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05/11/2012

A Fábrica de Letras

A Fábrica tem paredes feitas de papel. Papel pautado, papel liso, papel quadriculado, amarrotado, imaculado, de todas as cores, com cheiros distintos, onde se misturam caligrafias diferentes.
A Fábrica tem uma chaminé muito alta que fumega especialmente nos primeiros dias de cada mês, quando cozinha um novo desafio. Os bloggers que têm janelas viradas para a Fábrica apercebem-se do bulício e atiram-se cheios de garra ao novo tema... Tantas ideias, tantas palavras se cruzam e chocam... e os caminhos para a Fábrica ganham vida e, aos poucos mas certamente, lá vão chegando participações, contribuições, partilhas, dádivas. E as paredes da Fábrica ganham uma nova cor e são ricas, muito ricas!
Eu sou uma operária. Vim aqui parar por intermédio da Fabi. Observei os operários mais antigos, aprendi e, depois de ganhar confiança, comecei a contribuir com as minhas palavras...
A Fábrica não está sujeita a greves, nem a ataques de sindicatos. A Fábrica é liberal. É uma entidade patronal simpática, muito lá à frente.
É uma Fábrica de Letras e Palavras, onde se fabricam também elos de ligação entre bloggers desconhecidos que, por um momento, se detêm numa mesma palavra ou tema e se atrevem a deixar a sua alma, os seus olhos e o seu coração abertos para quem os quiser ler, nas paredes da Fábrica.
A Fábrica é linda!
 
 
Como é mais do que evidente, este texto é feito para a Fábrica de Letras, cujo tema para o mês de Novembro é ela própria, a Fábrica.
 

17/06/2012

A minha noite perfeita

Ao sair de casa, uma estrela cadente é sinal bastante auspicioso. A maior, melhor de sempre.
Respondemos ao chamamento sedutor de um cartaz a anunciar "Tarot", como se o futuro pudesse ser desfeito ali, entre véus sujos, num baralho gasto. Deixamo-nos convencer da ilusão e esquecemos que o dia-a-dia, o escolha-a-escolha é que nos faz.
Esquecemos que, momentos antes, alguém  desviou um contentor para podermos estacionar o carro. ...mesmo que antes disso o carro tivesse já marrado violentamente num pino de ferro. O Tarot que tente adivinhar isso, que tente saber de onde vêm os actos de generosidade gratuita e de encantamento.
Que importa quanto tempo esperámos? Que importa a espera, se o prémio chegou, por fim? Então, que durante a espera se jogue palavras-cruzadas ou se conte estrelas, mas que se espere com serenidade.
Hão-de vir os três irmãos encantadores, o bonito com o sorriso, o santo com a sua bênção, o misterioso com um licor adocicado.
Nestes momentos, esquecemos a previsão negativa de uma mulher agoirenta e infeliz, e deixamos de acreditar no passado conspurcado que nos corrompe, ainda. Entre um copo de plástico cheio até à borda de "Txiripiti" caseiro e um cocktail luxuoso com sabor a manga e um pau de canela flutuante.
Ao vir para casa vamos passar por um senhor vestido de escuro que, encolhido num canto da rua, come de um saco de plástico. Aí, só aí, vamos dar valor à perfeição em que vivemos.

Para a Fábrica de Letras, este mês com o tema PERFEIÇÃO

13/10/2011

Visita à Invicta

Mal entrei no comboio, deu-me vontade de escrever. Não tinha o computador comigo. Nem sequer um mísero bloco... Então agarrei em alguns talões do multibanco que, dadas as circunstâncias, teriam que servir...


Estações de Comboio são lugares admiráveis. É sempre comovente ver os que partem serem acompanhados pelos que ficam. Tristeza de uns, saudade de outros. Ou então alegria e inveja, respectivamente. Os momentos antes da chegado do comboio, de excitação. O ar que se respira frio e novo. Depois, o embarque, a confusão. Tomados os lugares, o clímax: o acenar, os últimos sorrisos atirados. Mulheres que acenam aos maridos, jovens militares que se despedem das namoradas como se estivessem prestes a embarcar para África, novamente. E, depois, o momento em que a carruagem arranca, invertendo tudo: um momento de protagonismo na linha central da estação, por um comboio anónimo a circular num linha perdida no meio de nenhures. E as pessoas, amadas e olhadas com olhares amantes lá de fora, de repente convertem-se em estranhos partilhando a mesma carruagem e o mesmo ar.
Era aquele o momento que mais me doía e prolongava-se um pouco, enquanto o comboio percorria a cidade. E depois afastava-se. Até que, numa curva do monte, deixava de se ver completamente. Aí era o vazio. Só o rio permanecia visível. O rio que era como um fio que eu sabia que ia dar à minha terra. À minha casa.


