sexta-feira, 31 de outubro de 2025

o minuto certo do amor

 

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor. Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam charros e putas e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade. Mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.

Queria de ti um minuto. Um minuto.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

recado aos corvos

igor morski

Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incombustível
memória das labaredas.
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Autor : A.M.Pires Cabral

domingo, 26 de outubro de 2025

Curvas

 

Caminho entre precipícios
Que me levam ao fundo dos abismos
Mas o medo não me deixa
Que os fantasmas que me perseguem
Consigam desviar-me do caminho certo
Simulo que vou
Mas fico na curva
A ver … só a ver e a imaginar
Perigos que não correrei.

Autor : BeatriceM 15-10-2022
Imagem : Melissa Vincent

sábado, 25 de outubro de 2025

tenho um grito


tenho um grito
um canto
uma flor
uma noite destas
de uma vez
vou oferecer-te tudo
meu amor.

Autor : Mário Contumélias
 vida, divisão única
Imagem :Pinterest

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

rés-do-chão

 

no fundo de cada coisa
o raso
no vasto de cada coisa
o ínfimo
no descampado o íntimo na nudez
um nem atinar com ela
no reles de cada coisa
o tudo dela
vida em revoada

no raso de cada coisa
o cavo
no ínfimo de cada coisa
sua extensão
no descompassado o ritmo na embriaguez
uma espécie de rés-do-chão

em meio metro
de qualquer coisa
um deus descalço
e bom

Autor : Adriana Lisboa.
Imagem : amber hortelano

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

toda a solidão das ilhas


ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração

autor : gil t. sousa

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Penso em ti

Penso em ti
Olho as estrelas
Pego na lua
Vejo nuvens transparentes
Num fundo azulado
Vejo-te a ti meu amado
Meu desejo
Minha tentação
Serás sempre acarinhado
Serás sempre o meu coração
Teus olhos teu olhar
São meu mistério
A minha tristeza
A minha alegria Minha luta...
Vivo alucinada
Mas sigo a minha estrada
Olha-me amor
Dá-me vida Esperança O teu abraço..
Para que mesmo na
Escuridão….brilhe meu coração

Autor : Maria Tavares

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Ruínas

richard blunt

Por onde quer que tenha começado
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

autor : manuel antónio pina

domingo, 19 de outubro de 2025

Fui ...


Fui ao aeroporto,
e sem que me presenciasses,
permaneci ao longe a observar-te,
a subir as escadas rolantes,
até te perder da minha óptica de visualização..

Deixas-te algo de ti,
levaste muito de mim.

Autor  : BeatriceM 08-10-2022

sábado, 18 de outubro de 2025

....

Não te confundo com ninguém
reconheço-te no meio da multidão
lamentável
que já não sejas meu amigo
mas compreendo que não quisesses
estar acordado
sempre num dia claro.

Autor : Luís Rodrigues
Imagem : silhouettes by paolo barzman

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Sou Viagem

Apetecia-me ser jovem
mordida por um fogo
e dizer amo-te
com olhar de rosas.
depois, devagar, descer
pelos afluentes do teu rio
como um barco demorado
no cais de embarque
sob um rumor de sol ardido.
mais nada.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Ali Jardine

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Memória Descritiva

A sombra dos tectos altos
não deixa respirar. A pintura
esboroada como os ossos.
A moldura verde das portas
na solidão de ferro abandonada.
As cortinas de fumo sujo.
Serradura nas frestas da madeira.
Gonzos, chaves, uma gaveta
com bocados de uma cama.
Luzes ímpares em jornais antigos.
Ganchos, fios, fendas.
Uma almofada, restos
dum romance francês, o metal
de um candeeiro. Recantos,
esquinas, manchas irregulares,
pratos, móveis trôpegos, uma parede
onde estala a cal. Tábuas pequenas,
traves, bolor num espelho, vidrinhos,
relógios, autocolantes, fechaduras,
uma arca da qual ninguém
se aproxima, pedaços de tecido
alegre e tantas cadeiras.

autor : Pedro Mexia
In Em Memória, Gótica, 2000

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

há colares que são coleiras

há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão

Autor : Bénédicte Houart

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Não muita vez nos vemos, mas, se poucos


Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.

Autor : Luís Miguel Nava
In poesia completa (1979-1994). 

domingo, 12 de outubro de 2025

Procuro ...

 

Procuro o racional para algumas coisas,
que não compreendo,
ou não quero perceber.

Procuro a paz no silêncio do dia,
quando o horizonte me fala,
sobre o racional de algumas coisas.

Que eu entendo,
e ouso entender,
mesmo que por vezes seja irracional.

Autor : BeatriceM 01-10-2022
Imagem : Mary Parker

sábado, 11 de outubro de 2025

VIESSES TU, POESIA...


Viesses tu, Poesia,
e o mais estava certo.

Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?)

Mortas, mortas pra sempre na primeira,
morta à primeira hora.)

Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...

