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quinta-feira, dezembro 11, 2014

IT'S A WONDERFUL LIFE (1946)

DO CÉU CAÍU UMA ESTRELA
Um Filme de FRANK CAPRA


Com James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore, Thomas Mitchell, Henry Travers, Beulah Bondi, Frank Faylen, Ward Bond, Gloria Grahame, H.B. Warner, Frank Albertson, etc.

EUA / 130 min / PB / 4X3 (1.37:1)

Estreia nos EUA a 20/12/1946
Estreia em PORTUGAL a 30/11/1947
(Lisboa, cinema Politeama)
Não existe filme mais apropriado para o Natal do que esta pequena maravilha de Frank Capra. Ao longo das décadas foi certamente  o filme mais programado pelas televisões de todo o mundo para a noite de consoada ou para o próprio dia de Natal. E é no mínimo estranho o facto de "It's a Wonderful Life" ter sido um autêntico flop comercial quando se estreou a 20 de Dezembro de 1946 - em plena época natalícia portanto - na cidade de Nova Iorque. Mas como diz o ditado, «ri melhor quem ri por último» e hoje, passados que são 68 anos (!), "It's a Wonderful Life" (por uma vez bem traduzido em português como "Do Céu Caíu Uma Estrela") aí está, com o mesmo brilho de sempre, a encantar sucessivas gerações de cinéfilos. Não serei portanto original, mas não posso deixar de o sugerir para (mais) esta quadra festiva. Se puderem, mandem vir a versão em blu-ray, que não está bloqueada (região 0), inclui legendas em brasileiro, o documentário "The Making of It's a Wonderful Life" e ainda a versão a cores do filme (esta obviamente perfeitamente dispensável). Deixo-vos com os votos de um Bom Natal e o comentário que o saudoso João Bénard da Costa fez sobre o filme em 1999.


Clarence: «You've been given a great gift, George: 
A chance to see what the world would be like without you»

Em "The Name Above the Title", Frank Capra conta com vagar a génese deste wonderful film. Capra regressava da guerra a Hollywood e tinha que se readaptar a uma capital do cinema que mudara muito (post-guerra quente e pré-guerra fria). Um dia, Charles Koerner entrou-lhe pela porta (porta do recém inaugurado Liberty Films, que Capra fundara com William Wyler e George Stevens para continuar a ter "The Name Above the Title") com meia dúzia de páginas dactilografadas em forma de cartão de Natal que continham o script que Dalton Trumbo extraíra do conto de Van Doren Stern "The Greatest Gift". Dou a palavra a Capra: «Era a história que toda a vida procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros, que deixava perder as oportunidades da vida. Um dia, perdeu a coragem. Desejava nunca ter nascido. E esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O género de história que fará dizer às pessoas quando eu fôr velho e estiver a morrer: foi ele quem fez "The Greatest Gift"». Capra comprou imediatamente os direitos mas encarregou o casal Hackett - Albert Hackett e Frances Goodrich - (que tinham feito a série do "Homem Invisível" e depois escreveriam musicais como "The Pirate", "Summer Holiday", "Easter Parade", "Give a Girl a Break", "Seven Brides for Seven Brothers" ou a série dos "Pais da Noiva") de reescrever a história. Para o protagonista escolheu imediatamente "o único actor que podia fazer aquele papel": Jimmy Stewart, como Capra, no seu primeiro filme post-guerra. E rodou "It's a Wonderful Life" em quatro meses (de Abril a Agosto de 46) "num orgasmo ininterrupto", Quando o concluiu estava firmemente convencido de ter feito «the greatest film I have ever made. Better yet I thought it was lhe greatest film anyboby ever made».

