7 de abril de 2010
Dormindo com Nagib Mahfuz
Pois bem! Nossa querida amiga Roberta Salgueiro me regalou com "Entre dois Palácios" o volume 1 da trilogia do Cairo escrita por esse incrível Nagib Mahfuz, prêmio Nobel de literatura. As quase oitocentas páginas do livro de início nos intimidam, mas à medida que vamos nos envolvendo com a narrativa detalhada do cotidiano do Cairo do início do século XX essa intimidação se transforma em paixão arrebatadora.
Ontem foi minha última noite da primeira temporada de romance com Mahfuz. Aguardo ansiosa pelo começo da segunda jornada. O título traduzido para o português "O Palácio do Desejo" já me deixa com água na boca e muita saudade desse amante novo que me acompanhou nas últimas semanas.
InshAllah eu consiga o livro em minhas mãos antes do cair da noite de hoje!!
17 de março de 2010
Quer dizer então que Mahmoud Reda foi discípulo de Platão?
Vejo o quanto vale a pena estudar. E tenho conseguido um feito: manter-me conectada ao blog enquanto estudo! Não é fácil. Mas é necessário, porque com quem poderei compartilhar minhas reflexões???
Estou lendo a tese de doutorado de Ana de Pellegrin. É sobre dança e filosofia, estou amando! E num dos pontos da discussão ela me vem com essa:
Note-se que o processo de regulamentação defendido por Platão era algo radical, que passava pela definição de quais passos de dança seriam adequados ou não, quais os tipos de som poderiam e deveriam ser produzidos pela voz e pelos instrumentos. Poetas e músicos, nesse caso, seriam chamados a atuar como conselheiros a serviço do Estado, emprestando sua capacidade específica de lidar com os conteúdos artísticos, pra garantir que toda música e toda dança estivessem de acordo com a legislação. (Pellegrin, 2007: 79).
E não foi isso mesmo que Mahmoud Reda fez no Egito no século XX? Regulamentou quais passos eram adequados, o que deveria acontecer com a dança? Pobre de mim que pensava que o nobre egípcio educado pelos ingleses tinha sido influenciado pelas idéias de seus colonizadores! Que nada, Reda é chique! Platônico, helênico... (quem me conhece sabe que não estou falando sério...).
Eita, estou precisando me explicar muito por aqui. Vai ver é a responsabilidade de ser lida por tantos países, pessoas mundo afora. Sabiam que teve gente dizendo lá da Itália que meu blog é pornográfico? (!!...??*%$$#$#!!!!).
É isso pessoal! E vamos que vamos!
29 de outubro de 2009
O Silogismo é a Lógica do Extremista!
Uma amiga que está morando na Itália me enviou essa semana um email falando sobre "casamentos pedófilos do Hamas". O texto, mal escrito por sinal, continha explícitas referências preconceituosas em relação aos muçulmanos. Como dizia que a fonte da notícia era de um blog jornalístico, pensei: "Pôxa vida, esses jornalistas precisam de uma dose de antropologia para que se manifestem de um modo mais adequado". O artigo ainda vinha ilustrado com fotos e vídeos, mostrando noivas mirins com seus maridos na faixa dos 25 a 30 anos, crianças sofrendo abusos e relatos sobre o incentivo de tais práticas.
Fala sobre a mutilação genital e apresenta dados estatísticos sobre abusos contra crianças no Egito e na Jordânia, além de um suposto discurso do Aiatolá Khomeini. O tal discurso poderia ser comparado à tentativa de recriação de um trecho do kama sutra para pedófilos. Pesquisei na internet e encontrei o mesmo texto publicado na íntegra no blog "Salvação", cuja logomarca é uma cruz, que por alguma razão me fez lembrar da Ku Klux Klan. Procurei a fonte jornalística anunciada no blog, mas não encontrei. Até porque ando meio sem tempo. No site principal não havia um link disponível e pesquisar poderia demorar, se alguém quiser fazer isso, depois me manda o link, ok?
