Mostrar mensagens com a etiqueta charlton heston. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta charlton heston. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, agosto 06, 2025

PLANET OF THE APES (1968)

O HOMEM QUE VEIO 
DO FUTURO

Um filme de FRANKLIN J. SCHAFFNER




Com Charlton Heston, Roddy McDowall, Kim Hunter, Maurice Evans, James Whitmore, James Daly, Linda Harrison, etc.

EUA / 112 min / COR / 
16X9 (2.35:1)


Estreia nos EUA (NY) a 8/2/1968
Estreia em Moçambique (L.M.) a 4/5/1968 (Teatro Scala)

                                                                                        


Taylor: «Oh, my God! I'm back. I'm home.
All the time, it was... We finally really did it.
You maniacs! You blew it up!
Ah, damn you! Goddamn you all to hell!»

Este filme faz-me desejar que a máquina do tempo estivesse já inventada neste início do século XXI. Infelizmente a realidade continua muito aquém da ficção e assim não posso concretizar o projecto que tinha em mente: a de pegar em alguém nascido há 30 ou 40 anos e fazê-la recuar a 1968. Durante a viagem todas as referências e memórias fílmicas seriam apagadas, de modo a que essa pessoa pudesse assistir à estreia de “Planet of the Apes” com o encantamento próprio de um estado em fase pura. Tal como eu, que tive a felicidade de viver essa experiência aos 15 anos, no próprio ano em que o filme foi estreado. É  que se trata de algo irrepetível, que apesar de se poder sempre lembrar jamais poderá ser revivido.


Nas últimas décadas, a evolução da tecnologia foi conseguindo ultrapassar muitas barreiras; e o advento mais ou menos recente dos efeitos digitalizados - capazes de recriar o imaginário mais secreto - habituou-nos a poder ver tudo o que quisermos num écran de cinema. Mas em 1968 não era assim; e “Planet of the Apes” começou logo por colocar problemas de produção que nunca antes tinham sido resolvidos. O principal foi sem dúvida o de levar as pessoas a acreditar em macacos falantes, sem se cair no ridículo. John Chambers (já falecido, a 25 de Agosto de 2001) seria o homem a conseguir ultrapassar tal desafio, ao elaborar as magníficas máscaras atrás das quais actores talentosos como Roddy McDowall ou Kim Hunter tornaram credíveis os evoluídos símios, transformando-os em personagens inesqueciveis. 


Mas esta foi apenas uma parte do sucesso do filme. Um dos grandes trunfos foi sem dúvida o brilhante argumento, baseado na obra do francês Pierre Boulle (já conhecido, na altura, por ter escrito “The Bridge on the River Kwai”). Michael Wilson, escritor cujo nome esteve na lista negra e Rod Serling, conhecido pela sua criação televisiva “The Twilight Zone”, conseguiram criar, a partir do livro, uma imaginativa sátira sobre a vaidade e o orgulho humanos. Para além da fantasia e da aventura, o filme teve a argúcia de tocar uma corda sensível às audiências de 1968, no modo como fazia a apologia do anti-autoritarismo e do anti-militarismo. E depois, aquela cena final... uma das mais inquietantes e inesquecíveis de que há memória. Pessoalmente, e tendo visto já milhares de filmes em toda a minha vida, não me consigo lembrar de outro final que exercesse em mim um poder tão profundo e arrasador!

O homem que veio do futuro parte de Cabo Kennedy em 14 de Julho de 1972, em expedição destinada a comprovar a teoria de um cientista (no livro o Professor Antelle, no filme o Dr. Haslein), o qual afirmava ser possível viajar no espaço e acompanhar essa viagem de uma outra no tempo. Durante 11 meses os quatro tripulantes da nave espacial percorrem dois mil anos em estado de hibernação (a data registada no painel de bordo, quando a nave se despenha é a de 25 de Novembro de 3978). Depois é o acordar num planeta desconhecido, perdido no tempo e no espaço, e no qual os aguarda uma realidade invertida, aparentemente ilógica, onde os humanos são bestas irracionais e os símios senhores dominantes e todo poderosos.