Este post é para a Quelinha; motivo da minha visita e companhia em tantas viagens iguais.


Texto original postado a 10 de Março de 2010, repostado para a Fábrica de Letras, tema do mês de Outubro: Viagens.

21/09/2011

Eu finjo




Pois está claro que finjo. Podes condenar-me?! Mas o meu fingimento não é como os demais... O meu fingimento é na proporção do meu amor. Quanto mais te amo, mais preciso fingir.
Finjo que não dependo da visão de ti para respirar, nem de te tocar para ouvir uma melodia que mais ninguém ouve, nem de sentir o teu cheiro para que o doce saiba a doce... Sinestesias, não é como chamam à intersecção de sensações? Finjo para que penses que estou contigo por opção, por vontade, não por dependência.
Finjo gostar de todas as tuas piadas, finjo não me importar que te atrases, finjo não reparar nas bacoradas que dizes, finjo nunca estar cansada para ti, finjo que não sinto o estômago revolto de cada vez que te vejo ou que se diz o teu nome, finjo não sentir um
micro-arrepio de cada vez que ouço a tua voz, finjo não sentir ciúmes do tempo que não passas comigo, finjo alegrar-me efusivamente com as pequenas ninharias que te fazem feliz... Finjo ajustar-me perfeitamente a ti.
Se não te amasse tanto, dava-me tal como sou. Em vez disso, sou uma fraude, mas uma fraude perfeita para ti.
E depois asfixio. Porque "o mundo do fingimento é uma jaula, não um casulo". Finjo por ti, por amor a ti. Finjo para te saber merecer e depois, porque é tudo fingimento, perco-te por não te saber ter.
Escrito para a Fábrica de Letras, mês de Setembro, tema: Fingimento.

05/07/2011

Segredo é o que se diz baixinho ao ouvido de toda a gente

Eu tenho uma tatuagem. Isso não é segredo. Mas tenho a minha tatuagem como quem tem um segredo. É na omoplata: passa a maior parte do tempo coberta.


Há pessoas a quem digo que a tenho, há pessoas a quem a mostro e há pessoas que não fazem a mínima da existência dela...

Quando estou exuberante, uso alças ou tops que a deixem completamente descoberta... mas se encontro alguém mais velho ou conservador ou que eu ache promíscuo, posiciono o corpo de forma a que não seja visível. Quando estou mais séria ou macambúzia, cubro-a. Quando estou provocadora, uso uma t-shirt sem mangas que deixe ver apenas uma pontinha... Porque tem infnitamente mais graça mostrar só um pouco do que mostrar tudo. Para apimentar a curiosidade. Para despertar vontade de conhecer o resto.

Já houve quem torcesse o nariz ao vê-la, como que condenando a atitude e a profanação irreversível do meu corpo. Já houve quem a elogiasse por ser bonita. E já houve quem dissesse baixo, com cumplicidade e apetite, "adoro tatuagens...".

Tenho-a. É minha. Partilho-a ou não, conforme me apeteça. Uso-a. Ostento-a ou escondo-a. É conforme.

Não será isto, afinal, o que fazemos com os nossos segredos?



Para a Fábrica de Letras. Mês de Julho, Segredo

13/06/2011

Fight Club

Na véspera, já só consigo pensar nisso... Que está quase! Stress acumulado, frustrações engolidas, ultrajes suportados... tudo ficará sanado em meia dúzia de golpes enraivecidos.