 Mas a América (e o mundo) tinham mudado muito. E se o filme ainda valeu a Capra a sua sétima (e última) designação para o Oscar (que perdeu a favor de outra produção da Liberty Films, "The Best Years of Our Lives" de Wyler), como designação valeu a James Stewart, o sucesso foi bastante relativo. Não faltou quem dissesse que o Capra-corn se estava a tornar cada vez mais corn e menos Capra e quem escrevesse que «a história era tão piegas, que roçava o infantilismo». Bosley Crowther no New York Times chamava-lhe «um repertório de banalidades melodramáticas». E nenhum anjo desceu do céu para o ajudar no meio dessa irónica indiferença. Capra ainda fez mais meia dúzia de bons filmes, mas o seu inconfundível touch chegou aqui ao final. Nunca mais houve um Capra assim. Mas o tempo, nas suas muitas voltas, veio dar razão ao cineasta. 53 anos depois," It's a Wonderful Life" é um cult-movie e o mais amado dos filmes de Capra. Danny Peary na sua obra sobre os cult-movies afirma mesmo acreditar que qualquer inquérito o incluiria entre os mais populares filmes americanos de sempre, ao lado do "Feiticeiro de Oz", de "E Tudo o Vento Levou", de "Casablanca", de "Música no Coração" ou de "A Guerra das Estrelas"

Para mim, "It's a Wonderful Life" é paixão antiga desde que o vi no Politeama, tinha eu doze anos. E muitas vezes, ao longo da vida, me tenho lembrado da moral desta fábula (corn ou not corn) e a tenha contado a gente que repete, com James Stewart, que «era melhor não ter nascido». E nunca consegui deixar de chorar no tear-jerking finale, «admittedly one of the most sentimental endings of all time» (estou a citar Danny Peary). Mas se esse final, após a "ressurreição" de James Stewart, com "The Bells of Saint Mary" no cinema da terra (second feature), a dedicatória no Tom Sawyer, a música de Natal, os milhões de merry christmas, os milhares de dólares a cair no cesto e os milhares de amigos a entrar é, de facto, o mais tear-jerking e o mais natalício dos finais de um filme (que deve ser o que mais vezes foi programado pelas televisões para a noite de Natal) não penso, como a maioria dos críticos, que este filme seja o mais optimista dos filmes de Capra. Já em tempos comparei a estrutura das suas obras precedentes (sobretudo "Mr. Smith Goes to Washington") com a dos westerns clássicos. O cowboy que veio parar a uma cidade de "duros" , apanha   muita "porrada"  e no final vence o "mau" da fita, no último duelo.

Nesses filmes, esse herói, chamasse-se Gary Cooper ou James Stewart, vencia sózinho ou acompanhado por uma minoria de "bons", a princípio aterrorizada e depois, à medida que o "herói" crescia, mais desenvolta nos seus auxílios. Aqui, neste filme com que se encerra o ciclo do great old Capra, James Stewart vence também, mas precisa de uma ajuda de que até aí jamais precisara: a do anjo de 293 anos chamado Clarence Goodbody que, de resto, desceu à terra não apenas para o ajudar, mas para ganhar as asas que em todo esse tempo ainda não tinha conseguido alcançar. O personagem é prodigioso, Henry Travers é-o também, mas essa "descida à terra" não nos deve fazer esquecer que todo o filme é visto do ponto de vista do céu. Ao princípio estamos na terra («You are now in Bedford Palls») na mesma noite de Natal do fim, com a neve a cair e os sons do Natal. 

Ouvimos em off orações e a câmara vai até às estrelas, onde Clarence trata Deus por "Sir". Deus tem uma voz de patrão, firme e dura, manda-o sentar e dá-lhe uma hora para ele se vestir. E quando ele está "sentado" (a câmara sempre nas estrelas, sem personagens) convida-o para um "bom filme": a vida de George Bailey desde o dia, aos sete anos, em que salvou o irmão mais velho de morrer afogado, até à noite de Natal que é tempo de todo o filme. Ao princípio, não se vê nada (quem não tem asas, não vê dos outros planetas) até que a imagem foca "o começo do filme". E quando passamos da infância à idade adulta, de Bobby Anderson a James Stewart, Deus  diz a Clarence «Take a good look on him» e o plano imobiliza-se em paralítico com James Stewart de braços todos abertos, no arquétipo da imagem capriana, que também no cinema nunca mais voltou a ter (depois é o James Stewart de Mann, de Hitchcock, de Ford, tão genial como sempre, mas bem diferente como personagem). É como se Capra nos dissesse também que nunca mais ninguém o iria ver assim, como fora em "You Can't Take It With You" ou como fora em "Mr. Smith".