Cabe aqui referir a surpreendente força que possui a primeira meia hora de filme. Uma força assente na simplicidade, na economia de meios, mas que consegue agarrar desde logo o espectador e guiá-lo através do desconhecido e do misterioso, até ao contacto com os primeiros humanos e a entrada em cena dos macacos. Julgo até que, a par de toda a sequência final, são estes primeiros trinta minutos os responsáveis por, ao longo dos anos, ter regressado tantas vezes a este filme.

Um filme de aventuras adulto, intencional, polémico e inquietante, “Planet of the Apes” permitiu a Franklin Schaffner (falecido a 2 de Julho de 1989) sair temporariamente do anonimato (viria a ganhar um Oscar em 1970 por “Patton” e após a realização da adaptação do best seller “Papillon”, voltaria a caír no esquecimento) por saber rodear-se de uma equipa de técnicos admirável, equipa essa que construiu uma verdadeira obra de arte nos anais do cinema de ficção científica. O filme seria nomeado para 2 Oscars: Música e Guarda-Roupa, tendo apenas obtido um Oscar honorário pelo trabalho de maquilhagem, a cargo de John Chambers. 

Além de poder ser visto como um filme de aventuras (e que aventuras!), “Planet of the Apes” necessita de reflexão. É um filme polémico sobre a animalidade do homem, que fabrica guerras e se destrói a si próprio e aos seus semelhantes só pelo puro prazer de matar. Com os anos o filme tornou-se um ícon da cultura pop dos anos 60. Deu origem a 4 sequelas (de valor e interesse sempre decrescentes) e a uma série televisiva. Finalmente, em 2001, Tim Burton, confesso fan do filme original, atreveu-se a fazer um remake (uma homenagem, como ele afirmou numa entrevista). Com toda a parafernália técnica dos dias de hoje, mas sem conseguir beliscar o estatuto classicista do original. Os tempos são outros e a inocência há muito que foi perdida.

CURIOSIDADES:

- Edward G. Robinson foi escolhido de início para desempenhar o papel do Dr. Zaius, tendo chegado a filmar um teste com Charlton Heston. Aliás, já não era a primeira vez que os dois actores contracenavam juntos. Acontecera em 1956, nos “Ten Commandments” (1956), e mais tarde em “Soylent Green” (1973). Robinson acabou por não fazer parte do elenco devido ao seu estado de saúde: problemas cardíacos impediam que se sujeitasse diariamente aos demorados e cansativos trabalhos de maquilhagem.

- Durante as pausas das filmagens os actores tendiam a agrupar-se segundo as diversas espécies símias: macacos com macacos, chimpanzés com chimpanzés, orangotangos com orangotangos. Não foi nada que tivesse sido organizado ou exigido; simplesmente esse facto curioso acontecia naturalmente.

- A célebre e inesquecível cena final (sugerida por Rod Serling e que os censores da altura chegaram a pensar eliminar devido ao que chamavam ser o seu carácter “profano”) foi filmada na praia Zuma, situada no sul da Califórnia, em Malibu.

- Na novela original a sociedade símia é descrita como tecnologicamente muito avançada. Contudo, as limitações do orçamento obrigaram a uma caracterização mais modesta e primitiva do modo de vida dos macacos.

- Jerry Goldsmith, o compositor da banda-sonora, chegou a usar uma daquelas máscaras de símio enquanto dirigia a orquestra.

- A aldeia dos macacos foi construída com base no estilo arquitectónico do espanhol Antonio Gaudi.

