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domingo, julho 06, 2025

SAMSON AND DELILAH (1949)

SANSÃO E DALILA
Um filme de CECIL B. DeMILLE


Com Hedy Lamarr, Victor Mature, George Sanders, Angela Lansbury, Henry Wilcoxon, Russ Tamblyn, etc.

EUA / 131 min / COR / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA (Nova Iorque) a 21/12/1949 
Estreia na ÁFRICA DO SUL (Johannesburg) a 13/12/1950
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 16/2/1951



Samson: «Your arms were quicksand. Your kiss was death. The name Delilah will be an everlasting curse on the lips of men»

Confesso, desde já, que nunca consegui encontrar uma explicação lógica pelo fascínio que “Samson and Delilah” sempre exerceu em mim. Provavelmente terá alguma coisa a ver com o facto de ter sido um dos primeiros filmes que me encantou na minha meninice. Dizem que as impressões fortes da infância nos marcam para sempre e é bem capaz de ser verdade.

Hoje, mais de meio século passado sobre o primeiro visionamento (que terá ocorrido, quase de certeza, no velhinho Teatro Varietá de Lourenço Marques, desaparecido há já muito tempo, nos meados dos anos 60) não me custa nada reconhecer as debilidades da fita. Um enredo incongruente (baseado muito livremente numa historieta bíblica), cenários artificiais ou interpretações medianas serão algumas das farpas com que críticos judiciosos têm imolado o filme ao longo dos anos. Sinceramente, nada disso me interessa, o que me importa é o prazer genuíno que sinto todas as vezes que vejo “Samson and Delilah”. Que é daqueles filmes que estou sempre pronto para ver, qualquer que seja o meu estado de espírito do momento. E isso é razão mais do que suficiente para o considerar um dos filmes da minha vida, independentemente de o poder incluir na lista dos meus “guilty-pleasures” de eleição.

O reinado de Cecil B. DeMille no cinema americano, e de Hollywood em particular, começa no final da era Griffith. Logo após o final da Grande Guerra, DeMille teve a habilidade de se antecipar – como pioneiro de uma nova temática – ao que havia de ser a futura grande produção cinematográfica, enquanto outros realizadores continuavam a fazer filmes de temas bélicos. DeMille dedicou-se à busca de argumentos românticos, exóticos, espectaculares e familiares, que foram acolhidos entusiasticamente pela classe média norte-americana, a qual, a partir de 1919, constituiria o grande público do cinema.

Uma das características do após-guerra foi uma nova moral, assim como a rebelião contra o dogmatismo de muitos valores tradicionais. O respeito pela religião, o espírito de sacrifício, o dever, o amor ao lar e à família, assim como a resignação à própria sorte, foram supridos por um novo conceito, materialista, livre e desenfreado, dos desejos sensuais, que DeMille pareceu condenar (participou pessoalmente na aprovação do célebre Código Hays) , mas que na realidade propagou e impulsionou ao utilizá-los comercialmente nos seus filmes, a ponto de vir a ser conhecido como o criador do sex-appeal no cinema.

«A minha profissão é fazer películas para entretenimento público, há que saber bem aquilo que os espectadores querem ver». Efectivamente, o público constituiria o centro do seu interesse e seria para ele que DeMille realizaria o seu cinema “histórico”, de tipo colossalista, com abundância de temas bíblicos ou cristãos, e baseando-se quase que invariavelmente na fórmula “Deus mais Sexo”, conforme escreveu Roger Boussinot. “Samson and Delilah, o antepenúltimo dos 80 filmes de DeMille (que realizaria apenas mais dois, “The greatest show on earth”, em 1952 e a segunda versão dos “Ten Commandments”, em 1956) enquadra-se perfeitamente nessa maneira de encarar a produção fílmica – um negócio bíblico-erótico que mandava às urtigas o respeito pela veracidade histórica ou religiosa, em proveito do entretenimento do público.