A história da vida de George Bailey é a história de coisas tão bonitas, como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito, o graduation ball de 1928, com James Stewart a dançar o Charleston como Fonda dançava a valsa no "Young Mr. Lincoln"; aquele espantoso mergulho colectivo; Donna Reed "the prettiest girl in town"; o roupão caído, ela atrás dos arbustos e a morte do pai; os discursos de Stewart (sempre vagamente demagógicos); o "point me in the right direction"; o telefonema a três e o beijo a dois (a câmara sem se mexer, num dos mais prodigiosos planos que alguma vez alguém assinou); a "wedding night"; e o beijo de Ernie a Bert (essa sequência é inadjectivável); James Stewart, o charuto e o aperto de mão a Barrymore; a guerra em filigrana, e tanto mais. Mas é também, em surdina, o elogio do sacrifício e por breves apontamentos (um olhar de Stewart para o irmão ou para a mãe, o espantoso e patético personagem de Thomas Mitchell) a insinuação que basta um leve toque e podemos ver o negativo de tudo isso. E a noite da inexistência de Stewart é esse negativo. 

Os mesmos geniais secundários, fraternais e solidários, "mudam de filme" e quem vence são outros arquétipos deles, patentes nos casos de Beulah Bondi, Ward Bond, Frank Foylen. Aparentemente, esses eram os que não tinham razão para mudar. Se percebemos que o farmacêutico tivesse ido parar 20 anos à cadeia, não fosse George, se percebemos que o irmão tivesse morrido, não fosse George, se percebemos (já mais forçadamente) que Donna Reed tivesse ficado solteirona e de óculos, não fosse George, porque mudaram tanto todos os outros, porque são todos tão agrestes e rudes? E - o que é mais - porque mudou a cidade toda (mudou até de nome) convertida num vasto lupanar, entre strip-teases e luzes agressivas? E por que é que o único personagem que George não re-visita é Lionel Barrymore, o único que não podia ter mudado? Pode um homem só transformar tanto a vida de todos? Capra diz-nos que sim, mas diz-nos que sim, não no real, mas no "filme mostrado" por Deus a Clarence e, depois, na noite que resultou do "truque" do Anjo. De certo modo, "It's a wonderful life" (mas no cinema...), "it's an awful city", mas com batota.

É por isso que a explosão final é tão forte. Porque tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisa de anjos e estrelas) e encarna naquela noite de Natal, em que a presença do Anjo é apena a de uma discreta campainha, sob a força do plano de George com os filhos ao colo e dos dólares que vêm de tudo e de todos. Para um tal hino à vida e ao amor (a palavra final da dedicatória de Clarence) foi preciso ir até às estrelas. Forçar um pouco a mão ao destino, para melhor tentar a liberdade. Não se trata de viajar no passado para descobrir a inelutabilidade dele, mas de não sair da mesma noite, para mostrar como o futuro a modifica. Aparentemente construído em flashback, este filme desfila como as imagens dele. A vida na terra, mesmo em Bedford Falls, é bem mais maravilhosa e mais comovente do que a vida dos anjos que a deixam (apesar das asas ganhas) com uma secreta nostalgia. No céu, não há Natais. Esse é o lote dos homens e é por isso que "it's a wonderful life". Por mais simpático que o anjo seja, não temos pena nenhuma de o ver desaparecer. O nosso amor é George Bailey - James Stewart, em paralítico ou na agitação frenética da imensa alegria final.
(João Bénard da Costa, 1999)


CURIOSIDADES:

- A primeira versão do filme terminava com a canção "Ode to Joy", que depois foi substituída por "Auld Lang Syne"

- James Stewart estava nervoso quando filmou a cena do beijo ao telefone, com Donna Reed. No entanto, o actor acabaria por fazer a cena num único take e de tal modo persuasivo, que a cena teve de ser encurtada para evitar problemas com os censores da época.