No Dia D, visualizo e anoto mentalmente motivos e pretextos. Devem ser todos bem insuflados para que nenhum atentado ou nódoa fique sem resposta e para que não me falte a convicção, a força e a raiva em algum dos assaltos. Tudo devidamente avivado e catalogado, começo a preparação. A adrenalina já sobe e as mãos tremem-me enquanto aperto com força os atacadores das sapatilhas. A roupa é confortável, sempre. E larga, solta. Para que não prenda ou refreie os movimentos.
Parto confiante e feliz e vou ganhando confiança e estatura à medida que avanço. Mal posso esperar por ouvir o primeiro toque do gongo. O começo é sempre moderado, um aquecimento, uma habituação aos movimentos pouco costumados. Estico o braço direito, punho bem cerrado, nós dos dedos cortando o ar, o tronco acompanhando o movimento do braço para dar mais intenção ao golpe. Preparo uma série de joelhos aguçados e termino com pontapés bem lançados.
Diante dos meus olhos desfilam rostos, ora sorridentes, ora amolgados pela força vingadora da minha sapatilha. Viro-me, troco de perna e recomeço. Ouço as vozes dos que me atacaram e abafo-as com os meus gritos de guerra, dignos dos filmes do Van Damme.
O ar, pobre dele, não me responde e é por isso que, com meia dúzia de golpes e Yahhhhhhhs! eu consigo sentir-me quite com o mundo e com os outros. A sala está cheia de gente que, apesar de concentrada no mesmo que eu e repetindo os mesmos golpes, está imersa num mundo só seu, a curar os seus próprios rancores.
O Body Combat é isso. Uma espécie de Fight Club onde todos se respeitam demasiado para se agredir entre si. Em vez disso, vamos golpeando o vazio à nossa volta, preenchido por cada um ao sabor da sua raiva. Os espelhos vão embaciando, como se a ira se evaporasse directamente pelos poros e se fosse colar ali, visível e apaziguadora.
Chegádos cá fora, ninguém suspeita o ritual que levámos a cabo. É doloroso e cansativo, mas essencial. Terapêutico. Porque não podemos agredir, esbofetear e pontapear abertamente o pessoal que por aí anda, mesmo que mereçam. Aquela sala é confessionário e sanatório, onde descarregamos sem o risco de que outro punho venha desenfreado em direcção às nossas caras larocas.
Para a Fábrica de Letras, mês de Junho - "Os Problemas Resolvem-se à Chapada"

09/05/2011

Ainda quero saber o que acham...

Parece uma canção de namorados... A mim, sempre me pareceu uma canção para a mãe.
A pretexto agora do desafio da Fábrica, sempre quero ver o que acham dela...



"Pelo Céu, às cavalitas
Escondi nos teus caracóis a estrela mais bonita que eu já vi

Eu cresci com um encanto de ser caçador de Sóis
Eu já corri tanto, tanto, para ti

Fui um príncipe encantado, montado nos teus joelhos
O eterno enamorado, a valer

Lancelote de algibeira, mas segui os teus conselhos
Pra voltar à tua beira e ser o que eu quiser

Os teus olhos foram esperança, os meus olhos, girassóis
Fomos onde a vista alcança da nossa janela

Já deixei de ser criança e tu dormes à lareira
Ainda sinto a minha estrela nos teus caracóis."
"Caçador de Sóis", Ala dos Namorados

17/04/2011

D.D.R.* de Ternura

Obrigada por estares comigo; por me veres de todas as formas. Pelo teu toque inesperado que conforta; por pressentires os meus humores; por esta mão que é o fio de Ariadne que mantém a minha sanidade num ponto "recuperável", quando eu acredito tantas vezes que ela é líquida e vaza das minhas mãos, da minha cabeça, irremediavelmente. Por acrescentares tantos e tantos sorrisos e outras tantas gargalhadas à minha média diária. Espreguiço-me e recebo esse abraço electrizante. Revigorada, digo-te "obrigada por este bocadinho", e desligo. Vou dormir agarrada ao telefone, a tua mão, o teu ouvido, a tua boca.

Foi o momento de ternura do meu dia em que o sol brilhou com laivos de cinzento. Foste tu que mo deste.


*D.D.R. = Dose Diária Recomendada

Para a Fábrica de Letras, mês de Abril: "Ternura".

17/03/2011

Pele

Uma música inocente e sedutora. Com uma carga insuspeita mas fortíssima.... como a própria violência.



Música Pele, dos Pólo Norte.
Para a Fábrica de Letras.

14/02/2011

Compreendes o que digo?