“Samson and Delilah” é um filme épico e fascinante, recheado de acção e emoção: a caçada ao leão, o dizimar dos soldados com uma queixada de burro, a sequência da sedução e traição de Delilah, o aprisionamento de Samson à roda do moinho ou a destruição final do templo de Dangon, são as mais célebres cenas de antologia deste filme inesquecível. Mas, no fundo, “Samson and Delilah” não passa de uma história de amor, uma comovente história de amor que pode ser vista como a versão simbólica do mito da bela e do monstro. Daí não ser muito de estranhar a escolha de um actor medíocre como Victor Mature, o qual se enquadra que nem uma luva no papel do homem hérculeo, cujo adorno capilar é o receptáculo da força sobrenatural que recebe directamente do seu Deus.

Quanto a Hedy Lamarr o caso muda completamente de figura – estamos em presença de uma boa actriz e, fundamentalmente, de uma das mulheres mais belas que o cinema já nos deu a contemplar. A sua Delilah é uma criação iniguável, um misto de volúpia e encantamento que a câmara de filmar conseguiu reter para a posteridade. Toda a sequència, já citada, da sedução passada no oásis é de uma beleza invulgar e o nosso olhar como que é obrigado a segui-la constantemente, tornando acessório tudo o mais existente à sua volta. Uma referência ainda a George Sanders, perfeito no papel do cínico Saran de Gaza, bem como a Angela Lansbury que não destoa mas que dificilmente nos pode fazer acreditar que alguma vez um representante do sexo oposto a pudesse preferir em confronto directo com Hedy Lamarr.

O filme receberia 2 Óscares da Academia nas categorias de Guarda-Roupa e Direcção Artística e Cenários, conseguindo ainda mais 3 nomeações: Efeitos Especiais, Cinematografia e Música. Estas duas últimas categorias são outros tantos trunfos de “Samson and Delilah”. Aquele technicolor é sumptuoso, bem característico da época, e o fundo musical, assinado por Victor Young, é um acompanhante de eleição de todo o filme (o tema de amor, então, é sublime nos seus acordes de paixão e encantamento).


CURIOSIDADES:

- Diversas outras actrizes chegaram a ser equacionadas para o papel de Delilah: Betty Hutton, Jean Simmons, Lana Turner e Rita Hayworth.

- Paradoxalmente à figura de Sansão, Victor Mature era um actor conhecido por ter grandes medos e fobias. Consequentemente todas as cenas envolvendo um mínimo de riscos foram interpretadas por duplos

- Na estreia de “Samson and Delilah, DeMille perguntou a Groucho Marx o que achava do filme. O cómico, mordaz como sempre, respondeu que estava atónito por nunca ter visto um filme em que as mamas do herói eram maiores do que as da actriz principal. DeMille não achou graça nenhuma, ao contrário de Victor Mature, que se fartou de rir com a saída de Groucho.

- O colapso do templo de Dagon, no final do filme, teve de ser filmado por duas vezes devido a problemas com as cargas de dinamite colocadas na maqueta, que teve assim de ser refeita. A sequência final usa imagens de ambas as filmagens



domingo, maio 06, 2012

THIS LAND IS MINE (1943)

ESTA TERRA É MINHA
Um Filme de JEAN RENOIR


Com Charles Laughton, Maureen O'Hara, George Sanders, Walter Slezak, Kent Smith, Una O'Connor, Philip Merivale, Nancy Gates, etc.


EUA / 103 min / P&B / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 7/5/1943
Estreia em FRANÇA a 10/7/1946
Estreia em PORTUGAL a 24/6/1954