O que importa dizer aqui é aquilo que me fez parar de estudar para atualizar meu blog querido. As falas generalizantes que colocam TODOS os muçulmanos, TODOS os Árabes em um saco com o rótulo de "fanáticos religiosos", "terroristas" e agora "pedófilos" são pérfidas e apenas contribuem para que o senso comum fique recheado de preconceitos e sentimentos ruins, tendo a certeza de se tratar de verdade absoluta pois, ora bolas, está publicado e a fonte é jornalística! Para justificar tais idéias utilizam trechos de biografias deslocadas no tempo e no espaço. Justificaram a pedofilia, por exemplo, dizendo que Maomé se casou com uma menina de 6 anos. Esqueceram de dizer que isso aconteceu há mais de um milênio em um contexto cultural, social, político, geográfico e religioso completamente diferente do atual.
Pensei com meus botões que esse artigo fez algo horrendo e consegui alcançar uma analogia que me satisfez. O que o artigo sobre o Hamas faz, se compara a dizer que a pedofilia na Igreja Católica foi incentivada pela famosa frase de Jesus "deixai que venham a mim as criancinhas". Pode ser que eu seja atacada por algum fanático religioso após essa postagem, mas quem tiver o mínimo de inteligência saberá o que quero dizer com essa analogia. Mesmo assim, dou uma ajudinha para os menos favorecidos: podemos justificar qualquer coisa com qualquer argumento. É a famosa armadilha do silogismo: Maomé se casou com uma menina de 6 anos; casar-se com uma menina de 6 anos é pedofilia; logo: Maomé era pedófilo! E mais: Maomé é o pai da religiao islâmica, Maomé era pedófilo, logo: os muçulmanos são pedófilos.
Posso até ir mais longe. O que justifica os abusos contra crianças no Brasil? Alguma seita religiosa? NÃO! Por que existem casamentos de crianças na Índia? Porque eles são muçulmanos? NÃO! Por que um senhor de 112 anos se casou com uma adolescente de 17 na Somália? Será que a moça é gerontófila? NÃO! Por que alguns (muitos) pais fazem sexo com suas filhas? Porque gostariam de ser os Faraós do Egito? NÃO! Melhor parar por aqui...
Por fim, gostaria de anunciar que minha próxima postagem irá discutir os resultados da enquete que se encerrou há tempos sobre "o que é dança do ventre". Um assuntinho mais light! Até lá, queimemos nossos neurônios! Salam!
2 de abril de 2009
Quem são as mulheres árabes?
O orientalismo tem definições amplas e pode ser melhor estudado a partir dos textos de Edward Said. Ele criou essa expressão que dá conta de uma série de práticas e opiniões formadas a respeito do mundo oriental, com ênfase nas abordagens sobre a cultura árabe. Muitas vezes as pessoas criam conceitos e esperam encontrar entre os árabes imagens, situações e eventos que não existem na vida real. É uma tendência a fantasiar. E quando a fantasia não está presente, a realidade pode ser frustrante. Eu utilizei o conceito durante muitos anos para falar sobre meu maior tema de pesquisa: a dança do ventre. Tentando desmistificar preconceitos e cristalizações. Mas fui a mais recente vítima do orientalismo de que tive notícia nos últimos tempos.
Como havia dito, fui assistir ao programa sobre o Kalam Nawaem esperando encontrar imagens das décadas de 1940 a 1960, porque o nome do documentário era "Rainhas da TV Árabe". Na minha mente as tais rainhas só poderiam ser aquelas que eu havia visto na televisão do Cairo e de Alexandria. Por quê? Porque eu sou o centro do universo. Então o mundo tem que corresponder às minhas expectativas.
Dei de cara com outra realidade. Pode ter o verniz estadunidense, o revestimento da ganância capitalista, o formato ocidental batido, mas era algo que eu consideraria impossível de acontecer na mídia árabe. Foi um susto. E lógico que antes de avaliar mais profundamente a questão, postei meus comentários com louvações à iniciativa, dando vivas à globalização, porque afinal de contas tenho o direito de ser público, apreciar, me deliciar e dispor de uma fatia do senso comum.
Porém, antes de me debruçar sobre este recente fenômeno do mundo televisivo dos países árabes com rigor acadêmico, gostaria de perguntar a vocês algumas coisas:
Quem são as mulheres árabes?
São mulheres oprimidas, vilipendiadas, infelizes? Quem disse? Quantas são? Onde moram? O que pensam sobre isso? O que pensam sobre as mulheres ocidentais?
Quem são as mulheres não-árabes?
Eu sou? Você é? O que podemos falar sobre as coletividades humanas?