...
...cuidado... Vai andando... Oxalá não te vejam. Se te virem, oxalá não te notem. Se te notarem, oxalá não te interpelem. Se te interpelarem, oxalá não te incomodem. Se te incomodarem, oxalá não te sufoquem...
Vai andando... Estão a ver-te! ...age normalmente. Notaram-te. Vêm na tua direcção para te interpelar... Calma... Calma, não! foge! Foge, agora... Esquiva-te. Hesitaste. Agora deixa-os interpelar-te. De certeza que te vão incomodar. Calma. Respira fundo. Não tens que. Ninguém te obriga a. Mas vai parecer mal se não fores. Diz que sim. Diz que vais. Arranjas uma desculpa depois. Diz-lhes "logo se vê", se não quiseres comprometer-te.
Comprometeste-te. Vão sufocar-te. Sabes que sim. Já aconteceu outras vezes, porque haveria de ser diferente agora?
Mas vai com calma. Respira fundo. Conta até dez. Aquece as mãos. Agarra qualquer coisa com força, para que não tremam. Olha, o céu ainda é azul. E já ninguém olha para ti agora. A vida segue. O mundo não tomba. Depois vais, se quiseres. Se não quiseres, inventas uma desculpa... Que disparate. Não sejas ridícula. Não inventas desculpa coisa nenhuma. Meteste-te nelas, agora aguenta. Se arranjares desulpas estarás a fraquejar. A subestimar-te. O pior que pode acontecer é caíres...
Vais cair. Vais cair porque não consegues abstrair-te de mim, da minha voz dominadora. Vale mais fugires. Não vás. Não te deixes levar indolentemente para o meio deles. Arranja uma desculpa. Ninguém te vai chamar louca. Só tu é que vais saber. Só tu é que me ouves. Não vás. Foge... Tu queres ir? Mas não podes. Tu vês demais. Tu não és igual a eles. Tu tens uma carga diferente. Inventa. Arranja-te. Não vás.
Isso... Devagar. Afasta-te. Já não te vêem... Caminha direita. Com cuidado. Vai andando...

Para a Fábrica de Letras, mês de Fevereiro: A Loucura.

04/02/2011

A loucura é...


... como o pipo de uma panela de pressão.

Tem que ser mantido limpo, fresco e arejado. Se entope, a panela explode.

As baforadas e apitos que vai libertando são um indicador da atmosfera que faz no interior e, consoante aqueles, vai-se regulando a potência da chama que aquece a panela.

Tem que ser da medida certa. Se for demasiado grande, a panela perde toda a funcionalidade. Se for demasiado apertado, não vai conseguir libertar a pressão que se produz no interior de forma eficaz...

Cuidem dos vossos pipos. Para vosso bem e para bem da cozinha inteira porque, se explodirem, vai ficar toda suja...
Para a Fábrica de Letras, mês de Fevereiro, tema: Loucura.