O mais desprezado dos filmes americanos de Jean Renoir. A acção desenrola-se (como a do "Journal d'une Femme de Chambre") numa pequena  cidade de França, reconstituída no estúdio, em Hollywood. Este canto de França em estuque é, na realidade, um país imaginário, como o de "Monsieur Verdoux" ou de certos Fritz Lang, como em "Os Carrascos Também Morrem". «Com "Vivre Libre", quis mostrar aos americanos um aspecto um pouco menos convencional da França ocupada... Talvez tenha sido inábil, talvez não haja compreendido o estado de espírito que reinava em França após a libertação. O certo é que fui brindado com inúmeras cartas injuriosas provenientes de França e vilipendiado pela imprensa parisiense. Senti-me sinceramente magoado por não ter sido compreendido.» (Jean Renoir: A minha experiência americana, Cinémonde, 1946).
"This Land is Mine", apesar da realização clássica, de uma prudência nada habitual em Renoir - tratava-se de convencer, custasse o que custasse, o público americano - é um belo filme, em que se reconhece imediatamente o nosso autor, pelo menos no personagem e na representação de Charles Laughton, o qual se assemelha tanto com o realizador como Pierre Renoir em "La Marseillaise". Ê, além do mais, e quer queiramos quer não, um filme tipicamente francês, e não é por acaso que pensamos constantemente em Daudet de "La Derniêre Classe". Bardêche, que fez recuar os limites da desenvoltura crítica ao dar conta, numa das edições da sua História do Cinema, de um filme americano de Renoir que nunca foi filmado ("Terre des Hommes", extraído de Saint-Exupéry!), resgata-se com uma análise muito honesta de "Vivre Libre":
 «Embora cometa o mesmo tipo de erro, o filme de Jean Renoir, "Vivre Libre", é menos chocante para as cobaias convidadas a contemplar as suas proezas. Laughton desempenha um admirável mestre-escola que tem muito medo dos bombardeamentos, que gosta do bem-estar, da malga de leite, da sua velha mãe, que sente um grande respeito pelo inspector da Academia e pelas autoridades de ocupação e que, por fim, se transforma num carneiro enraivecido: as sessões do tribunal militar são públicas como as audiências do civel; o patriotismo é em estilo flamejante; os professores, lágrimas nos olhos, arrancam as páginas dos manuais de história consagrados a Joana d' Arc, à escola laica e a Jules Ferry; e o filme termina com coros de alunos que cantam como salmos os artigos da Declaração dos Direitos do Homem.
Estas evocações altamente republicanas levam-nos a sorrir e o filme foi severamente criticado em França. Foi um acolhimento bastante injusto, pois, com defeitos inevitáveis, tipicamente defeitos de "ausência", Renoir tentava compreender a situação de um país ocupado; o seu filme é o de um homem inteligente que utiliza dados que não se podem imaginar à distância, mas, no fim de contas, há certamente menos disparates e indignidades no seu filme do que noutros posteriormente realizados em França, com temas semelhantes.» Estamos de acordo com as considerações de Maurice Bardêche.
François Truffaut

Efectivamente, não é difícil admitir que "This Land Is Mine" não é a mais requintada das obras de Renoir em matéria de nuances psicológicas, antes utiliza o cliché sobre diversos temas da época: a França ocupada, os nazis, o colaboracionismo ou a resistência. Mas uma vez aceite a veia propangadista do filme - não esqueçamos que foi esse o seu objectivo principal - resta-nos, ainda assim, um belo objecto cinematográfico, mesmo sem conseguir atingir o esplendor das grandes obras de Renoir. "This Land Is Mine" é, sobretudo hoje, visto à distância de várias décadas, um filme bastante emotivo e agradável de se (re)ver. A cena final, então, ainda que de todo inverosímel (um resistente a defender liricamente as suas ideias diante de um tribunal colaboracionista, sem que ninguém o impeça, mesmo os nazis que se limitam a abandonar a sala), é um grande momento desse enorme actor que foi Charles Laughton, permitindo-se figurar entre as melhores sequências jamais rodadas sobre os estigmas da segunda guerra mundial.
Apesar (ou por causa) de uma grande economia de meios, Renoir consegue evidenciar algumas sequências memoráveis deste filme, para além da já citada cena final do tribunal: a introdução da personagem de Lory (submisso a uma mãe castradora que não hesita em obter ilicitamente o leite matinal para o seu menino), o jantar de conveniência em casa de Louise e Paul (atente-se nesse momento único e hilariante que é a iniciação de Laughton no tabagismo), a censura dos livros em plenas salas de aula (em que os alunos vão seguindo o exemplo dos professores e arrancando uma a uma as páginas proibidas) ou ainda a visita do Major Von Keller a Lory na prisão (e o testemunho deste dos fuzilamentos que ocorrem no pátio). Tudo cenas que nos fazem recordar o grande cineasta que Renoir sempre foi, mesmo filmando, em solo americano, um filme de encomenda como este. "This Land Is Mine" viria  a receber o Óscar do Melhor Som, único na filmografia de Renoir. Um filme que se aconselha (re)descobrir, sobretudo por parte daqueles que sempre o votaram ao ostracismo.


