Nessa noite não jantámos. A fome era escassa, e optámos por sair do hotel, aquele sitio poucochinho e indecoroso que tinhamos escolhido sem qualquer certeza, e fomos de mão dada, apoiados um no outro e na falta de vontade e de explicação que sentiamos, assistir a um concerto de música de câmara na Sé de Lisboa. As ruas estavam escuras. Aliás, uma espreitadela do miradouro de santa luzia mostrava que a lua estava tímida, recolhida em roupas de nuvens por cima do namorado Tejo. Cruzamo-nos com gente estranhamente parecida connosco. Um casal cabisbaixo, que parecia contar os quarteirões que faltavam até chegar ao alojamento local de circunstância. Ela com um sobretudo maltrapilho, vários números acima do seu, e claramente deslocado para a noite a anunciar verão daquele dealbar de Junho. Escondia o cabelo, que de relance me pareceu alourado, num chapéu com forma de candeeiro de pensão antiga. Ele não tinha muito que desvendar. Procurava um sitio que o abrigasse dela, como os olhos de vagalume o mostravam. Estava decidido a gravar tudo o que se cruzasse connosco, até passarmos as portas amplas da Sé. Mas a noite não nos queria revelar muito. Parámos só para um café, num daqueles espaços de página dois de revista que Lisboa, a nova Lisboa dos escaparates turísticos do mundo, se esforçava agora por mostrar. Fomos servidos por um jovem imberbe, um nómada, não sei se digital, que se esforçava por esconder o seu desconhecimento total da lingua portuguesa, com um telemóvel estrategicamente ocultado no balcão, com um qualquer tradutor ligado sem que os clientes o pudessem perceber. A bica sabia a princípio. Olhei para ela, sorrimos, e nem precisámos de o dizer um ao outro. De regresso à rua, ja estávamos próximos. A imponência da sé vestia-se de bruma noturna, com os sinos a marcarem a hora certa para o inicio do evento. Pareceu-me bem composto de gente. A cidade, além de renascida para o seu novo sustento do turismo, revelava lentamente uma intelectualidade, não sei se de circunstância ou não, que não me agradava. Sou sincero. Não gosto de manifestações espontâneas de falsidade. Mas habituava-me a ela. Cruzámos finalmente as portas sempre frondosas da casa mãe da cidade, e escolhemos um local junto a um capitel de decoração florida. A noite começava bucólica...
Tirado daqui2024/10/05
2024/07/08
Lisboa e uma dor de cabeça
foi este o meu lugar,
o gajo estava farto de
Bukowskis,
ainda tolerava ruis Belos
escritos como ele quisesse,
mas eu queria estar aqui,....
o céu abria-se,
e o sol trazia coisas esquisitas,
quase sedições,
à Lisboa de onde eu estava,....
uma dor de cabeça,
um entorpecimento
das mãos,
e o meu lugar era de facto aqui,....
antes que chovesse,
ainda assim,
procurei abrigo junto ao
Cais das Colunas
2023/06/17
Por falta de qualidade, tempo, ou qualquer outra coisa, nada continua para mim...
Estava à porta da Sé. O encontro estava combinado. Havia
muito. Apareceu antes de tempo, como era seu apanágio. Gostava do que tinha
escolhido para vestir. Um casaco de seda azul, a combinar com uma camisa
branca, e umas calças justas. Uns sapatos desajustados, mas isso era um
pormenor. Pensou nela. No que estava ali para dizer, mas principalmente para fazer.
O tempo refrescava. Olhou para o céu de Lisboa, que em inícios de Outubro, já tinha o Outono assente em todos os momentos, e a brotar de todas as calçadas já
desfeitas pelo tempo. Mudava de tonalidade a cada segundo, como sempre se
recordou. Uma louca sem destino empurrou-o, enquanto murmurava uma ladaínha
desconexa. O tempo passava, e recordou-se de como a tinha conhecido. Há meses,
que à medida que se foram desfiando pareciam agora momentos. Apenas momentos.
Ela estava a falar com um homem de barba rala e grisalha, e vestido fora de
tempo e estilo. Era rececionista de qualquer coisa que não vem ao caso, e
estava assustada. Parecia perdida, e num português inofensivo perguntava o caminho
para o centro da cidade. Era evidente que não estava no seu mundo, mas ele era dali e sempre te tinha sentido de milhares de universos que não este.
Manteve uma distância de segurança, e percebeu que no meio do nervosismo
evidente, da roupa fora de estação, estava ali alguém que valia a pena conhecer….
2023/02/23
Lisboa e qualquer coisa
os seios de Lisboa,
emergindo do nevoeiro
como se uma mulher livre,
despreocupada
fosse...
numa manhã fria
de qualquer resquício de Inverno,...
e o cacilheiro que
encosta,
com a carne
a inocentar o pecado,
e o desejo guardado no
bolso com os dedos frios,...
e Lisboa ali
insinuante,
a levantar-se só de
um leito de ocasião,
para se assomar à janela,
e dizer que quer mais,....
são passos perdidos,
os que levam o sonho a afastar-se
2022/10/25
O mural
A 26 de Maio de 1912 uns poucos de artistas juntaram-se para criar um mural,
Que homenageava a solidão,
Tinha de ter traços grossos e bem distintos dizia um,
A solidão nao se pinta, vamos é embora,
Dizia outro,
O consenso chegou depois de o sol se pôr sobre o rio tejo,...