08/01/2011

Auto-preconceito

Desde que tinha idade para ponderar nessas coisas que, ao longo da vida, lhe foram lapidando a personalidade, que tinha consciência que fora sempre irremediavelmente excluída e complexada de inferioridade.
Deram-lhe o nome de Nádia, o que não poderia ser um bom augúrio. De cada vez que chamavam por ela, o som que lhe sintonizava a atenção era aquele doloroso Náááádia, demasiado próximo de Nada. Como te chamas? Nádia, nada, não existo.
Na escola fizera parte das minorias: a minoria que participava nas olimpíadas de matemática, a que vestia a roupa que a mãe escolhia, a que não ia fumar para trás do pavilhão de mecânica (porque, quando o fazia, sentia peso na consciência), a que, mesmo aos 13 anos, continuava a não evidenciar os sinais físicos da tão ansiada e temida "puberdade", a que dava a volta ao campo para deitar o pacote do Santal no caixote do lixo... A sua tribo era a dos excluídos, onde constavam "a gorda", "a queque", "a betinha", "a marrona", "a infantil", podendo ela catalogar-se como qualquer uma das três últimas. Por algumas vezes tentou uma emancipação: renegou a sua tribo de desajustados e infiltrou-se por entre a "malta fixe", ostentando um à-vontade, sentido de humor e rebeldia postiços que lhe assentavam tão mal como um nariz de palhaço num rosto sisudo. Lá voltava ao estatuto inicial, mas com um novo título: excluída-rejeitada.
Namorados, houve-os, embora raros. Acabavam invariavelmente entediados pela sensaboria comodista e rasteira que constituíam o dia-a-dia dela e, aspirando às vibrações próprias e devidas à sua idade, punham-se discretamente a milhas, balbuciando uma desculpa que esperavam ser suficiente para não ferir os sentimentos daquele pedaço de vidro, frígido e insípido de tão transparente.
Um dia, falaram na TV acerca da importância que a atenção e apoio dos pais tem no desenvolvimento da auto-confiança dos filhos. "Talvez tenha sido isso que me faltou um bocadinho", justificou ao ver aflorar-lhe à memória a condescendência da mãe, que dizia "que bom, que bonito!" a tudo, e a indiferença do pai, que achava que ela tinha era "muita letra" mas não valia uma merda...
A vida adulta trouxe-lhe um mundo mais justo, onde os rótulos são mais coloridos e menos standardizados do que na escola preparatória. Ainda assim, ficou o gatilho. Se não esperam por ela ou se cochicham discretamente, ela volta a ser a miúda feia e desajustada que ficava encostada ao muro da escola a ver os outros serem normais. Já só ela conhece essa miúda. O preconceito é todo seu. Ela odeia aquela rapariguita desajustada e infantil que foi. Não imagina que o pior preconceito é o que sentimos por nós próprios e não antevê que o preconceito costuma desembocar no impulso desvairado de extermínio do sujeito causador do fastio. No caso, ela própria.
Que queres comer hoje?, indagou a mãe.
Interrompida nestas divagações, exalou um "não sei" demasiado inexpressivo, demasiado ausente...
O que tens? - pergunta a mãe, preocupada ante o tom pouco costumado.
Nada - foi a resposta. - Apanhaste-me a meio de uma respiração, foi só isso.

Para a Fábrica de Letras, mês de Janeiro - Preconceito

03/01/2011

Preconceitos de Ano Novo

Até ao dia em que, ao fugirmos de um cão grande que olhou para nós, formos perseguidos e mordidos por um chihuahua...
Até ao dia em que aquela pessoa de olhos pequeninos e que, quando ri, fica parecida com uma doninha, tiver um gesto de lealdade para connosco e nos defender da maldade insuspeita da colega anafadita, com covinhas nas bochechas e pele cor-de-rosa...
Até ao dia em que nos apresentarem um prato de aspecto duvidoso que, depois de o provarmos, se revela uma delícia...
Até ao dia em que virmos um carrito piquinino e quase tão velho como nós a ultrapassar um BMW de modelo recente numa subida da auto-estrada...

...seremos preconceituosos e continuaremos a achar que as actualizações feitas nos programas informáticos a cada início de ano se estendem também a nós, exercendo um efeito de formatação e aperfeiçoamento instantâneo de forma a iniciarmos naquele preciso momento a tão desejada curva ascendente da nossa vida... Conseguiremos deixar de fumar, alcançaremos uma promoção profissional, começaremos a ter cuidado com a alimentação, perderemos peso, cuidaremos mais da nossa imagem (quiçá uma mudança radical de visual...?), melhoraremos e apimentaremos a nossa vida amorosa, iniciaremos um trabalho de voluntariado ao serviço da comunidade, patati, patatá...
Isto, ou então o extremo oposto que é acharmos que daqui a um ano estaremos todos na penúria, sem trabalho nem dinheiro para medicamentos, a pedir a Sopa dos Pobres e a fazer viagens regulares à SS ou ao Centro de Emprego - visão esta que em muito devemos às constantes previsões pessimistas e alarmistas difundidas exaustivamente pela nossa Comunicação Social...

Ó meus amigos, eu sou da modesta opinião de que, um bocadinho melhor ou pior, todos conseguiremos continuar a levar a nossa vidinha mais ou menos da forma que o temos feito até aqui e que as mudanças que tiverem que ocorrer, serão semeadas pela nossa vontade e alimentadas pela nossa perseverança. E não porque pendurámos um calendário novo na parede!
Texto para a Fábrica de Letras - mês de Janeiro.