CURIOSIDADES:

- George Sanders, o actor que no filme interpreta o papel de Georges Lambert e que acaba suicidando-se, fez idêntica opção na vida real. Aos 65 anos, no dia 25 de Abril de 1972, isolou-se num hotel de Castelldefels, perto de Barcelona, e ingeriu 5 garrafas de nembutal. Deixou a seguinte nota escrita: «Querido mundo, deixo-te porque estou aborrecido. Sinto que já vivi o suficiente. Deixo-te com as tuas preocupações idiotas. Boa sorte!»

quinta-feira, novembro 11, 2010

THE GHOST AND MRS. MUIR (1947)

O FANTASMA APAIXONADO




Um filme de JOSEPH L. MANKIEWICZ


Com Gene Tierney, Rex Harrison, George Sanders, Edna Best, Anna Lee, Natalie Wood


EUA / 104 min / PB / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 26/6/1947
Estreia em Portugal a 20/10/1947


Captain Gregg: "Blasted women! Always make trouble when you allow one aboard... "


Vi este filme, pela primeira vez, ainda não tinha 13 anos, no Ti­voli, quando o Tivoli cheirava a Fox e eu dizia Vinte Century Fox. Talvez por isso, a palavra vintage, que só aprendi muito mais tarde, me esteja visualmente associada ao emblema da casa de Zanuck e me apareça sempre, entre holofotes cruzados, ascendendo e descendendo por espaços efémeros.
Lembro-me que gostei. Lembro-me que gostei muito. Mas nunca imaginei que ia gostar tanto e que tanto, toda a vida, me ia lembrar desta história de amor e de morte. Aos 12-13 anos, os grandes amores são solitários e são coisa de nós com nós, sem mais corpo do que o próprio. Por esse lado, podia, obscuramente, como através de um espelho, desvendar parte importante do criptograma do filme. Mas ainda era muito cedo (e agora talvez seja muito tarde) para desvendar a parte que com essa parte se soma. Aos doze anos, a morte é uma palavra vaga e os fantasmas brincadeiras para sustos a pregar uns aos outros.
Precisei de mais trinta anos (trinta e dois, se contar pelos dedos) para saber que o Capitão Daniel Gregg (Rex Harrison) não era fantasma nenhum ou era o fantasma todo. Nesse dia, preguei o imenso poster do filme (o original) na parede que fica na frente da minha secretária na Gulbenkian. Eu já lá não estou, o poster ainda lá está (Agora, já não está. Mas, embora empalidecido pelo sol - quem é que se lembra de pôr fantasmas ao sol? - continua no meu gabinete. Na Cinemateca). Gene Tierney (Lucy Muir) em primeiro plano, imensa e vogante, «with that taunt in her smile». Rex Harrison, na sombra, atrás dela, «with that haunt in his kiss». E, no canto direito, em baixo, muito mais pequenino, George Sanders «without a ghost of a chance». «The Flesh ... So Wéak.» «The Spirit ... So Wiliing.» Podia ser ao contrário, mas assim sossega mais. E também por lá se diz, na capa de um livro fechado, que «the film becames the delight of your life.» Não sei se "delight" é a palavra mais própria, mas muita coisa em a minha vida "becamou".
Mrs. Muir - já o disse - é Gene Tierney, nos anos de "Laura", de "Leave Her to Heaven", de "Dragonwyck", nos anos em que mais Gene Tierney foi, mulher patchuli, mulher asfódela. Mr. Muir - quem quer que tenha sido - nunca o conhecemos. Morreu antes do filme co­meçar, de um flato ou de coisa parecida, deixando-lhe a cara e o corpo magníficos envoltos em crepes, como em crepes se envolviam as viúvas inglesas do princípio do século, tempo e país do início da acção. A advinhar pela família com quem a deixou a viver (sogra e cunhadas), nem ela nem nós perdemos grande coisa. Mas deixou-lhe uma filha de sete anos, papel confiado à criança que então era Natalie Wood.
