fazer é que pessoas de exigência superior serão superiormente exigentes quanto ao “gosto”. Por esta ordem de ideias, quanto mais inteligente se é, mais exigente se é também e, como tal, passamos cada vez mais a gostar de menos coisas. Nada mais falso.

Acredito que este é um problema real da nossa Educação. Não somos educados para o gosto. Não compreendemos, aliás, que o gosto é toda uma ferramenta de aprendizagem. Recordo, a este respeito, um velho disco em vinil que me foi parar às mãos há muitos anos. Duas peças de violoncelo interpretadas por Thomas Demenga. No lado A uma guigue de violoncelo de Bach. No lado B uma obra contemporânea de Elliot Carter.
O álbum era acompanhado no interior por um texto de Heinz Holliger, compositor Suíço, que alertava para o contraste absoluto que o ouvinte iria encontrar.

«Although BA and CA coexist so peacefully beside each other in the alphabet, I am afraid that when the first jagged flashes of flute and clarinet rend the serene C major skies of Bach’s Gigue, your hand will rush to switch off the record player. I hope my plea does not come too late to stop this from happening. It would be such a shame if one fateful turn of the knob were to close off the new and fascinating sound-world just opened to you by those first flashes. Lie back and relax, listen, look, feel and remember the future; try to foresee the past. Let Zeus throw down from the new Olympus those shattering bolts of sound. Let the purifying spiritual storm (not just Esprit rude, Esprit doux) rage around you. You will be richly rewarded.»

Holliger alertava para o choque natural entre as paisagens serenas e familiares de Bach e o universo musical estilhaçado e abstracto de Carter. E desafiava a ir além do repúdio que se sentiria ao confrontar aquela ausência de horizontes, daquelas referências que nos são habituais. A ir para lá daquele espaço onde nos sentimos seguros e confortáveis. A ir além do “desgosto”, a aprender a gostar.

O gosto não é mais do que uma forma de compreensão, um ponto de encontro com a inteligência do autor. Para aqueles que estão dispostos a desafiar os limites do seu gosto, o mundo é um espaço de aprendizagem sem fim.

O melhor da cultura nerd é celebrar essa capacidade de gostar, o entusiasmo de sentir que “gosto disto” e quero partilhar. Desinteressadamente.

As pessoas que não gostam de nada, que se enfastiam, que sofrem de tédio, são pessoas que não sabem nada. Para todos aqueles que estejam dispostos a desafiar-se, a romper com os limites de partida que todos temos, o mundo é um lugar entusiasmante cheio de coisas para viver e descobrir em todos os sentidos, seja no cinema, na literatura, na ciência, na história, na música, na fotografia, na banda-desenhada, nos jogos de vídeo, na culinária ou no crochet, ou em todas as outras coisas em que o espírito humano é capaz de se aventurar.

Se gosto, gosto. Se não gosto, não gosto…

A sério?

Oitocentos anos de escárnio e maldizer

Em oposição à exaltação não-crítica do “autor” está o papel desempenhado pelos blogues e as redes sociais enquanto espaços de opinião no directo da rede. Se por um lado temos a incapacidade em produzir asserções sobre “a obra” baseadas em argumentos substantivos, subjectivos mas qualificáveis, temos por outro o exercício infeliz do “achómetro”. Oitocentos anos de escárnio e maldizer encontraram na internet a placa de petri ideal para a fermentação, tudo reduzindo a uma caricatura do outro.

Exemplo deste fenómeno são os ataques recorrentes que a artista portuguesa Joana Vasconcelos parece merecer na nossa blogosfera. Se é certo que não devemos sustentar a ideia provinciana de que só porque alguém é “reconhecido lá fora” será merecedor de vassalagem “cá dentro”, também não devemos alimentar a agressão moral sobre outrem pelo simples facto de ter conquistado notoriedade.
O facto torna-se mais grave quando não encontramos nesses ataques qualquer substância argumentativa que os sustente. Os casos variam entre o engraçadismo habitual, assente na adjectivação mais ou menos colorida, a ataques de classe dirigidos à “política cultural do governo” para quem a artista é um mero dano colateral, ignorável e até desejável. Sobre as obras, invariavelmente, nada se diz.