E a sombra enamorada e velha da lua começar a projetar o vazio sobre as paredes daquelas ruas enxutas,...
E as sobrancelhas daqueles poucos de artistas começaram a fechar-se,
Até que um sono contagiante pegou todos de assalto,
E o melhor mural sobre solidão surgiu invisivel,
Agarrado a todas as casas como sexo indesejado,
Mas inevitável
2022/08/16
Chuva de Lisboa
Porque pareciam ser uma pintura dificil de descrever,
Feita com cuidados para não acordar as pessoas de quem mais se gostava,..
A chuva que havia semanas percorria os limites obscuros da cidade,
Iludia as pessoas que a viam no que parecia ser uma obra de arte sem autor,
Perdida,
À espera que alguém a recupere,...
Todos achávamos que um dia teria de acabar aquela fugidia forma de loucura,
Mas lisboa seria para sempre volátil,
Com reais contornos,
2022/07/30
Haver
Agora,
que não há bafo de limão,
olhos mascarrados com a lama da chuva
onde se escorrega,
pela rua do Alecrim abaixo,
não há mulheres de dúvida desigual,
não há a luz que emana da solidão
das janelas de sacada,...
não há a força com que os meus
braços igualam as minhas pernas,
e o verbo haver esvai-se em sangue,
com um outono de Lisboa impávido a assistir,
não há,
simplesmente a voz fica
2022/06/10
Marcando a Portugalidade
Nos idos de 1982,
Apanharam-me com um molho inútil de papéis na mão,
E a consciência influente que os copos meio bebidos de borrasca,
Calão meu para o que me escorria pelo estreito em todos os sítios infetos por onde passava,
Só poderiam ser a minha herança,
Se houvesse alguém ou algum conceito capaz de os aproveitar,....
Deixava sempre para trás um plano estático de anonimato,
Não conseguia dormir sozinho no meu deboche,
Nem anonimo na solidão que me acompanhava,
E a fortuna,
Ia para aquele molho de papéis inútil,
Com que as ruas do bairro alto me viam com frequência,
E sempre faziam questão de me rejeitar
2021/02/16
Liberdade de ser diferente
Ia para as ruas e tratava-as como pessoas. Manuel, o desanimado. Via-o naquele pedaço de calçada que subia, ou descia, consoante a pinga que se tivesse bebido. Consentia tudo, o manuel. Não tinha estudos, pelo menos era o que via nas sacadas das janelas que pareciam cair para a rua, se as observassemos num ângulo certo.
Mal se virava à direita, e o Tejo aparecia de frente, vinha a Alzira. Uma antiga corista do parque Mayer:pelo menos era assim que a via. Ainda com pernas esguias e altas, como os dois lampiões de petróleo pareciam mostrar. Tinha olhos ainda cheios de vida, e uns Olás que saltavam de boca em boca, como um sinal de vida desperado por vencer a morte.
Todos os dias, sempre à hora do final de tarde, aparecia o Francisco. Um Chico mortiço, sem cores, que só via um carteiro a bater às portas como unico sinal de ânimo.
Ficava feliz por achar assim os contornos da vida de todos os dias. E propunha-se a descobrir mais ruas com nomes possíveis de pessoas. O relógio parecia deslizar mais facilmente desta forma.
2020/10/28
Lisboa a salto
Rua do ouro,
Setenta e dois,
Junto à árvore morta,
À entrada do talho,
Um livro perdido aberto na página rasgada,
Com um homem desorientado a fixar as letras,
Está muito vento,
Ninguém se apercebe do tempo envolvido em jornais,
Rebolando pelas ruas como um cavalo sem freio,
E sem dono,...
A possibilidade de redenção é um cenário aparente,
Mas perde força,...
Rua do ouro,
Cem,
Morreu uma mulher sozinha,
Chorou em seco anos a fio,
Até o ar se esvaziar,
Como um balão que perde o contorno,
E desmaia gradualmente
2018/12/02
Só para cumprir a promessa de escrever, escrever sempre (segunda de dezembro)
Gosto, em geral, de mim. Acordo sempre com a boa disposição possível. Ajuda deixar sempre o estore por fechar totalmente, e as três filas de orifícios que ficam abertas, são as suficientes para o sol conversar comigo ainda antes de eu acordar. Acho que tenho essa virtude, conseguir comunicar durante o sono. Ouço os pombos que pousam no beiral da minha janela sempre à mesma hora, e sou capaz de jurar que eles já me disseram que eu devia ter vergonha da minha vida ensombrada. Nunca lhes respondi. Não é que pense que ganharia alguma coisa com isso. Mas sinto que não devo. Eles nunca me iriam responder com algo percetível, capaz de mudar a minha vida. Acho que a minha vida não precisa de ser mudada. Acordo sempre da mesma forma. A olhar para uma fotografia de uma paisagem idilica, com cavalos a correrem por um pasto verde, e o sol a pôr-se em fundo. Depois sento-me na cama. Rezo uma algarviada que sei desde miudo, e levanto-me.