Para fugir dessa casa londrina, casa de um morto, casa de mortos, decide Mrs. Muir, com enorme escândalo da família, mudar de ares e mudar de mares, levando-se a ela, à filha e à criada (Edna Best) para uma praia sobre o Atlântico, onde, de noite, o vento assobiava nas frinchas de madeiras velhas e onde brenhas de ondas se batiam contra os penhascos. Das muitas casas que lhe mostraram, nenhuma a con­vence. E só quis a casa que não lhe queriam mostrar, porque - dizia­ -se - estava assombrada pela alma penada do Capitão Gregg, que nela se suicidara. O fantasma não assusta Lucy Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele. E o medo do desejo não é medo de Gene Tierney. Por isso, na casa, ama tudo o que nela ficou do capitão: o óculo na varanda do quarto dele, o bezerro dourado que trouxe de uma das suas muitas viagens, o retrato dele toscamente pintado, fardado de lobo de mar, com um sorriso entre o sarcástico e o diabólico.
Uma mulher em sombra (o luto, os véus) troca um morto por um fantasma. E se o morto a quisera enterrar viva (em Londres) o fantasma vai e vem do mar, atravessa-lhe as janelas e propõe-lhe a mágica dissolução, tão mágica como esse plano, entre todos mágico, em que, na primeira noite passada na velha casa, Lucy acorda e vê o mar através da janela, essa janela que fechara antes e que durante o sono se abriu. E, quando já tem a certeza que ele está ali, Mrs. Muir desencadeia a apa­rição. Levanta-se, vai à cozinha e risca um fósforo para acender o lume. As luzes todas apagam-se, a trovoada e os relâmpagos começam. E é nesse momento que ela diz: «/ know you are there» E Rex Harrison surge diante dela, malcriadissimo como só Rex Harrison soube ser, para uma discussão nada metafísica sobre o direito de qualquer deles à posse exclusiva da casa. Fantasma de desejo, Harrison é também fan­ tasma da violação (de desejo da violação), donde a agressividade irónica das relações entre eles.
E se Rex Harrison exige que o retrato dele volte para o quarto, que é agora quarto dela, Gene Tierney tapa-o quando se despe, escondendo a nudez da imagem em movimento ao olhar da imagem fixa.
É depois que começa, nos muitos encontros com o fantasma, a felicidade dela, tão mais intensa quanto mais necrófIla e solitária. «I’m so happy», diz. Debalde, o fantasma lhe responde que tudo quanto ela vê é uma ilusão, «like a blasted lantern slide». Debalde, o fantasma lhe diz: «I’m here because you believe I’m here.» Essa ilusão, essa crença, são o mundo de Mrs. Muir, tanto como o mar e a praia, ou tanto como a música off (que também está ali e não está ali), uma das mais geniais partituras do genial Bernard Herrmann (deêm-me só essa música e já todo o fIlme vem atrás).
Quando o Capitão lhe diz que é uma ilusão, Lucy Muir responde que «It’s not very convincing, but I suppose it’s all right». E ilusão não é o livro que o Capitão lhe dita, memórias de marinheiro escritas por uma mulher. «What they didn't know about life would fill an encyclopaedia.» E, entre as muitas coisas que ela não sabia, está essa palavra que dá origem a uma das mais prodigiosas fIntas jamais feitas aos códigos dos bons tempos de Hollywood. O capitão dita-a, sem que o ouçamos. Ela pára de escrever à máquina, cora e recusa-se a escrevê-la. O capitão berra e insulta. A câmara coloca-se em frente de Gene Tierney e, dedo a dedo, hesitantemente, esta procura, letra a letra, a palavra que tem quatro. E quem se lembra do teclado AZERT, não tem muita dificuldade, seguindo-lhe os movimentos, em saber que ela começou no F e acabou no K. Foi a primeira vez que esta palavra, não aparecendo, apareceu num fIlme. Como o fantasma. Exactamente como o fantasma, também fantasma dela.