- Jean Athur foi a primeira escolha de Frank Capra para o papel de Mary. No entanto a actriz já se encontrava comprometida para uma peça na Broadway e teve de declinar o convite

- A piscina situada por baixo do ginásio existia na realidade (não foi trucagem), e pertencia ao Liceu de Beverly Hills, em Los Angeles

- Dalton Trumbo, Dorothy Parker e Clifford Odets colaboraram todos eles no argumento do filme, sem que os seus nomes alguma vez tenham sido citados.

- Em 2006, o American Film Institute votou "It's a Wonderful Life" como o filme mais inspirador de todos os tempos. No ano seguinte, o mesmo AFI classificou-o em 20º lugar na lista dos melhores filmes de sempre

- Apesar de centrado na época natalícia, o filme foi rodado em pleno Verão, debaixo de altas temperaturas

- Filme favorito de James Stewart e Frank Capra

- Frank Capra ganhou o Globo de Ouro pela realização e o filme teve 5 nomeações para os Óscares, nas categorias de Director, Filme, Actor Principal, Som e Montagem



LOBBY CARDS:

sábado, abril 07, 2012

CAMILLE (1936)

MARGARIDA GAUTHIER
Um filme de GEORGE CUKOR


Com Greta Garbo, Robert Taylor, Lionel Barrymore, Elizabeth Allan, Henry Daniell, Laura Hope Crews, Rex O'Malley, etc.


EUA / 109 m / P&B / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 12/12/1936
(Palm Springs, California)
Estreia em PORTUGAL a 19/10/1937
(Lisboa, teatro S. Luiz)



Marguerite: «I always look well when I'm near death»

A mais famosa cortesã criada pela literatura, para a mais lendária vedeta do cinema. Marguerite Gauthier foi amadurecendo no corpo de outras grandes actrizes até se encontrar com aquela para quem parece ter sido criada. Mais do que Mata-Hari, Maria Walewska, a rainha Cristina ou Ninotchka, Garbo é Marguerite. O célebre romance de Alexandre Dumas Filho, que o próprio escritor adaptou ao teatro, tornou-se o arquétipo do melodrama, que a transformaçâo em ópera, com música de Verdi ("La Traviata") cimentou. Foi, inevitavelmente, uma das obras mais adaptadas ao cinema e neste campo proporcionou a algumas actrizes outras memoráveis criações. Mas nenhuma terá tido a dimensão do papel de Garbo. A primeira Marguerite cinematográfica foi nem mais nem menos do que Sarah Bernhardt (tinha a divina já 67 anos, o que era obra para "cortesã"). Foi em 1912 num filme realizado por Henri Pouctal. Seguiu-se outra diva, esta italiana, Francesca Bertini (uma das "trágicas do silêncio"), em 1915, sob a direcção de Custavo Serena. Em 1921 Marguerite toma a pele de Pola Negri na Alemanha no filme de Paul Stein, "Arme Violetta", cabendo o papel nos EUA à lendária Alla Nazimova (sendo Armand Duval, neste filme, interpretado por Rudolfo Valentino). Antes de Garbo, e já sonora, Marguerite tem o corpo, a voz (e a tosse) de Yvonne Printernps no filme de Abel Cance, "La Dame aux Camélias" [1934]. Foi este que tendo-se estreado em 1935 entre nós, recebeu por cá o título de "A Dama das Camélias". O de Cukor, para evitar confusões, receberia o nome da heroína. Mais tarde a personagem seria interpretada por Micheline Presle [1952] na "Dame aux Camélias" de Raymond Bernard, e por Isabelle Huppert em 1980 na versão de Mauro Bolognini.