A subserviência acrítica sobre uns e a destruição liminar de outros são duas faces da mesma moeda, de uma grosseira incapacidade de produzir juízo de valor sobre as coisas. Em boa verdade pouco falamos de obras, antes enfatizamos a chancela do autor – e para quem não tem chancela não há obra que lhe valha, por melhor que seja.
O que perpassa de tudo isto é o modo como olhamos uns para os outros neste tempo tóxico que estamos a viver. A cultura do escárnio é produto da descrença e do cinismo, inimiga maior de uma sociedade meritocrática, entusiástica e desinteressada, motivada por descobrir, partilhar e proteger aquilo que tem valor.

Adenda: uma resposta e um comentário, aqui.

Arquitectura do défice: da arquitectura como narrativa política

Uma obra estimada em 108 milhões de euros para construir em três anos. Mais de uma década passada, 400 milhões de euros depois, o parlamento Galego decidiu concluir o processo de construção da Cidade da Cultura de Galicia “tal como está”, com dois edifícios ainda por construir.
A notícia, agora partilhada por Edgar Gonzalez, confirma as perplexidades já abordadas pelo popular Jordi Évole no seu documentário Cuando éramos cultos. Um retrato severo da bolha cultural de Espanha de que agora restam cascos “sem uso nem conteúdo”, cronicamente deficitários e financeiramente insustentáveis.

Estamos perante um exemplo paradigmático de uma doença mais vasta que atinge o que tantas vezes se faz passar como "política pública de arquitectura". Que devaneios desta natureza tenham sido cometidos em nome do “apoio à cultura”, com a cumplicidade e a vassalagem de todos os agentes institucionais, é bem o retrato da corrosão ética e moral que conduziu à nossa sociedade à falência, em múltiplas formas.

Temos assim a arquitectura enquanto manifestação e veículo de narrativas políticas, uma arquitectura que não se move verdadeiramente por ideias e valores, que não traz consigo qualquer entusiasmo ou vontade de transformação do mundo, antes padece das mesmas debilidades que enfermam o discurso político corrente. Por isto mesmo são operações que se revestem de uma forte carga discursiva, ficções validadas pela chancela “notável” de autor onde confluem interesses e oportunismos geradores das maiores armadilhas financeiras. Que o interesse público, esse valor central da democracia, seja a primeira vítima destes processos é algo que não parece trazer consequência ou qualquer forma de resistência.

Trata-se de uma patologia cultural que afecta profundamente o espaço público das ideias. Tão grave quanto a actuação de políticos sem escrúpulos e sem responsabilidade é o modo como os agentes do meio arquitectónico contribuem activamente para sancionar aquela apropriação do “arquitecto” enquanto álibi da indiscutibilidade dos processos de promoção da obra pública e da sua validade programática.

Neste jogo de interesses a crítica de arquitectura representa um papel decisivo e, lamentavelmente, fatal. É certo que o exercício da crítica vive hoje refém de diversos mal entendidos pela indistinção entre informação, divulgação, opinião e esse outro trabalho maior de contextualização e confronto investigativo da história e das ideias. Também aqui a mediatização e os blogues deram tantas vezes um mau contributo, alimentando a confusão em nome de um falso debate “democrático” que mais não é do que a expressão do mínimo denominador comum do pensamento.

Mas a falência da crítica de arquitectura vai muito para lá dessa disfunção contemporânea. O que está em causa é a legitimidade da crítica enquanto suporte voluntário da construção de narrativas artificiosas, ausentes de qualquer frontalidade ou substância. Como se a obra de arquitectura fosse legitimável enquanto manifestação de si própria, divorciada do tecido financeiro, económico, social, político, cultural em que tem lugar. E como se o crítico pudesse sê-lo sem ser cidadão do seu tempo.

Se vivemos um tempo de narrativas é exactamente por habitarmos um território de não-crítica. O que testemunhamos são representações de crítica, vazias e rotundas, ensaiando ocasionalmente laivos de irreverência, sempre e invariavelmente atirando sobre alvos fáceis. Em boa verdade, mais não são do que exteriorizações de uma cultura falida e moribunda, animada apenas pelo momento de tempos passados, tal como estas arquitecturas.

Estas questões, previsivelmente, não se verão abordadas em qualquer conferência ou editorial.

Pós-POLIS: Reabilitação Urbana em tempo de crise

Apesar dos sinais de deterioração económica e radicalização política que crescem, não apenas em Portugal mas na Europa, parece estar a gerar-se algum consenso quanto à necessidade de introduzir mecanismos de investimento que impulsionem a dinamização e o crescimento da nossa economia.

