Pergunto-me: se passasse por uma experiência socialmente conotada como especialmente trágica, se a seguir ia escrever um livro a relatar os factos.
Verifico que muitos que passam por certos dramas, pequenos ou grandes, escrevem livros sobre os mesmos. Depois, outro, e mais outro... Porquê?
Também tenho dramas. Que tenho vindo a contar nos meus diários ao longo dos anos. Mas desses ninguém quer saber, a menos que terminem em sangue ou morte. Porquê este fascínio pela derradeira tragédia conduz à escrita de livros??
Há apenas umas décadas, as famílias que passavam por tragédias remetiam-se ao recato, ao silêncio. Não ficava bem explorar o assunto. Algo privado e muito sensível, cujo respeito demonstrava-se por não forçar as vítimas a recordar nem o explorar de alguma forma. Actualmente ocorre o fenómeno oposto. Publicam-se livros, e depois outros, mesmo quando não se tem mais nada a acrescentar. Porquê? O que mudou? Não é o sofrimento igual?

Natascha Kampusch, a menina austríaca raptada aos 10 anos de idade, escreveu, em 2010, um livro a relatar a sua história, quatro anos após escapar do cativeiro. Agora volta a escrever outro, supostamente a relatar como tem sido a vida nestes 10 anos de liberdade. Entre os dois livros por si lançados, existiu um programa de televisão, deu imensas entrevistas, a primeira logo 15 dias após a fuga, onde pagaram-lhe 290€ ao minuto, entrou com um pedido de 1 milhão de indemnização ao Estado Austríaco por incompetência dos serviços policiais em resgatá-la, comprou e ainda é proprietária da casa onde viveu em cativeiro e os pais escreveram os seus próprios livros: a mãe em 2007, o pai em 2013, ambos best-sellers. Agora, em 2016, Natasha, que diz querer passar despercebida, lança mais um livro sobre a sua tragédia pessoal.
Vivemos numa altura em que possuir no currículo uma tragédia pessoal é ter porta aberta para muita coisa. Exploram-se os dramas como se fossem limões que têm de ser espremidos até dar o máximo de sumo, colocam-se umas gotas desse sumo com muita água, e serve-se como limonada.
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Destaque na capa da revista TV GUIA, nº 1963
A distorção da realidade*1 - obvia para mim, mas certamente invisível para outros. |
São as revistas cor-de-rosa e os jornais a destacar na primeira página qualquer «dramalhão», real ou fictício. Distorcem títulos para aparentarem um significado, sabendo que têm outro. São os programas televisivos de talentos - os quais não consigo ver por originarem repulsa - a inventar e a explorar dramas para «colar» aos concorrentes. Porque o que fica bem é ter pais toxicodependentes, pai na prisão, ter sofrido um acidente de viação quase fatal, é ser gay, sofrer de uma doença que gera comoção, é ter a avó internada no hospital às portas da morte ou melhor ainda: já ter um dos pais a servir de comida às minhocas, para que esse drama possa ser explorado para fazer um programa televisivo, ao qual os requisitos necessários para participar deviam limitar-se ao saber cantar, dançar, cozinhar, etc. Mas não! Isso é secundário.
Escrever livros, participar em programas televisivos da vida real ou de talentos ou fazer capas de jornais e revistas explorando as tragédias pessoais.
Se ontem entendia o poder catártico da escrita e do livro, hoje entendo-o menos do que «ontem». E, sinceramente, tenho zero interesse por histórias que me são apresentadas desta forma.
*1
Leitura real dos destaques da revista TV GUIA - a revista mais sensacionalista e que reserva uma secção nas suas páginas só para maldizer a concorrência (TV 7 dias):
FERIDO COM TRÊS FACADAS: o ex-concorrente de um reality show, mostrando, na verdade, o quanto está pouco habituado às lides do trabalho, cortou-se três vezes quando estava a cortar carne no seu talho. Diz ele que trabalhou até o fim sem se queixar e ninguém percebeu nada - depois de ter cortado a ponta do dedo e sangrado. Humm... vocês voltariam a comprar carne num talho onde o talhante sangra de um ferimento, arriscando a passar esse sangue para os alimentos e ainda acha que isso é de louvar?
TRAI FAMÍLIA POR CEM MIL EUROS: Todos já sabem que a ex-concorrente de reality show está a participar noutro programa, em frança. A "traição" é o isco usado para chamar a atenção. A realidade é tão somente essa. O prémio final são 100.000€, fácil de deduzir.