Ando lendo sobre multiculturalismo e percebi com alegria que minhas más impressões a respeito de como esse assunto é tratado no Brasil não eram apenas fruto de minha tendência a criar polêmica. É que no texto maravilhoso de Vera Maria Candau no primeiro capítulo do livro Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas, está a explicitação de tudo o que eu andava sentindo. Simplesmente existem inúmeras maneiras de abordar o multiculturalismo e no Brasil temos uma base muito forte, mas apesar disso, nossos discursos e práticas ainda estão longe de aplicar os princípios da alteridade. As duas concepções de multiculturalismo mais presentes nas sociedades atuais são: a abordagem assimilacionista e a monocultura plural (termo cunhado por Amartya Sen, 2006).
A primeira propõe uma universalização e estratégias compensatórias, onde acaba se defendendo uma cultura comum e hegemônica, tirando a legitimidade das variações de linguagem, valores, crenças, saberes, etc. Enfim, para fazer parte do todo os indivíduos acabam por abandonar o que os torna singulares.
Já na segunda abordagem a ênfase está no reconhecimento das diferenças. Mas a desvantagem fica na tendência a criar uma visão essencialista e estática da formação das identidades culturais. Os grupos se dividem em diversos segmentos, criando "verdadeiros apartheids socioculturais" (pg.22).
Posso dar exemplos das duas práticas apenas a partir do raciocínio que venho desenvolvendo sobre as mulheres árabes. Num primeiro momento, quando fiquei feliz por vê-las integradas ao mundo globalizado da mídia, dei vivas, porque assim haveria uma universalização e eu me sentiria mais próxima daquelas mulheres. Elas estavam ocidentalizadas, uma estratégia compensatória, então meu primeiro pensamento foi: "Estão vendo? As mulheres árabes não estão mais tão diferentes de nós!". Num segundo momento, quando tento apontar que existem as mulheres árabes que não usam véu, as mulheres árabes que estudam, as mulheres árabes que ocupam cargos importantes, as mulheres árabes mães de família, as mulheres árabes que se masturbam (como mostrado no programa da GNT), as mulheres árabes que se filiam ao terrorismo, etc, etc, etc, estou praticando o multiculturalismo diferencialista (ou monocultura plural).
Difícil mesmo é alcançarmos a Interculturalidade...
Mas aí é outro texto. Ainda chegarei lá!!! Allah u Akbar!
28 de março de 2009
Conversa Mole? Só se for no Brasil...
Dia desses, vi que o canal GNT apresentaria um documentário em homenagem ao mês da mulher (março é o mês da mulher, os outros são de quem?). O que me chamou a atenção era o título do documentário: Rainhas da TV Árabe. Não pude assistir na primeira exibição porque tinha o aniversário de uma amiga, mas de pronto peguei os dias onde seria exibido novamente e anotei os horários.
Aguardei ansiosa ao grande dia e esperava encontrar alguma coisa sobre as atrizes, talvez algo falando sobre Fifi Abdo, da qual sou grande fã, apesar de ela dizer publicamente que prefere ser atriz a dançarina. Feio isso, não querer ser reconhecida pela dança, mas tudo bem, eu perdôo. Afinal a dança que ela traz em seu corpo prescinde de qualquer outro mecanismo para ser gostada. E suas opiniões pessoais realmente não interferiram em meu juízo de valor.
Fui surpreendida por um documentário que falava sobre o programa de televisão de maior audiência no mundo Árabe. É uma espécie de Saia Justa (aquele outro programa da GNT). Quatro mulheres de diferentes países árabes, uma delas sempre utilizando o véu para cobrir os cabelos enquanto as outras três se exibem em figurinos pra lá de ocidentais. Fiquei pasma! Além de amealhar uma audiência em torno de 200 milhões de telespectadores a cada programa, aquelas senhoras falavam sobre temas que me impressionaram, e eu que tinha ido ao Egito em 2005 e achava que sabia da vida de lá.
É que quando estive no Egito naquele ano, tinha a impressão de ter feito uma viagem no tempo. Acho que por isso cristalizei uma impressão de que desde aquela época nada teria mudado e se eu fosse novamente até lá, viajaria novamente no tempo e estaria com a sensação cultural de alguma década do século passado. Mas não! Graças aos deuses, o programa foi ao ar em 2006 e eu lamentei não ter testemunhado tudo o que ocorreu desde então.