O contexto não é fácil. Com problemas internos – endividamento excessivo, desequilíbrios estruturais, dificuldades de acesso ao crédito – e condicionantes externas – a desaceleração da economia mundial e a Europa à beira da recessão – garantir financiamento para grandes operações no domínio da obra pública é um sério desafio. Por outro lado, com os recursos limitados que poderão ser alocados ao investimento, o sector da construção terá sempre e necessariamente de competir, como opção política, com outras áreas de produtividade mais orientadas para os bens transacionáveis, para a exportação e para o retorno sustentável de médio e longo prazo.

Importa aqui lembrar que a construção é uma fileira que arrasta todo um conjunto de agentes económicos: os que projectam e fiscalizam; os que constroem; os que produzem materiais de construção, maquinaria, tecnologia diversa; os intermediários, vendedores e revendedores e ainda todos aqueles que prestam uma vasta gama de serviços complementares.
Em contraponto, o sector da construção, enquanto área de investimento, tem também riscos que importa não desconsiderar: as empresas de maior dimensão estão em geral associadas a capital estrangeiro e muito do material, máquinas, hardware e software utilizados têm origem no exterior.

É assim num ambiente económico adverso e num cenário de colapso do sector da construção civil que a Reabilitação Urbana vem sendo referida como uma das opções políticas possíveis para o investimento público. Mas é também por todas as razões referidas que a Reabilitação pode ter um atractivo adicional: ela incorpora todo um conjunto de intervenções de pequena e média escala que podem ser dirigidas em benefício da economia local. É um veículo privilegiado para alcançar, de forma cirúrgica e planeada passo a passo, um vasto conjunto de pessoas.

A questão é: como fazê-lo? Acima de tudo, como fazê-lo com poucos meios financeiros disponíveis?

Seria um erro lamentável se o Estado viesse a actuar de forma precipitada e simplista, dando prioridade à intervenção sobre o seu próprio património [1] ou a acções dispendiosas de mero embelezamento urbano [2], em prejuízo de uma aplicação dos seus escassos recursos em benefício directo dos cidadãos.

A resposta tem de passar pelo abandono de políticas convencionais de investimento público de grande escala como as que foram aplicadas na economia interna nas últimas décadas. Acima de tudo, a acção do Estado deve centrar-se mais na gestão do que na construção propriamente dita, actuando como parceiro dinamizador e não apenas como mero financiador.

Eis uma ideia…
* * *

Tradicionalmente, os apoios estatais à recuperação de habitação são canalizados directamente ao proprietário particular. Este modelo estabelece desde logo várias desvantagens de gestão. Porque o apoio estatal é dado caso a caso, o custo unitário de cada operação é inevitavelmente maior. Assim, e porque os meios financeiros são sempre limitados, a preocupação do Estado centra-se em limitar o universo de candidatos elegíveis; cidadãos enquadráveis em limites remuneratórios muito estritos.

Isto é compreensível. Se o dinheiro disponível é pouco devemos dirigi-lo a quem mais precisa. Mas porque estamos a fazê-lo de modo unitário, acabamos por assumir custos mais elevados por cada operação de recuperação. Estamos, como tal, a fazer menos com o nosso dinheiro do que se adoptássemos um modelo colectivo de intervenção.

A solução passa por criar programas de Reabilitação Urbana que integrem, em parceria, colectivos de cidadãos, desejavelmente orientados para a habitação nos centros antigos das cidades. Esses programas deveriam ser organizados por áreas de intervenção: telhados e coberturas; fachadas; vãos exteriores; infraestruturas básicas (electricidade, águas e esgotos); reabilitação de estruturas; outros (a definir mediante as carências locais).

Programas desta natureza seriam promovidos pelo Estado, geridos localmente pelas Câmaras Municipais e abertos a todos os cidadãos, proprietários particulares, que apresentariam a sua candidatura a uma ou várias áreas de intervenção mediante as suas necessidades.

Estas candidaturas, devidamente analisadas e agrupadas em conjuntos (em função da tipologia, localização, custo e dimensão da obra) seriam posteriormente alvo de processos de concurso público. O Estado facultaria assim, em primeiro lugar, o saber técnico na preparação de procedimentos de concurso, de que seriam beneficiários os próprios cidadãos.