- Linda Harrison, a actriz que interpreta Nova, tinha na altura um romance com um dos produtores do filme, Richard D. Zanuck, de quem se encontrava grávida. Na altura da estreia, em Fevereiro de 1968, Zanuck divorciou-se da primeira mulher e casou-se com Linda. A união durou 9 anos, tendo o casal tido dois filhos.

- Ter recusado o papel de Zira e não ter podido actuar com Charlton Heston foi uma decisão que actriz Ingrid Bergman lamentou para sempre, como mais tarde confidenciou à filha, Isabella Rossellini.

- Para o produtor Arthur P. JacobsCharlton Heston foi sempre a primeira escolha para o papel principal, apesar de na altura se ter equacionado o nome de Marlon Brando. Jacobs permitiu que vários jornalistas entrassem no filme como figurantes símios, o que de certo modo lhe garantiu boas notícias sobre as filmagens em diversos tablóides.





segunda-feira, julho 01, 2019

WILL PENNY (1967)

WILL PENNY
Um Filme de TOM GRIES

Com Charlton Heston, Joan Hackett, Donald Pleasence, Lee Majors, Bruce Dern, Ben Johnson, Slim Pickens, etc.

EUA / 108 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia na GB (Londres) a 14/12/1967
Estreia nos EUA a 10/4/1968
Estreia em MOÇAMBIQUE (LM, Teatro Manuel Rodrigues) a 27/4/1969



Depois de terem, durante muitos anos, cantado a epopeia da descoberta do Oeste, os americanos resolveram-se a escrever-lhe a história. Entre a epopeia e a história tal-qual foi vivida, no seu dia-a-dia quotidiano, começou a debater-se o western realmente ianque. Os realizadores começaram a aprofundar a descrição serena de um Oeste nem sempre grandioso, nem sempre heróico, nem sempre jovem. "Will Penny" prolonga o caminho aberto por Ford, Mann e Peckinpah, indo ao encontro do cowboy solitário, desiludido e velho (Will Penny tem 50 anos e recusa o amor que se lhe oferece, por medo, por impossibilidade, mas também porque se sente um homem ultrapassado). Em "Will Penny" não existe acção épica, nem violência explosiva, não há grandes cometimentos nem façanhas a imortalizar. Tom Gries preferiu a tudo isso um bom naco de paisagen inóspita, com neve, frio e vento, preferiu os sorrisos, as pequenas dores, as desilusões diárias, as fraquezas consentidas. Às violentas cenas de pancadaria usuais, preferiu a luta corpo a corpo, imprecisa, incaracterística e desgastante. À luta com as mãos (perguntam a Will Penny: «tu não sabes combater com as mãos?...»), antepõe-lhe a eficácia de uma frigideira na cabeça ou de um pontapé na cara. Ao jovem combativo e vitorioso (que concretiza o ideal americano) prefere Gries o velho sem família, ressequido por dentro e por fora. Ao happy-end possível (e que até nem escandalizaria, nas circunstâncias em que termina o filme) prefere o desencontro irreversível, a solidão conscientemente assumida. Ao brilhantismo gritante de tantos e tantos exemplos prefere Tom Gries (que com 45 anos de idade, aqui se estreava no cinema, vindo da TV) o documentarismo escrupuloso, feito de pequenos apontamentos, de pormenores, de elementos dispersos.


Para a realização deste filme simples, Tom Gries (1922-1977) rodeou-se de uma óptima equipa de trabalho: um fotógrafo esplêndido, Lucien Ballard (1904-1988), de um músico inspirado, David Raksin (1912-2004) e de um grupo de intérpretes notáveis, com Charlton Heston (1923-2008) a compor, uma vez mais, uma figura vigorosa, entrelaçada de nervos e emoção. Mesmo os seus muitos detractores (por razões essencialmente políticas, note-se) tiveram sempre muita dificuldade em não reconhecer os méritos óbvios desse actor incontornável que durante toda a sua brilhante carreira se desdobrou de filme para filme, com uma versatilidade verdadeiramente invulgar. Ao seu lado, Donald Pleasence (1919-1995) compõe uma personagem memorável, um pregador homicida e louco, e Joan Hackett, uma actriz que morreu muito cedo, apenas com 49 anos (1934-1983) completa o trio principal com a sua habitual presença muito pouco convencional e sempre perfeccionista. "Will Penny", no final da sua visualização, irá entusiasmar os apreciadores do bom cinema, daquele que é sinónimo de inteligência, maturidade estilística e fluência narrativa, que o guardarão na memória durante muitos e bons anos. Ao contrário dos fãs dos westerns tradicionais, onde imperam a violência epidérmica e os efeitos imediatos e fáceis, que rapidamente terão tendência a esquecê-lo.