No documentário vi algumas das reportagens das quatro apresentadoras do Kalam Nawaem. No Brasil traduziram o nome do programa para “Conversa Mole”. Que lástima! Meu amigo egípcio me disse que na realidade a tradução deveria ser “Conversa Delicada”. Também acompanhei a opinião do público a respeito do que era apresentado na TV. Os temas eram: masturbação, homossexualidade, terrorismo, cirurgia plástica, sexo pré-marital e educação sexual. O público se manifestava de variadas formas. Um telespectador chegou a enviar uma carta onde dizia que o lugar das apresentadoras era no inferno. Elas fizeram questão de ler a carta durante o programa, como forma de polemizar a respeito de atitudes como a daquele leitor que se dizia muçulmano. Elas questionavam se era correto que um adepto do Islã se comunicasse com elas em termos de baixo calão, praguejando e desejando o que existia de pior. Pensei comigo: corajosas, as meninas! Mais uma vez me orgulhei de ser mulher.
Passei a olhar no Youtube algumas entrevistas, embora eu não consiga entender muita coisa. Com a ajuda do meu referido amigo egípcio, assisti a uma entrevista de dois atores sírios onde diversos estereótipos da sociedade árabe eram discutidos em termos bastante sérios e profundos. Também fiquei muito feliz com a entrevista de Sami Yusuf, cantor de quem sou fã desde o primeiro contato nos programas de televisão egípcios de
Estou em busca de imagens do programa onde a dança seja tema. Talvez seja pedir muito. O programa ainda nem completou 3 anos de existência e já fala de homossexuais e mulheres que se masturbam. Falar de dança ali ainda seria muito chocante! Está certo que nem tudo está às mil maravilhas, o homossexual que deveria comparecer ao programa foi ameaçado de morte e teve que ser entrevistado por telefone. A mulher que dava seu depoimento sobre masturbação estava no escuro, não se podia ver sua fisionomia. Mas ainda assim, dei vivas a tanta mudança de comportamento! Para algumas coisas a globalização funciona. Kalam Nawaem é um exemplo disso.
Talvez o melhor resultado que esse programa venha a alcançar é a mudança orientalista de nossas visões ultrapassadas a respeito da coletividade árabe. Eu mesma, que morei numa família do Cairo durante minhas pesquisas de campo, fiquei surpresa com as minhas reações em relação ao documentário. Esperava menos. Ainda bem que estive enganada. Al Hamdo LeAllah!!
12 de março de 2009
E a vovó foi pro asilo...
A dança do ventre é avó da dança contemporânea. Mas a dança contemporânea, com vergonha desse parentesco, tratou de colocar a velha num asilo. Afinal, a coroa à solta por aí dá trabalho demais, subindo em cima das mesas, freqüentando boates e cabarés, locais impróprios para uma senhora de idade tão avançada...
Ironias a parte, duas das três precursoras da chamada dança moderna se inspiraram na febre orientalista que tomou conta do cenário artístico e cultural da segunda metade do século XIX, como aponta Toni Bentley no livro Sister of Salome. Loie Fuller e Ruth St. Denis buscaram nas danças orientais os temas que proporcionaram alternativas aos padrões vigentes na época. Os planos de luz que utilizavam, figurinos, véus e aromas são provas da participação da dança do ventre nas idéias de suas composições artísticas.
Fuller se destacou por trabalhar com véus, construindo estruturas de grandes proporções que cobriam praticamente todo o seu corpo. Denis foi arrebatada pela cultura oriental a ponto de alguns autores escreverem que o orientalismo era a sua religião (BENTLEY, 2002: 44). Numa época onde as mulheres só trabalhavam com dança se estivessem vinculadas a alguma grande companhia, Ruth St. Denis optou pela carreira como criadora e bailarina independente após entrar em contato com a imagem de uma deidade egípcia em um pôster. Essa imagem a "hipnotizou", fazendo com que passasse a pesquisar um estilo de dança interpretativo. Seus temas eram usualmente "exóticos" e sua dança tinha como principal meta mostrar ao público ocidental que as danças do oriente eram reais e não fantasias de contos de fadas (BUONAVENTURA, 1998: 124-6). A terceira precursora era Isadora Duncan, que se libertou do espartilho inspirada pela cultura helênica. Mas a dança do ventre, embora seja uma prática popular também na Grécia, não exerceu maiores interferências no trabalho de Duncan.