Tratando-se de agrupamentos de obras – incidindo, por exemplo, em 25, 30 ou mais habitações – os custos unitários por intervenção tornar-se-iam consideravelmente mais baixos para cada particular do que se promovidos separadamente e apoiados caso a caso. Complementarmente, os fundos estatais disponíveis seriam orientados para comparticipar as intervenções dos cidadãos mais carenciados. Nos outros casos em que a comparticipação directa não fosse possível, seria sempre viável estabelecer mecanismos compensatórios de incentivo fiscal como a dedução do IVA ou a isenção temporária de Imposto Municipal sobre Imóveis.

* * *

Uma filosofia de intervenção colectiva no domínio da Reabilitação Urbana, em que Estado e cidadãos actuem como parceiros, pode ter vários efeitos económicos positivos. Permitiria, por um lado, viabilizar uma vaga de construção em que as empresas poderiam participar em concorrência aberta. Por outro lado, profissionais e firmas de projecto poderiam ser chamados a colaborar na preparação dos procedimentos concursais e na assistência técnica das obras. Por fim, os cidadãos beneficiariam colectivamente de um programa de intervenção a custos necessariamente mais baixos do que aqueles a que estariam sujeitos se actuassem de forma individual.

Para o Estado seria uma oportunidade de aplicar o saber técnico dos seus profissionais em procedimentos usualmente inacessíveis aos restantes cidadãos. Acima de tudo, independentemente dos modelos que venham a ser criados para actuar nas nossas cidades, importa abandonar os velhos chavões que serviram para legitimar o dispêndio de volumes avultados de crédito em obras de que poucos directamente beneficiaram e que todos teremos de pagar por muitos e muitos anos. Chegou a hora de fazer para e com as pessoas.

Arquitectos a mais

Não há arquitectos a mais; há arquitectura a menos. – A frase vem a terreiro, de tempos a tempos, para aliviar consciências. Serve de pouco. O mercado de trabalho de arquitectura encontra-se numa condição indisfarçável de dumping.
Se agora se fazem ouvir algumas vozes de preocupação poucos foram os que no passado se manifestaram. A actividade viveu encostada às iniciativas de promoção pública e privada, alimentando-se de cumplicidades políticas e da economia do endividamento que marcou as últimas décadas.

Enquanto rolava o dinheiro do Estado ninguém se queixou. O discurso dominante da profissão sempre fez por ocultar a nudez da realidade sobre um manto diáfano de excelência – Expo98, Capitais da Cultura, Euro 2004, Polis, Parque Escolar… O saldo deste “modelo” aí está à vista de todos. Se o colapso do sector imobiliário é trágico, no caso da obra pública a situação é mais grave pela dimensão ética dos erros e o custo financeiro que deles pende sobre o presente e o futuro.

As Universidades aproveitaram a conjuntura para abraçar sem escrúpulos a massificação académica. Se há procura – não de emprego mas de curso – logo há oferta. O ensino universitário, público e privado, tornou-se num negócio puro e duro sem qualquer correlação com o mercado de trabalho ou sentido de auto-regulação.
Ano após ano largas centenas de jovens preenchem as vagas do curso de arquitectura e este não foi excepção. Curiosamente, enquanto nos cursos de engenharia a retracção de candidatos é já expressiva, o mesmo não sucede com a arquitectura. De pouco importa às Universidades estarem a formar profissionais, de forma mercenária, para trabalhar em call-centers. O título de “arquitecto” continua a vender ainda que, em boa verdade, já só lhe reste o panache. No mundo real é sinónimo de mão-de-obra barata e assim ficará durante esta década.

O contexto da profissão é por isso, hoje, um contra-senso. A arquitectura tornou-se numa actividade sobre a qual impendem pesadas responsabilidades jurídicas, no mesmo momento em que sofre um processo de desvalorização sem precedentes. O próprio Estado acaba por actuar como agente dessa desvalorização forçando de forma pouco responsável as condições de prestação de serviço, custos de projecto e de obra a níveis incompatíveis com uma exigência mínima aceitável de qualidade.
É um caminho perigoso que terá consequências a prazo; antes fazer mais devagar mas fazer bem do que projectar rápido, barato e mal. Mas se quisermos assacar responsabilidades sobre tudo isto, na conjuntura em que estamos a viver, temos de olhar para os erros passados de muitos: políticos, sim, mas também academias, ordem, empresas, arquitectos. Poucos ficam bem nesta fotografia.