CURIOSIDADES:

- «The script for "Will Penny" was one of the best I ever read. It made a marvelous westen», referiu um dia Charlton Heston, que nunca escondeu a sua preferência por este filme, de entre toda a sua filmografia.

- Bruce Dern referiu a propósito de ter trabalhado com Heston neste filme: «I got to really like the guy. A lot of people told me that I wouldn't like him, but I liked him, and he tried very hard. I mean, "Will Penny" is far and away the best thing he's ever done.»

- Eva Marie Saint e Lee Remick recusaram o papel de Catherine Allen.

- O argumento é baseado no episódio "Line Camp" (também dirigido por Tom Gries) da série televisiva "The Westerner" (criada por Sam Peckinpah em 1960).

LOBBY CARDS:

domingo, outubro 13, 2013

TOUCH OF EVIL (1958)

A SEDE DO MAL
Um Filme de ORSON WELLES



Com Charlton Heston, Janet Leigh, Orson Welles, Joseph Calleia, Akim Tamiroff, Joanna Moore, Dennis Weaver, Marlene Dietrich, Zsa Zsa Gabor, etc.

EUA / 111 min (edição restaurada) / 
P&B / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 23/4/1958 (Los Angeles)
Estreia em PORTUGAL: Lisboa, 7/11/1958



Quinlan: «Come on, read my future for me»
Tanya: «You haven't got any»
Quinlan: «Hum? What do you mean?»
Tanya: «Your future's all used up»


Os heróis wellesianos encobrem o passado e são por ele atraídos, pressentem que não se podem realizar sem o enfrentar, quer seja para o integrar ou o anular duma vez para sempre. Daí a necessidade de perpétua interpenetração do tempo, de entrelaçamento do passado e do presente, de investigações que por vezes tomam um carácter jornalístico, policial e, por vezes, psicanalítico. Mas, precisamente, o passado que aparece, o rosto que se revela sob a máscara arrancada, é a crueldade, é o crime, opostos da honra e dos ideais. A verdade não é a que se pensava, não é boa, nem bela, mas é uma verdade à sua maneira.


"Touch of Evil" revela-se duma importância singular para a compreensão da obra wellesiana, não por de alguma forma lhe trazer dados novos, mas por a levar a um universo mais próximo da escória humana. Rodado em 1957, por sugestão de Charlton Heston (que exigiu que fosse Welles o realizador), o filme baseia-se num romance policial banal - "Badge of Evil", de Whit Masterson - que Welles transfigurou ao ponto de fazer dele uma das suas obras mais insólitas (parece até que nem leu o livro original, apenas o argumento dele extraído). Do famoso plano-sequência que inicia o filme até ao desfecho final, no estranho cenário de um terreno baldio, mergulhamos num mundo de puro pesadelo, reconstituído por uma câmara vertiginosa e omnipresente que não dá tréguas nas suas deambulações por todos os artifícios técnicos (profundidade de campo, plongées, contreplongées, grandes angulares, planos-sequência, etc.) que constituem a imagem de marca do ex-menino prodígio de Hollywood.