Os véus de Loie Fuller são muito similares aos conhecidos véus wings utilizados atualmente pelas dançarinas do ventre. Não há como saber qual dos véus veio primeiro, se Fuller se inspirou em estruturas que já existiam nas danças orientais ou se a dança do ventre se aproveitou de uma inovação da artista para criar um novo estilo. O que se sabe é que quando em 1892 viajou dos Estados Unidos - sua terra natal - para a Europa com o objetivo de dançar em Paris, Fuller já possuía uma longa carreira como performer e era conhecida por utilizar véus de seda e efeitos de luz (BENTLEY, 2002: 44). Considerando-se que a dança do ventre só passou a ser mais amplamente divulgada em solo americano na última década do século XIX, podemos imaginar que há uma maior probabilidade de que Fuller tenha desenvolvido essa criação, ampliando os véus com extensores de madeira nas pontas. Talvez ela tenha se inspirado nos véus das danças orientais e contribuído para torná-los mais compridos.
Em meados do século XIX foram organizadas exposições mundiais no ocidente que divulgaram, entre outras coisas, culturas de vários países promovendo um intercâmbio artístico onde bailarinas do oriente migraram para Europa e América. Mas as atrações mais genuínas algumas vezes não agradavam ao público, como na descrição do que aconteceu com o Palácio Persa de Eros construído na Grande Exposição Mundial de Chicago em 1893. Segundo as pesquisas de Linda Carlton, publicadas em seu livro Looking for Little Egypt, uma autêntica companhia persa foi trazida para demonstrar habilidades atléticas, o tear de tapetes e lapidação de pedras preciosas naquele palácio construído numa área especial para o entretenimento daquela exposição. Mas o público não tolerou o caráter instrutivo dessas atividades e o desapontamento transformou a atração em um grande fiasco, fazendo com que seus gerentes mudassem radicalmente a programação. Dançarinas de Paris com suas danças e roupas pseudo-orientais, rapidamente trouxeram a audiência esperada, ainda que o público fosse exclusivamente masculino (CARLTON, 2002: 20-3).
A preferência dos consumidores pela farsa fazia com que os artistas modificassem suas obras com o objetivo de permanecer em cartaz e garantir seus cachês. Com as danças se deu um processo de modificação e incorporação de elementos ocidentais tais como uso do espaço cênico e do corpo, instrumentos musicais e figurinos. Ao que tudo indica antes do século XIX não existia o que hoje conhecemos por dança do ventre. O que havia eram diversas manifestações artísticas nos inúmeros países árabes, como ainda hoje podem ser vistas. Mas quando passaram a se apresentar no ocidente, essas manifestações foram se homogeneizando, dando origem ao que hoje conhecemos como dança do ventre. Essa dança, então, teria características de várias danças de diferentes países do oriente somadas aos movimentos rebuscados das danças ocidentais. O resultado foi o desenvolvimento de uma arte híbrida que passou também a ser praticada nos países árabes e orientais como um todo, num processo de retroalimentação.
E todo esse processo fertilizou o solo cultural e artístico do início do século XX para que germinassem os primeiros passos da dança moderna, libertando os pés das sapatilhas e os corpos dos movimentos codificados do balé clássico. A partir disso, outros processos criativos pipocaram pelo mundo afora, culminando com o que hoje conhecemos por dança contemporânea. Porém, não se fala sobre essa relação entre dança do vente e as tendências artísticas mais valorizadas na área de dança. É um assunto tabu. E a dança do ventre permanece um tema praticamente invisível, principalmente nas pesquisas universitárias.
Um conceito útil para se compreender como a dança do ventre pode exercer fascínio e ao mesmo tempo permanecer subvalorizada no cenário artístico ocidental é discutido por Joshua Taylor, em seu artigo "Two Visual Excursions". Taylor fala do excitamento diante do exótico e desenvolve o conceito de "artefato etnológico"(i) para teorizar sobre o contato ocidental com obras de arte provenientes de outros contextos culturais. Segundo esse autor, independentemente de possuirmos um conhecimento prévio sobre a cultura de onde a obra se originou, podemos experimentar uma espécie de hipnose diante de suas formas.