O que te separa de um Pritzker



Ira Glass fala sobre a dificuldade em atingir as expectativas pessoais quando se está no início de uma carreira. A exposição tem como ponto de partida o mundo dos media mas a sua argumentação é universal. Segue-se uma transcrição (um pouco livre):

Ninguém diz isto a quem está a começar. Eu gostava que o tivessem partilhado comigo. Que todos nós, que fazemos trabalho criativo, somos atraídos para aqui porque temos “bom gosto”. Mas deparamo-nos com esta distância inultrapassável. Durante os primeiros anos em que estamos a fazer coisas, elas não são tão boas assim. Está a tentar ser bom, tem potencial, mas não chega lá. Agora o teu gosto, essa coisa que te atraiu esta área, está a funcionar em pleno. E o teu gosto é a razão pela qual o teu trabalho te desilude.
Muitas pessoas nunca ultrapassam esta fase. Desistem. Mas quase todas as pessoas que eu conheço, que fazem trabalho interessante, criativo, passaram por isto durante anos a fio. O tempo em que sabemos que o nosso trabalho não tem aquela chama especial que nós gostaríamos que tivesse. Todos passamos por isto. E se estás apenas a começar ou se estás a passar por esta fase, tens de saber que isto é normal e que a coisa mais importante que podes fazer é trabalhar muito. Só depois de teres atrás de ti um volume grande de trabalho é que conseguirás atravessar essa distância e o teu trabalho será tão bom como as tuas ambições. Eu demorei muito tempo a compreender isto. Demora tempo. E é normal demorar tempo. O que tens de fazer é lutar para percorrer esse caminho.


O Ira Glass é um tipo espectacular. De passagem recomendo a visita ao sítio web do This American Life e a acederem ao arquivo de programas. Têm ali dinamite cerebral para muitos dias.
O que ele aqui diz aplica-se a todas as áreas de trabalho que envolvem a aplicação prática da criatividade. Aceitar as nossas limitações de partida envolve muita persistência e uma boa dose de humildade. Todos entramos pela vida adentro com entusiasmo juvenil e esquecemos que aquilo que foi difícil para os que nos antecederam será também uma adversidade para nós. Não é por sermos jovens, por termos muito piss and vinegar, que a vida nos estenderá uma passadeira vermelha de facilidades.

A humildade é, infelizmente, um daqueles valores que tem vindo a descer no rating cultural. Não é um grande afrodisíaco, não leva ninguém para a nossa cama nem fica bem no perfil do Facebook. O mundo valoriza o carisma e as qualificações sociais. Não sejamos ingénuos: a habilidade social pode catapultar uma carreira na política ou quem sabe até tornar-vos internet-famous, mais uma daquelas celebridades que têm “opiniões fortes” sobre assuntos a que dedicaram cinco minutos de leitura (nos blogues) e acabaram a escrever colunas regulares num jornal. Mas malabarismo social e uma boa imagem não fazem ganhar Prémios Nobel, Pritzkers ou medalhas de ouro das mãos da Rainha Isabel II.

É certo que não temos todos de ambicionar a genialidade. Ser Pritzker, por exemplo, não é propriamente divertido: é preciso trabalhar mesmo a sério, pensar arquitectura 24 sobre 7 dias por semana, deitar e acordar a pensar nisso, anos, décadas a fio. Alguns de nós, a maioria, gosta demasiado de diversificar a vida, dedicar-se à família, somos demasiado normais ou andamos demasiado ocupados a batalhar contra as adversidades do dia-a-dia. Mas todos temos a obrigação de ser bons naquilo que fazemos, de percorrer esse caminho para a qualidade e o valor que só pode ser percorrido com trabalho e persistência.
O brilhantismo jovem pode ser bom para corridas de velocidade mas só vos leva até certo ponto. A vida é uma prova de fundo. Vencer o longo curso exige uma mistura de confiança, humildade e trabalho. Acima de tudo, exige resistência para não desistir, nem perante o ladrar de beira de estrada, nem perante o obstáculo mais importante de todos: os vossos próprios sonhos.

