1. Ao anunciar uma "investigação preventiva" à alegada empresa familiar de Luís Montenegro, para verificar se há matéria suficientemente credível para abrir um inquérito penal, o Ministério Público (MP) não seguiu a sua prática anterior, quando se tratava de denúncias contra políticos, de abrir imediatamente inquérito após qualquer denúncia e de o tornar público, por via dos jornais ou televisões "amigo/as", abrindo automaticamente o processo de julgamento e condenação na praça pública, sem contraditório nem defesa, punição que o deliberado atraso na conclusão do inquérito tornava irreversível, mesmo que o caso viesse a "dar em nada", passados anos.
Saudando esta evolução positiva, há muito reclamada (por último, pelo Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça, de que sou coautor), é de esperar, porém, que não se trate de um privilégio especial singular para o político agora em causa, e que não seja uma desculpa para não avançar com o inquérito, se devido.
2. Apesar de o MP não ter revelado (e bem) o objeto das denúncias contra Montenegro, o inevitável Correio da Manhã vem hoje informar, em manchete, que se tratará de infrações fiscais, o que não surpreende, dado que o principal objetivo dessas fictícias empresas familiares de profissionais liberais (que o PM não podia ter mantido) é substituir o IRS pelo IRC (com taxas muito menores), imputar-lhes despesas pessoais e domésticas sem nenhuma relação com a atividade profissional e beneficiar ainda da devolução de IVA pela sua aquisição. Só vantagens fiscais, portanto.
Contudo, como tenho argumentado (por exemplo, AQUI), pode haver neste caso uma atividade delituosa bem mais grave, que é a de recebimento indevido de vantagem, se se provar que as generosas avenças conhecidas não correspondem à prestação de serviços efetivos que justifiquem o seu elevado montante (desde logo, por falta de meios da tal "empresa") e que, portanto, não passam de pagamentos de favor de empresários ao advogado que, depois de ser líder político local, ascendeu a líder nacional de um partido de governo e acabou em chefe de Governo. Previsto e punido com pena de prisão pela Lei dos crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, esse crime tem também como pena acessória a demissão do cargo.
Ao pé das possíveis infrações fiscais, trata-se agora de "caça grossa" em matéria penal, sendo, aliás, um dos crimes que pode fundamentar legalmente o recurso à tal "averiguação preventiva" anunciada pelo PGR.
3. Embora tivesse por objeto a verificação de eventual violação, pelo PM, da regra da exclusividade do cargo governativo e da obrigação de declaração de património e de conflitos de interesse - o que, sendo ilícito, não é crime -, o inquérito parlamentar requerido pelo PS carrearia seguramente elementos seguros para inculpar, ou ilibar, Montenegro quanto às referidas infrações penais. Mas, tendo o Governo sido demitido, por sua iniciativa e com a colaboração do PS, fica definitivamente prejudicada essa via de apuramento dos factos eventualmente relevantes para efeitos penais, acima referidos, pelo que só resta a via da investigação penal.
Ora, caso os vários indícios existentes e outros eventualmente colhidos pelo MP habilitem a abertura de inquérito, não se vê como é que as referidas infrações, a existirem, poderiam escapar a um simples exame, sem grande demora, às contas da suposta empresa, ao destino dos pagamentos das avenças e ao registo tributário da "empresa", para efeitos de acusação, com as inevitáveis consequências políticas, ou para a encerrar o caso, ilibando o PM cessante das suspeições que sobre ele pesam e que, de outro outro, permanecerão, por falta de apuramento concludente.
Por isso, mesmo que acabasse por ilibar Montenegro, o inquérito do MP seria justificado.
Adenda
Um leitor, muito crítico de Montenegro, comenta que, se, apesar da evidência da violação da exclusividade e dos significativos indícios penais, ele consegue escapar tanto ao inquérito parlamentar como ao inquérito-crime, «deve ir em peregrinação a Fátima agradecer a proteção divina». Sim, mas se escapou ao inquérito parlamentar, foi por condescendência do PS, que preferiu votar contra a provocatória moção de confiança do Governo, podendo ter-se abstido, para preservar o inquérito; e se escapar ao inquérito penal, pode ficar a devê-lo à nova contenção do MP, com o novo PGR, depois de muitas investigações precipitadas e falhadas contra políticos, e da crítica que eles suscitaram. Resta saber se, ao escapar aos inquéritos, Montenegro se liberta da suspeição sobre a sua responsabilidade -, o que não é provável.
Adenda 2
Concordo com a ideia de um leitor segundo a qual o MP deveria suspender a investigação deste caso até ao dia das eleições, pois tanto o risco de "vazamento" de informações para o público, como a decisão sobre ela, qualquer que fosse o sentido, «seriam sempre interpretadas como uma interferência nas eleições, o que deve ser evitado».