Mas de que trata o filme? Numa pequena vila fronteiriça, situada entre os Estados Unidos e o México, um jovem polícia mexicano, Mike Vargas (Charlton Heston), encarregue do combate ao tráfico de estupefacientes, é testemunha da explosão de uma viatura armadilhada que resulta na morte de um casal, sendo o condutor um poderoso americano da terra, chamado Rudy Linneker. Hank Quinlan (Orson Welles), um inspector americano, é incumbido de investigar a ocorrência. À semelhança de outras investigações do passado, Quinlan não hesita em forjar provas contra os que lhe convém serem considerados culpados. Consegue-o neste caso graças a um traficante local chamado Grandi (Akim Tamiroff), sobre quem pesam aliás as maiores suspeitas.


Ambos fazem os impossíveis para comprometer Vargas, o recém-casado colega mexicano colaborador na investigação, não hesitando em servirem-se da mulher, Susan (Janet Leigh). Uma vez raptada e drogada, e conduzida a um quarto de hotel, Quinlan estrangulará aí o traficante, livrando-se assim dessa incómoda testemunha. A sua maquinação é descoberta por Vargas, que encontra um aliado inesperado na pessoa de Menzies (Joseph Callei), o próprio amigo de Quinlan, para quem este tinha sido até então um verdadeiro deus. O filme acabará num ajuste de contas final entre os dois homens, depois de Vargas ter conseguido gravar a conversa incriminatória ocorrida entre os dois. Mas o plano derradeiro pertence a Marlene Dietrich: «He was some kind of a man. What does it matter what you say about people?»


Contrariamente aos filmes anteriores de Welles, os personagens de "Touch of Evil" não têm a dimensão social ou mitológica de um Kane ou de um Macbeth, sendo antes personagens de categoria inferior, ratos de esgoto e não ratos de cidade. Quinlan não sonhou mais do que eles em querer ser outra coisa que sómente um homem. Permanece um desconhecido e um ser dividido que, além do mais é também, à sua maneira, um representante da ordem social, uma autoridade, mas uma autoridade transgressora. Como ele próximo chegou a confessar, Welles transmite neste filme todo o seu ódio à prepotência policial. Esse ódio não é mais que o aspecto particular duma hostilidade para com todas as formas de opressão de que aliás ele próprio foi vítima particularmente:


«É um erro julgar que Quinlan tem algum encanto a meus olhos. Para mim, ele é odioso: não há ambiguidade no seu carácter. Não é um génio; é um mestre no seu género, um mestre de província, mas um homem detestável. O que pus de pessoal no filme, é o meu ódio ao abuso que a polícia faz do seu poder. E é evidente: é mais interessante falar dos abusos do poder policial com um homem de um certo volume - não sómente físico, mas no que respeita a personalidade - do que com um pequeno chui vulgar. Quinlan é pois melhor do que um chui vulgar, o que não impede que seja odioso. Não há nenhuma ambiguidade nisso.


Mas é sempre possível sentir simpatia por um crápula, pois a simpatia é coisa humana. Donde a minha ternura relativamente a pessoas por quem não dissimulo de modo nenhum a minha repugnância. E este sentimento não vem do facto de serem mais dotadas, mas de serem seres humanos. Quinlan é simpático por causa da sua humanidade, não das suas ideias. Não há a menor parcela de génio nele: se parece haver uma, cometi um erro. Quinlan é um bom técnico, sabe do ofício: é uma autoridade. Mas porque é um homem de uma certa envergadura, um homem de coração, não nos podemos impedir de sentir uma certa simpatia por ele: é apesar de tudo um ser humano.»


Lembremos o que escreveu André Bazin, um dos autores da entrevista feita a Welles, no hotel Ritz em Paris (no dia 27 de Junho de 1958),  sobre a sua personagem neste filme: « Quinlan não é realmente o polícia vicioso. Ele não tira lucro das suas investigações. Ele está convencido da culpabilidade das pessoas que faz condenar com falsas provas. Sem ele, esses culpados passariam pois por inocentes. Ao direito das pessoas, à inteligência e à lógica honesta do seu colega mexicano, ele opõe a "intuição" que lhe garante a exactidão do seu diagnóstico. As provas, se as fabrica, é porque são necessárias para enviar o "culpado" para a cadeira eléctrica.