Para acabar de vez com a traça (arquitectónica)



De quando em vez passam pelo meu leitor de feeds projectos destes e dou por mim a pensar como isto seria inviável em Portugal. Só em países culturalmente subdesenvolvidos, sem o nosso aprumado sentido de defesa do património e a sua correspondente robustez jurídica, é que isto é possível. Países como… a Áustria?
Estamos perante um exemplar de uma arquitectura anti-traça. A traça arquitectónica, tal como o seu correspondente homónimo entomológico da ordem dos lepidópteros, é um mal do espírito que tem de ser enxotado com naftalina intelectual. Claro que é mais fácil acomodarmo-nos na preguiça do proibicionismo. Validar a diferença exige saber distinguir o valor das coisas, distinguir as qualidades em presença, aceitar o confronto de um debate cívico de ideias, de quem promove, quem desenha, quem constrói e quem detém o poder último de decisão sobre aquilo que na arquitectura é do domínio público.
A cidade, afinal, devia ser um reflexo da cidadania. Não um domínio de insectos.

A arquitectura é do atelier Lakonis Architekten. A fotografia é do Hertha Hurnaus.

Mais milhão, menos milhão…

O director-geral do Património Cultural fez saber que o novo Museu dos Coches estará concluído e pronto a inaugurar se tudo correr bem, e dentro dos prazos, sem derrapagens financeiras, em finais de 2013. A obra, inicialmente orçamentada em 32 milhões de euros, será sustentada por uma verba oriunda dos lucros da contrapartida dos Casinos de Lisboa, canalizada para o Turismo de Portugal.

Disse 32 milhões de euros? Era esse o valor estimado desde 2009, tal como indicado nesta notícia de Setembro do ano passado. Curiosamente, nos últimos meses, subsequentes notícias passaram a referir o custo de construção como sendo agora da ordem dos 40 milhões – um acréscimo de 25 por cento à projecção inicial.

Claro que nada disto interessa. Trata-se afinal de uma verba oriunda dos lucros da contrapartida dos Casinos de Lisboa, fraseologia que aparece sempre que se enuncia o custo desta obra. É dinheiro do Casino, é para gastar...
Sabemos então que o Museu custará trinta ou quarenta milhões, mais milhão menos milhão, mas com a garantia do director-geral do Património Cultural de que tudo se espera realizar sem derrapagens financeiras. Se tudo correr bem…

Educação de betão

Na avaliação do PMEES [Programa de Modernização das Escolas com Ensino Secundário] e na definição de medidas futuras, dever-se-á ter presente que, se não forem tomadas medidas muito concretas de redução de custos, a estimativa do custo total do Programa, para 332 escolas, atinge no mínimo M€ 4412, ultrapassando em 84% a estimativa inicial – M€ 2400 – e que a sua expansão para 375 escolas implicará o aumento do custo total do Programa para mais de M€ 5000.
Auditoria à Empresa Parque Escolar EPE – Relatório n.º 1615/2011, Inspecção-Geral de Finanças.

O que nos diz a auditoria da IGF à Parque Escolar? Dos 145 pontos do relatório apenas 11 se referem a questões de projecto e mesmo esses se sustentam nas observações do estudo levado a cabo pelo Centre for Effective Learning Environments da OCDE em 2009/2010. Não custa depreender que, no todo da factura deste programa, a arquitectura é apenas mais um item no novelo de factores de gestão, programação, projecto, fiscalização e execução que o compõem. Ainda assim vale a pena considerar os reparos que se fazem no relatório quanto a opções de arquitectura e construção.

1. ASPECTOS GERAIS

– O custo médio de investimento total por escola é de m€ 13290.
Apresentam-se dois valores de referência para custo médio de construção. São eles:
€ 877 de investimento total por m2 de área de construção;
€ 759 de custo de construção por m2.

São indicadores bastante razoáveis. Refere-se, no entanto, que o critério de medição utilizado pela PE contabiliza a 100% as áreas cobertas não fechadas, tais como espaços desportivos cobertos abertos, na área total de construção das escolas. E aqui já estamos perante uma habilidade tecnicamente indesculpável. Resumindo, isto significa que os valores médios de referência apresentados no relatório se encontram factualmente subestimados.

2. PROGRAMAÇÃO

– Áreas de construção excessivas, em resultado das normas para definição de espaços aplicadas pelo programa.
Um problema sério ao nível da programação. A área média de construção por aluno das escolas intervencionadas é de 12,5 m2/aluno, excessivo em relação aos exemplos de referência apresentados no estudo do CELE com valor médio de 9,0 m2/aluno. Corresponde a um acréscimo de 38%, o que tem um impacto significativo evidente sobre os custos globais de empreitada.