Em 1936 Ceorge Cukor tinha já o peso suficiente dentro da MGM para poder escolher os filmes, graças aos êxitos de "David Copperfield" e "Romeo and Juliet", para além da sua mais que provada eficácia na direcção em geral, e na dos actores em particular. Devido a esta última característica (em especial no trabalho de direcção de actrizes), o estúdio convidou-o a dirigir o filme seguinte de Greta Garbo, dando-lhe a escolher entre Camille e Maria Walewska. Sentindo-se pouco à vontade com personagens históricas (dizia que lhe "pareciam saídas de um museu de cera"), Cukor escolheu a obra de Dumas Filho (Maria Walewska seria depois feito por Clarence Brown com o título "Conquest"). O produtor era o mesmo de "Romeo and Juliet", Irving Thalberg, mas a morte não lhe permitiu assistir ao novo triunfo, que lhe foi mesmo roubado por Mayer pois o nome de Thalberg foi retirado do genérico. Mas não era só por aquela razão que Cukor queria "Camille". Para o realizador o papel de Marguerite Gauthier parecia ter sido criado para Garbo.

Goste-se ou não do filme, admire-se ou não a mítica actriz, não há dúvida que Cukor tinha razão. O arquétipo da personagem parece ter encontrado a materialização perfeita tanto no corpo como no "estilo" da estrela: aquela forma "distante" e "superior" de olhar, uma certa frieza no aspecto. Há algo de etéreo que as identifica (Garbo e Marguerite), entre a carnalidade que se adivinha e a espiritualidade que emana. Apesar de mundana, da sua "profissão" ser mais que evidente, de a vermos passar de homem para homem, é difícil identificar a imagem desta Marguerite Gauthier com o sexo (a belíssima abertura do filme, que contra as convenções do tempo, mostra logo a estrela, não faz mais do que destacar a ideia de "pureza", com o ramo de camélias que a florista vem entregar-lhe à carruagem). O que ali se destaca também, como sublinhou Barthes é uma "idée platonicienne de la créature", uma imagem mais próxima das sacrificadas donzelas dos melodramas de Griffith (Lilian Gish em "True Heart Susie", etc.) do que das vamps e mulheres fatais de então.



Aliás essa ideia de "sacrifício" é uma das bases do próprio drama, e Cukor jogou com ela para uma das sequências mais dramáticas do filme, e a decisiva: o encontro de Marguerite com o pai de Armand (uma notável criação de Lionel Barrymore). O que começa com um olhar de desprezo termina com uma manifestação de admiração. Entre um e outro momento, o General muda radicalmente a sua opinião sobre o carácter da mulher. O que vê não é uma frágil e indefesa criatura, explorando o seu estatuto sexual, mas alguém que acaba por reconhecer como "igual" (não da mesma classe, mas sim com idêntica ética e código moral, o que leva de imediato a acreditar na sua palavra de se afastar de Armand), apesar das aparências em contrário. De facto, o que está em causa neste drama é o jogo das aparências e, neste caso, Cukor está como peixe na água.

Ninguém como ele sabe "mostrar" num plano a faceta escondida do personagem (que se pense, para lembrar um dos exemplos mais fáceis, em "Sylvia Scarlett" ou Eliza Dolittle como "My Fair Lady"). "Camille" é um filme sobre aparências, sobre o tal "manto diáfano da fantasia," que cobre a "nudez forte da verdade". A verdade, aqui, irrompe de súbito de forma cruel, quando se rasga esse véu, que era a protecção do barão de Varville. O manto das aparências desaba e a imagem real das "amigas" de Marguerite mostra-se na realidade: megeras oportunistas que a roubam como podem. Às duas cenas de triunfo de Marguerite, a festa em sua casa e a conquista de Varville à sua rival, sobrepõem-se as duas cenas da queda: noutra festa, com o gesto de desprezo de Armand que lhe lança o dinheiro aos pés perante todos os presentes, noutro espectáculo teatral de novo com Varville e Armand, e o leque que por duas vezes cai e é o verdadeiro símbolo da sua própria queda.