No caso da dança do ventre essa hipnose é reconhecida e descrita por Wendy Bounaventura em dois de seus livros com a mesma citação do escritor francês Charles Gobineau, que registrou suas impressões sobre o contato com aquela dança da seguinte forma:
Horas se passam e é difícil mandar alguém embora. É dessa forma que os movimentos das garotas dançarinas afetam os sentidos. Não há variedade ou vivacidade e raramente existe uma variação para algum movimento súbito, mas os giros rítmicos exercem um torpor delicioso sobre a alma, como uma intoxicação quase hipnótica (GOBINEAU apud BUONAVENTURA, 1998: 16; 2004: 263)(ii)
Quando Taylor apresenta a noção de "artefato etnológico" ele o faz em oposição ao termo "arte". Refere-se ao modo como são denominadas as obras provenientes de outras culturas quando catalogadas no ocidente e discute a dificuldade encontrada pelos críticos de arte em defini-las, quando essas obras passam a fazer parte do acervo dos museus como objetos artísticos. Isso ocorre porque muitas vezes esses objetos são coletados com finalidades arqueológicas ou antropológicas e os textos científicos são as fontes mais utilizadas como referência para falar sobre esses "artefatos" (TAYLOR, 1980: 26-36).
As danças orientais apresentadas na Exposição Mundial Chicago, ainda que se questione sua autenticidade, arrecadaram imensas quantias em dinheiro por causa do grande choque causado às mulheres da Era Vitoriana, que viviam apertadas em seus espartilhos e aprendiam os passos de suas danças refinadas e "civilizadas" com professores especializados. O sensacionalismo despertado a partir dos movimentos improvisados e "selvagens" dos quadris das dançarinas da feira atraíram milhares de curiosos, que muitas vezes chegavam a Chicago com o único objetivo de assistir a essas apresentações (CARLTON, 2002: 46-7).
O ocidente está condicionado a um modo de ver a arte. O artigo de Joshua Taylor sugere que conceitos e idéias ocidentais precisam ser revisados. Quando se fala em dança do ventre é comum que os profissionais contemporâneos da área de dança sejam remetidos a essa noção de "artefato etnológico". Como se não fosse uma dança artística e sim algo funcional, voltado para o entretenimento, que não possui atributos válidos para ocupar um palco, para ser pesquisada como tema central de um trabalho acadêmico ou servir de inspiração para trabalhos contemporâneos de arte. A falta de isenção na avaliação de objetos de arte de outras culturas coloca em risco o sentido inerente à criação desses objetos. A carga cultural da qual os críticos de arte e outros profissionais do ocidente estão imbuídos contamina as descrições e os juízos a respeito das obras, porque raramente essa carga é reconhecida por esses profissionais.
É tanto que, mesmo exercendo papeis históricos importantes, as danças orientais não estão catalogadas nos livros mais conhecidos de História da Dança. Desacreditada a dança do ventre passou a perambular às margens do cenário artístico contemporâneo, como se fosse um membro indesejável de uma família que não quisesse tê-la por perto. E assim, a vovó mais uma vez vai para o asilo, pra onde são enviados aqueles que se deseja evitar. Mas o fato de a terem ignorado não fez com que fosse totalmente esquecida, tanto é que agora surgem pesquisadores dispostos a rasgar o véu que a deixou invisível em alguns cenários por um certo período.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTLEY, Toni. Sisters of Salome. New Heaven:
BUONAVENTURA, Wendy. Serpent of the
CARLTON, Donna. Looking for Little
MARTIN, Randy. "Dance Ethnography and the Limits of Representation" in DESMOND, Jane C (Ed.). Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance (Post-contemporary Interventions).
TAYLOR, Joshua C. "Two Visual Excursions" in MITCHEL, W.J.Thomas (ed.). The Language of Images.
Artigo extraído da internet:
MENDES, Ana Carolina. "A dança que vemos, que nos olha" [online]. Artigo apresentado no 13º encontro da ANPAP, Disponível na Internet:
Acesso em 22/12/2004.
i"Ethnological Artifacts" (Tradução Livre da Autora do Trabalho).
ii "Hours pass, and it is difficult to tear oneself away. This is how the motions of the dancing girls affect the senses. There is no variety or vivacity, and seldom is there a variation through any sudden movement, but the rhythmic wheeling exerts a delightful torpor upon the soul, like an almost hypnotic intoxication." (Tradução Livre da Autora do Trabalho).