O livro faz Mrs. Muir voltar a Londres. O livro publica-se, não fantomaticamente. E Londres e o livro vão trazer ao fIlme o terceiro «morto»: o escritorzeco Miles Fairley (George Sanders). Há sempre um momento em que, no reino dos mortos, alguém se volta para trás, à busca de uma imagem mais "real". Gene Tierney inicia o seu terceiro Iove affair, com a fraca réplica do capitão, que é a presença sedutora de George Sanders. O fantasma começa por tentar expulsá-lo. Depois, rende-se à vida, no seu segundo "suicídio". E é enquanto ela dorme («Ah! Comme Gene Tierney est belle quand elle dort!») que Rex Harrison se vem despedir dela, na mais bela sequência de sempre da história de Hollywood. «Oh, Lucia» (a voz de Harrison, a música de Herrmann) «you are so little and so lovely» Depois, recita-lhe Keats (Ode to a Nightingale) e fala-lhe de como teria gostado de a levar a ver o sol da meia-noite, os fiordes da Noruega. «What you have missed, Lucia, by being born too late to traveI the Seven Seas with me! And what I've missed too» Depois, ele que, antes, num momento em que ela demasiado se aproximou dele, lhe dissera rudemente: «Keep your dis­tances, madam», inclina-se para ela num quase beijo que, de novo, interrompe. E afasta-se para a janela e para o óculo, que nunca mais vai poder ver o invisível. No sol da manhã seguinte, o capitão desapareceu da vida e da casa de Lucy Muir, que só o capitão tratava por Lucia, como se ela viesse de Lammermoor.
Mas com ele - pouco depois dele - desaparece também George Sanders. Quando Gene Tierney o vem buscar a terra firme (a casa dele) descobre que esse outro "sonho" ocultava a dura realidade de uma banal mentira e de uma banal mediocridade (Sanders era casado e a sua história uma história contada a muitas e passada com muitas). Daí para diante não há mais homens - vivos ou mortos - na vida de Mrs. Muir.
E o tempo começa a passar muito depressa. Depressa envelhece Mrs. Muir. Depressa a filha cresce e a filha casa, para só então contar à mãe que ela também, em criança, vira o fantasma. E depressa chega uma tarde (um fim de tarde) em que Mrs. Muir, de cabelos brancos, se sente muito cansada e pede à criada um copo de leite. Não chega a bebê-lo. O copo escorrega-lhe das mãos e Mrs. Muir morre, agasalhada, na cadeira em frente ao mar em que sempre se sentou. A imagem des­dobra-se. E os dois fantasmas - o dele e o dela, como foram quando eram - ficam a olhar para a velha morta. Depois, descem as escadas de mãos dadas e depois abrem a porta e desaparecem, entre a música, no meio da névoa.


«I have been half in love with easeful Death ... / 
Was it a vision or a waking dream?» (Keats).

De todas as artes, o cinema é a mais onírica. E essa dimensão nunca existiu tanto como nos filmes "germanizados" ou "germanizantes" feitos em Hollywood nos forties. Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), o realizador de The Ghost and Mrs. Muir” e que só agora nomeio, não era alemão, mas descendia de alemães e na Alemanha se formou. Toda a sua vida procurou o cinema total. Apesar de muitas outras obras­ -primas, nunca esteve tão perto como neste filme de que disse recordar sobretudo «o vento, o mar e a procura de qualquer coisa de diferente». «E as decepções que se tem»
Não há filme mais triste. Não há filme mais bonito. Deixem-me ficar ao pé da mulher que nasceu tarde demais para atravessar os sete mares e para ver o sol da meia-noite. Deixem-me ficar ao pé do capitão que morreu cedo demais para a poder beijar ou para poder deitar-se com ela. Ou deixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o único amor que existe - porque é o único em que acreditamos que existe­ é o amor surreal, esse que Rex Harrison e Gene Tierney encontram no final, quando desaparecem na névoa, atravessada a última porta.
João Bénard da Costa