Autor : Sebastião da Gama
In "Pelo Sonho é que Vamos"
Imagem : Nishe

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

APRENDO-TE

 

Aprendo-te mas não te prendo
Na aprendizagem vivenciada
Do tempo ainda breve crescendo
Das tuas mãos a cada chegada
Aprendo-te no verde do olhar
Maduro em ti, estranha surpresa
Do pouco que sei - sabendo-te
Ferida que guardo ainda ilesa
Falas do círculo subtil do meu olhar
Entre o castanho e o verde profundo
Quando planas dentro de mim sem fim
Breve ainda é o tempo deste novo mar
Que desagua na terra a cada segundo
Talvez sejas tu - o outro lado de mim

Autor : Cristina Fernandes
 in O MOMENTO CERTO (Modocromia, 2020
Imagem : Igor Burba

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Não colher as mãos

não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.

Autor : Rui Costa
In a nuvem prateada das pessoas graves

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Dias melhores



A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.

Autor : Rosa Alice Branco
In Da Alma e dos Espíritos Animais
Imagem : Marius Markowski

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Sofro de não te Ver

Sofro
de não te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
límpida, tão calma...

Sofro
de te perder,
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos...

Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das árvores de tenrinhos ramos?

Autor : Saúl Dias,
 in "Sangue (Inéditos)"

domingo, 5 de outubro de 2025

Reflexões


Abafado e quente,
o vento passa pelo rosto,
lembrando que ainda é verão.

Logo virá o outono,
trazendo o frio
e noites alongadas.

Quem me cingirá
nesse intervalo de tempo,
senão a solidão?

Ou talvez a ternura acolhedora
da melancolia,
deitada a meu lado

BeatriceM 2025-08-21
Imagem : Brooke Shaden

sábado, 4 de outubro de 2025

Explicaçao da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo. 
o ódio transforma-se em tempo, o amor 
transforma-se em tempo, a dor transforma-se 
em tempo. 

os assuntos que julgámos mais profundos, 
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo. 

por si só, o tempo não é nada. 
a idade de nada é nada. 
a eternidade não existe. 
no entanto, a eternidade existe. 

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. 
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 

foste eterna até ao fim.

Autor : José Luís Peixoto
in A Casa, A Escuridão
Imagem : Elena Dudina

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Ficou em nós

Tu ficaste com ela por medo de dor,
Eu fui o refúgio, o rastro do amor.
Prometemos nada, vivemos demais,
E agora estás longe… e eu fico nos “vais”.

Chamaste de “coisa que a gente não diz”,
Mas no fundo sabias: contigo fui raiz.
Fui toque, fui fogo, fui riso no escuro,
E tu foste o erro mais doce e mais puro.

Dissemos que era só pra guardar,
Mas há corpos que sabem quando é pra ficar.
Ficou na pele, no cheiro, na voz,
Ficou esse “nós” que vive sem nós.

Tu pensas demais, eu sinto por dois,
Mas nunca fui tua — e foste meu depois.
Na alma, no peito, nos gestos calados,
Fomos o certo nos tempos errados.

E se um dia perderes o medo de amar,
Quando já não quiseres só aproveitar,
Talvez nos cruzemos sem peso, sem dor…
E se ainda houver tempo, talvez seja amor.

Disseste que havia carinho especial,
Daqueles que ficam, sem ser normal.
Mas foste embora sem te despedir,
Com medo de tudo o que podias sentir.

Tu gostavas de mim, eu via no olhar,
Na forma que vinhas, na pressa de ficar.
Nos teus olhos cansados, vi mais do que vão,
Vi o desejo calado, a fuga da mão.

Tiravas meus cabelos loiros do colchão,
e ficavas em mim, sem pedir permissão.
Ali, o teu corpo dizia o que o medo calou,
e no fundo dos olhos, era amor que ficou.

Ela tem o teu lado, os teus dias marcados,
Mas eu fui o instante dos passos trocados.
O tempo contigo sabia parar,
Mesmo sem nome, sem lugar pra ficar.

Agora estás longe, distante e calado,
Mas o que vivemos não foi inventado.
E se fosse noutra vida, sem essa prisão,
Talvez fosses meu — de corpo e coração.

Autor : Raquel Gonçalves
Imagem : Brooke Shaden

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Canção de Leste

Ao virar da esquina
um anjo invisível espera;
uma vaga névoa, um magro espectro
dir-te-á algumas palavras do passado.

Como água de rega, o tempo
escava em ti um árduo trabalho
de dias e semanas,
de anos sem nome ou memória.

Ao virar da esquina
seguir-te-á esperando em vão
esse que não foste, esse que morreu
de tanto ser tu mesmo como és.

Nem a mais leve suspeita,
nem a mais leve sombra
te indica o que poderia ter sido
esse encontro. E sem dúvida,
ali estava a chave
da tua breve felicidade sobre a terra.

Autor: de Álvaro Mutis 
in “Sombras Brancas — Setenta e sete poemas sobre anjos caídos de outras línguas“, tradução de Jorge Sousa Braga, Língua Morta 068, 2016, p. 79

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Voo Solta

Ravshaniya

com asas abertas no vento
também o meu pensamento
se lança vivo e liberto
e plana
e paira
como uma gaivota de prata

pomba mansa
que achou aberta
a porta da sua gaiola
e à toa esvoaça
sem saber aonde pára

possui o céu
e é sua!

Autor : Maria Petronilho
Almada - Setúbal - Portugal
In :Recanto das Letras
Enviado por Maria Petronilho em 01/06/2010
Código do texto: T2293516