– A rapidez de execução do programa não permite aplicar o know how adquirido com vista a corrigir erros ou falhas de execução no que respeita a questões educativas, de projecto, de financiamento e orçamento.
A boa monitorização é, como sempre, a primeira vítima da pressa nos momentos errados do processo. A celeridade do programa pode ter servido alguém mas dificilmente se poderá alegar que tenha servido o interesse público.

3. PRÁTICAS DE PROJECTO - ARQUITECTURA

– Utilização de materiais ou soluções de qualidade e/ou custo excessivos.
O relatório refere, como exemplos, a aplicação de madeiras nobres, pedras naturais nobres em instalações sanitárias, bibliotecas e salas polivalentes anexas com áreas excessivas ou redundantes, soluções/sistemas construtivos não normalizados, guardas exteriores em aço inox, pavimentos exteriores em deck de madeira. Se algumas destas observações são meras minudências, outras há que revelam abordagens e entendimentos sobre a função e a utilização dos equipamentos no seu tempo de vida.

Elas são, é certo, situações exemplares e não generalizações. Mas vale a pena reflectir sobre cada caso e não embarcar em estados de alma corporativos – não é disso que se trata, tão só de atender ao bom senso. Não generalizando, a verdade é que temos por aí grandiosas obras de betão armado, extensões de janelas “quase sem caixilho”, profusões intermináveis de tecto falso (para esconder quilómetros de tubo), customização, opções materiais e construtivas que não têm em conta a robustez e durabilidade necessárias para resistir às exigências do ambiente escolar. Temos assim o uso extensivo de estores eléctricos, os decks de madeira (manutenção, manutenção, manutenção), as sanitas alemãs com placa de descarga em inox (pressionar com jeitinho, se faz favor), etc, etc…

4. PRÁTICAS DE PROJECTO – A QUESTÃO ENERGÉTICA

– Peso elevado das instalações especiais no custo total das empreitadas.
– Custos de gestão energética potencialmente elevados devido às potências instaladas.
– Insuficiência de ventilação natural por dependência excessiva dos sistemas de ventilação mecânica.

A questão energética é todo um mundo para reflectir. A recomendação do relatório é, nesta matéria, muitíssimo deficiente. Refere-se:
A PE deverá continuar a diligenciar junto das entidades competentes pela elaboração e aplicação das exigências legislativas ambientas e de eficácia energética, para adequar os regulamentos às reais necessidades das escolas secundárias, com vista à poupança no investimento e na factura energética, tendo em conta a escassez de recursos financeiros do país.

Não chega. O problema é, infelizmente, bem mais profundo do que isso. Para além da sobredotação de equipamentos de tecnologia digital das novas escolas o programa Parque Escolar coincidiu, de forma trágica, com a introdução do novo Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização em Edifícios. É certo que as exigências de controlo térmico actuais terão sempre um encargo de gestão adicional em relação ao passado. Mas algo de estranho se passa quando edifícios inteiros são calculados, para efeitos de ventilação, como se não tivessem janelas – ver Biosfera: A factura da Parque Escolar.

Determine-se onde páram as responsabilidades: na legislação, nos peritos ou na entidade que supervisiona a sua aplicação. Mas o que se passa é algo tão disparatado como isto: temos uma sala de x metros quadrados, são z metros cúbicos, dá n renovações de ar por hora. O resultado são tubos deste tamanho, máquinas daquele, não-sei-quantas unidades de potência. Custa tanto. Assim é fácil ser projectista.

As recomendações do relatório da IGF não chegam para fazer frente ao que aqui está em causa. Se a proposta de nomear um Gestor do Edifício na escola é meritória, é insuficiente para corrigir as disfunções entretanto criadas.
Fazer frente os atentados ambientais que se edificaram nesta vaga modernizadora das escolas requer a revisão independente e urgente da legislação e uma peritagem externa a todo o novo parque escolar, caso a caso, com vista a determinar medidas alternativas ou cautelares para diminuir os seus custos de gestão corrente. O que não se investir já a rever o que se fez será pago muitas vezes, continuadamente, durante todo o tempo de vida destes equipamentos.