Fisicamente monstruoso, Quinlan sê-lo-á também moralmente? É preciso responder sim e não! Sim, porque ele é culpado de ir até ao crime para se defender: não, porque de um ponto de vista moral mais elevado ele está, em alguns aspectos pelo menos, acima de Vargas, o honesto, o justo, o inteligente, mas a quem escapará sempre um sentido da vida que eu diria shakespeariano. Estes seres privilegiados não devem ser julgados segundo a lei comum. Eles são ao mesmo tempo mais fracos e mais fortes que os outros.»


A portentosa imaginação expressionista de Welles, tanto nas personagens (um destaque muito particular para Marlene Dietrich, no papel de Tanya, dona de um cabaret e antiga amante de Quinlan) como nas situações, rende uma completa homenagem ao film noir contituindo-se, em definitivo, como impulsionador dos filmes subsequentes do género, nomeadamente as primeiras obras de François Truffaut ("Les 400 Coups") e Jean-Luc Godard ("A Bout de Souffle"). Mesmo um cineasta genuinamente original como Alfred Hitchcock iria colher aqui muita da inspiração (inclusivé usando a mesma actriz) com que filmou o célebre "Psycho", apenas quatro anos depois.


CURIOSIDADES:

- Em 1957, a primeira montagem do filme, com cerca de 109 minutos, alternando planos-sequência longos com cenas extremamente rápidas, não agradou à Universal que impôs um corte de 15 minutos (suprimindo as cenas que permitiam compreender a dimensão moral do filme) e acrescentou novas sequências rodadas por um tal Harry Keller. Welles viu essa nova versão e em poucas horas escreveu um apaixonante memorando de 58 páginas, requisitando o direito de ele próprio refazer o filme («I close this memo with a very earnest plea that you consent to this brief visual pattern to which I gave so many long hard days of work»). Não foi atendido, e "Touch of Evil" estrear-se-ia nas salas de cinema, em Maio de 1958, na versão dos produtores, com cerca de 95 minutos. Em 1998 o filme foi restaurado de acordo com o memorando de Welles, de modo a aproximá-lo o mais possível da visão original do seu autor. É essa nova versão, com cerca de 111 minutos, que se encontra agora disponível em DVD. Apesar de tudo, o formato do filme foi alterado do original 1.37:1 para 1.85:1.


- O agente de Janet Leigh rejeitou a sua participação no filme, sem sequer consultar a actriz, por considerar muito baixo o salário oferecido pela produção. Welles escreveu a Leigh, dizendo-lhe que gostava imenso que trabalhassem juntos. Esta enfureceu-se com o agente, dizendo-lhe que ser dirigida por Welles era mais importante do que qualquer cheque.

- A longa sequência de abertura foi filmada durante toda uma noite, com inúmeras repetições. Já os primeiros raios solares se anunciavam no horizonte quando finalmente Welles se deu satisfeito com o resultado final.

- Mercedes McCambridge só aparece no filme numa breve cena e tal deveu-se a ter ido visitar o set e almoçar com Welles. Este convenceu-a a vestir um blusão de cabedal, cortou-lhe o cabelo e disse-lhe as palavras que ela devia proferir na sequência em que Janet Leigh é drogada: «I wanna watch»

- No DVD estava para ser incluido um comentário e um documentário sobre a restauração, intitulado "Restoring Evil". Tal não se concretizou (mas no entanto o documentário encontra-se disponível no YouTube e é mostrado aí mais abaixo) devido à filha de Welles (e detentora dos direitos da obra do pai) Beatrice, se ter oposto. Vá se lá saber a razão...