7 de fevereiro de 2007
O Ventre dos Homens
Homem tem ventre?
Tive uma professora de dança do ventre que adorava ser sádica com os homens e sempre dizia que eles eram desprovidos de ventre, porque não podiam gerar vida, não tinham útero, ovários... O Dicionário Júnior da Língua Portuguesa de Geraldo Mattos (2001) apresenta três definições do que seja ventre
sm. 1. Parte do corpo humano e de outros animais vertebrados onde estão localizados o estômago, os intestinos e outros órgãos: abdome, barriga - O médico apalpou o ventre do menino. 2. Região que fica por baixo da pele dessa parte - O menino sente dores no ventre. 3. Parte do corpo feminino onde a criança se desenvolve antes de nascer: útero. (pg.722).
Tendo em conta as duas primeiras definições e os exemplos dados com o ventre do menino, presumo que, apesar da terceira definição, homens têm ventre.
E no Egito não só têm o ventre como dançam. Dança do Ventre.
A dança do ventre masculina é uma controvertida temática, porque no Brasil muitos de nós já assistimos a performances masculinas, peculiares, por vezes bizarras. Homens travestidos ou que se fazem femininos. Alguns que chegam disfarçados, andróginos e que em certos momentos de suas danças revelam seu segredo - o fato de serem homens. Com um certo prazer irônico, tipo "enganei vocês, vai dizer que o senhor não sentiu tesão por mim, seu pervertido!". Detesto essas danças. São de mau gosto! E não é sobre elas que quero falar. Muito menos dar força a essas práticas, legitimá-las. Dancem como queiram. Só não contem com o meu apoio e apreciação.
Pois bem, voltando ao Egito, quando lá estive em novembro de 2005 assisti a muitas dessas danças masculinas, com movimentos idênticos aos que eu aprendi em sala de aula, ondulações, tremidos, oitos de quadril, camelo... Eles dançavam, mas não eram femininos. Eram viris. Estavam por todo canto, nas esquinas, nos mercados, nas ruas, nas casas e na televisão. Conquistando as mulheres com suas danças do ventre.
Curiosa sobre essas manifestações até então por mim desconhecidas, foi com grande satisfação e surpresa que dei de cara com o livro Coreographics Politics de Anthony Shay (2002). Esse livro é uma preciosidade, por abordar as políticas coreográficas responsáveis por imagens equivocadas das manifestações artísticas em diversos países. Assunto vasto, para outros vários artigos. Mas quando fala sobre a dança egípcia masculina, Shay trouxe para a minha vida revelações surpreendentes.
Quando define o que é a dança do ventre, Anthony Shay afirma que é uma dança solo praticada por homens e mulheres. Mas a performance masculina teria, segundo ele, sido suprimida pela mentalidade colonialista dos britânicos e franceses que dominaram o Egito e desenharam um modelo do que fosse adequado ou inadequado para o cidadão egípcio que pretendesse se "civilizar". Em 1881 e 1882 se instalaram no Egito escolas com o sistema britânico de ensino, onde foram amplamente difundidos textos que continham idéias sobre o atraso, a negligência moral e a indolência dos egípcios. Também enfatizavam a necessidade de se adotar a moral inglesa. Tudo isso foi prontamente absorvido pela população.
Assim, o conhecido coreógrafo Mahmoud Reda desenvolveu estratégias coreográficas que lhe renderam suporte financeiro e apoio governamental, tendo como primeira grande mudança artística em sua companhia a proibição da dança do ventre masculina. Essa proibição, segundo Shay, seguiu as recomendações governamentais sobre quais seriam "os movimentos apropriados ou não para o corpo masculino (inglês, e agora egípcio)" (p. 148).
E então, numa atitude parecida com a da minha professora de dança do ventre, o tal coreógrafo pareceu dizer que homem não tem ventre. Ou pior ainda, Mahmoud Reda amputou o ventre dos homens egípcios, roubou-lhes o direito de dançar daquela forma. Mas graças aos deuses, essas mudanças oficiais não conseguem apagar a força vital da corporalidade humana. E, como ocorre em grandes manifestações de resistência, eles continuam a vibrar, ondular, seduzir e encantar com seus ventres masculinos.