05/12/2010

Cicatrizes

Jamais conheci quem apreciasse cicatrizes. Próprias ou alheias. Máculas corporais, repelentes, inestéticas, chocantes. A própria palavra tem uma entoação estridente e aquele "-triz" final fica a vibrar no tímpano durante muito tempo.
Eu gosto de cicatrizes. Elas são um mapa, um farol, um documento, mais pessoais e intransmissíveis que uma impressão digital. Todas as cicatrizes têm história, local, uma pessoa, um acontecimento, uma emoção, uma dor e uma regeneração.
Eu tenho uma, resultado de uma queda de mota com o meu pai, na Suíça, quando ainda era suficientemente pequena para ir aninhada à frente dele, entre os dois braços estendidos. Estava imensamente alegre e ria porque ele ia a alta velocidade e subia bermas e atravessava relvados... E depois estava no chão.
Não tenho porque me envergonhar dela: não é muito visível; nem a tento esconder: porque está num sítio já discreto. Mas às vezes contorço-me para poder olhá-la bem e tenho-lhe um respeito grande. Acarinho-a.
Tive um namorado que tinha umas quantas. Uma delas era grande, resultado de uma queimadura com um ferro de engomar, nas costas da mão. Ele escondia-a e fazia sempre um esgar dorido (e lindo!) quando olhava para ela. E eu agarrava-lhe a mão e passava os dedos sobre os contornos daquela marca tão dele, que eu venerava sem que ele conseguisse entender porquê.
Porque as cicatrizes são um apontamento, um sinal físico da nossa passagem por outro tempo, outro local, outras circunstâncias. São como um carimbo num passaporte; uma nódoa de chocolate na nossa bata velhinha da escola; um rasgão naquele peluche adorado da infância; um canto dobrado daquela carta que relemos milhões de vezes; um sublinhado num livro predilecto; uma mossa no carro por temos sido demasiado aventureiros...
Sem cicatrizes ou sinais, seríamos um livro em branco, imaculado e perfeito, mas tão mais insignificantes...!

Para a Fábrica de Letras, mês de Dezembro.

01/09/2010

Eu, livre

Livre... Dizem que nunca ninguem o é.
Que o Homem será sempre frustrado. Que o que possui acaba por o possuir a ele. Que há demasiados vícios e excessos.
Descrentes ignorantes. Cépticos ridículos. Vácuos mentais ambulantes.
Eu sou maior. Eu dispo-me do que é fútil e encontro a minha liberdade em ti.
Porque eu era fechada e altiva, e tu vieste derrubar o meu pedestal e invadir o meu espaço.
A minha rigidez aprisionava-me; agrilhoei-me em regras e fiz da individualidade o meu cárcere.
Mas tu aproximas-te e o meu instinto de recuperar ar recua.
Sou livre para escolher ficar. E fico.
Ouço as palavras que me despejas nos ouvidos.
És livre no pensar e no falar e deixas-me a mim a liberdade de concordar ou rejeitar, sem retaliações, ao contrário do que me habituaram a ter.
Disseste-me, uma vez, que eu era bonita; e eu não me importei.
Não me senti intoxicada pelo veneno disfarçado em cada elogio, que eleva mas responsabiliza; afaga mas queima;
Elogios tiram a liberdade; a liberdade de rastejar, de cair e de pecar.
Mas o teu elogio não pesou; não me cortou as asas.
Tens um efeito inebriante em mim. Fico embriagada pelo teu movimento e deixo-me contagiar.
Não penso, não me refreio. Sei que te divirto e que percebes o efeito que exerces.
Escandalizo os que me conheceram mas não me importo. Sou tão completa e absolutamente livre...!
Não imaginas quão bonito é o teu sorriso.
Adorável ignorância, fazes-me livre para o apreciar e gozar descaradamente.Eu, a mais insuspeita mendiga da tua atenção.
Insistes em tocar-me. Provocas-me. E, à força da insistência, ganhaste-me.
Aprendi a aceitar-te. Ajustei-me a ti.
Dei-me a esse trabalho porque sabia que, se não o fizesse, fingirias não te importar, tal é a tua dádiva de liberdade.
Tens-me desta forma, tão assumidamente entregue sem, no entanto, teres o direito de me chamar tua.
Pelo meu lado, não presumo jamais que algum dia serás meu.
E é neste equilírio frágil que reside a nossa libertação, que só se consuma quando estamos juntos.
Infelizes todos os que não têm alguem como eu te tenho a ti.


Fiz este texto para a Fábrica de Letras, mês de Setembro, com Tema Livre.