2018/11/08
Fernando perdeu a pessoa
nome erudito,
2018/10/05
Pessoa no café
no fundo de uma chávena de galão,
havia um burburinho em cascata,
era o meu café de todos os dias,
com as mesmas caras,
os sorrisos comedidos escondidos por
trás dos choros em novelo dos meninos
ranhosos,
e eu absorto em pensamentos traduzíveis
só por desenho,....
as borras do café desenhavam dois aros,
e o bigode imaginava-o algures a deslizar
por entre uma poça castanha,
o empregado passava vezes sem conta a olhar
para mim,
e só me ocorria sair dali,
e ir aos Prazeres perguntar ao Ricardo Reis
se ele já tinha decidido morrer,...
a manhã acabou,
e rabisquei um poema de amor
incompreendido,
antes de pagar e sair
2018/09/13
Breve descrição de almoço e saída para encontro
Ainda pediu o sal, que veio num frasco transparente, com um fundo cheio de verdete, e que parecia bailar em cima da mesa que tinha os pés assustadoramente assimétricos .
Deu duas colheradas, e socorreu-se do copo de três que repousava nos limites do toalhete encardido, quase a despedaçar-se no chão, mas que ainda servia para que aquele antro guardasse um restolho de dignidade.
Ao seu lado, um velhote que parecia mais entrado do que devia ser fitava a parede amarelada da sala. Tinha uns óculos de armação de massa, bem preta, que envolviam daquelas lentes que pareciam o entardecer: meio claras e meio escuras. Ainda lhe escapava o olhar para a barba de três dias que o outro tinha, e que só servia para lhe dar um ar de campo minado a um rosto quadrado, e que denotava um talento para a música quiçá nunca aproveitado.
Eram duas da tarde, por aí. Faltava já o apetite para continuar ali. Fez escorregar a mão direita para o bolso das calças de sarja, e tirou um lenço dobrado em seis. De um gesto fê-lo desabrochar, e encostou-o às duas narinas obstruídas por uma primavera que dava uns sinais de vida naqueles pontinhos sem cor com que sempre se anunciava, e que pareciam dançar ao som dos escapes do bulício da baixa por volto da hora de almoço, quando o calor já amornava as rotinas.
Pediu a conta. Tinha mais fome, mas só pensou em sair dali. Deixou uma nota encardida, e com um pequeno rasgão ao meio, em cima da mesa, e saiu. Franziu os olhos com o sol de início de tarde . A cabeça pedia Protecao, e por isso tapou-a com uma boina que guardava do avô, que tinha vindo das beiras para morrer em lisboa como homem falhado, e começou a subir a rua. Estava atrasado para um encontro importante...
2018/09/04
o Tejo ia e vinha
pelos olhos dentro,
enquanto ia e vinha,
num desnudamento igual
ao de uma puta a
tirar os três,...
cá em cima,
nos braços de Lisboa,
os desnorteados aos magotes
gostavam do som,
falava com eles e dava-lhes
de beber quase como um padre,...
e os dias passavam assim,
como estores que
abrem e fecham,
deixando nas pessoas só aquelas
pequenas fistulas dos
arrependimentos,
enquanto o Tejo ia e vinha
2018/02/25
Lobo antunesar a coisa....
2018/02/03
Velhotes que jogam às cartas
2018/01/09
Lisboema
Falar com a lisboa de todas as falhas,
A que pende da insegurança de quem confiou
E ficou com o amargo da desilusão,
A surgida dos restos de um amor que recorda ao Tejo
Que um dia morrerá,...
É acordar em cada manhã de sol com a chuva metida nos
Entrefolhos do envelhecer ,
A lisboa das falhas é o caminho para o fado dos dias
Todos esborratados num poema feio...
2017/12/26
Loiça
Deixaste o fado na loiça suja do dia,
Era um marialva cheio de restos de caldo Verde,
Com uns labios pintados,
Muito sumidos,
De tinto de todos os dias,..
Lembro-me de ver o tempo a escapar pelos dedos daquela brincadeira,
E pensar nos calos das maos de Lisboa a pedir descanso,
Indignada mas conformada em mais um entardecer que conta para a morte ....
Pessoa on the rocks
Lisboa é o sono alegre na noite que desaparece,
Com a manhã fruto pálido de um tempo que não quer envelhecer,...
Somos vírgulas neste texto pessoano,
Que desce a calçada com passos de sonho para abraçar o Tejo,
E volta em sextilhas de poema dedicado ao vento,...