Cukor construiu o filme inteiramente à volta de Garbo. Raros são os planos de que ela está ausente. Da mesma forma como começa, assim acaba. Rompendo com a convenção de demorar a entrada da vedeta, termina o filme também como o seu último suspiro. Num melodrama tão convencional como este a última imagem é menos enfática do que se esperaria. Quando os olhos se fecham e o rosto descai há uma rápida fusão que nos leva para a legenda do fim. Se "Camille" é Garbo, e com este trabalho se pode dizer que ela era também actriz, o filme de Cukor impôs uma outra estrela: Robert Taylor. Até então personagem mais ou menos apagada, em busca de uma "imagem" para impor, foi com o papel de Armand Duval que se impôs como galã e, nos anos 30, o herdeiro de Valentino nos sonhos de cinéfilas (e muitos cinéfilos), criando uma figura característica que passou a ser imitada pela maioria dos jovens, e que então receberam o nome de "bobbies".
Manuel Cintra Ferreira

Para se preparar para "Camille", Garbo leu tudo o que encontrou sobre Marie Duplessis, amante de Alexandre Dumas e heroína da vida real da sua Marguerite Gauthier. Longe da câmara, longe do set, interpretava sequências em que sentia, aparentemente, dor intensa. Ao passear pela praia, punha as mãos no peito e parecia ficar sem fôlego. Não se sabe se estava realmente doente na época; se não estava, vivia psicologicamente o papel de uma pessoa que sofre de tuberculose. A preparação ajudou-a a fazer talvez a sua melhor interpretação, e que restabeleceu a sua supremacia. A Marguerite de Greta tem sido submetida a tantas críticas microscópicas como o sorriso no rosto da Mona Lisa. Anos depois, escreveu-se o que o realizador George Cukor teria dito na altura: «Ela foi muito delicada, conseguindo com um leve gesto ser enormemente sugestiva. Nas cenas eróticas, Camille nunca toca, mas beija todo o rosto do amante. Muitas vezes é ela a agressora no amor. Muito original.»

Mas o mistério - e domínio - físico de Greta Garbo, ainda notável hoje, não foi criação dos magos de Hollywood. Embora lhe dessem papéis estereotipados, não conseguiram reduzir a sua capacidade de arrebatar homens e mulheres. O seu inescapável magnetismo não pode ser definido, mas pode ser explorado. E qualquer que tenha sido o sofrimento íntimo que a levou a construir o muro em torno de si e a deixar o mundo vê-la como um enigma, se não mesmo como uma curiosidade, ela nunca mais deixou-se explorar de novo.



O relacionamento de Greta com as suas plateias, sempre foi imediato e directo. Algumas actrizes usaram um único atributo para se tornarem memoráveis: um tom de voz dramático, uma capacidade de interpretação sensível, uma presença cativante. Greta na verdade tinha tudo isso; mas a sua grande realização foi saber, instintivamente ou através de treino, representar não com, mas através do seu rosto notável. A sua beleza era inata e viva, de modo que, mesmo em completo repouso, transmitia uma vasta gama de sugestões. Nunca teve de aldrabar no seu relacionamento físico com a plateia. E, conscientemente ou não, o público sabia disso, e correspondia-lhe como a nenhuma outra actriz. Talvez a adoração que essa honestidade provocava tornasse os relacionamentos na sua vida pessoal mais difíceis de atingir, ou depender.



O rosto de Greta Garbo parecia ter vida própria, uma vida que nenhuma maquilhagem conseguia - ou jamais devia querer - alterar. A sua misteriosa alquimia não requeria artifícios, e conseguia provocar profundas reacções apesar da barreira dos argumentos de segunda categoria. Sabia que tinha algo, embora ninguém soubesse dizer exactamente o quê. Às vezes isso assustava-a, porque não sendo criação dela, estava fora do seu controle, e ela sabia que não era a deusa de mármore com quem muitas vezes a comparavam. Mas este, é claro, era o seu maravilhoso segredo: por mais perfeito que fosse o seu rosto, não era de mármore, mas humano e vivo - e por isso acenava com a promessa de nos dizer, a qualquer momento, tudo o que quiséssemos saber sobre Anna Christie, Ninotchka ou Camille.

Aquele rosto - tão bonito - estava aberto para nós, e podíamos ler nele todos os nossos sonhos. Os realizadores mais sagazes tinham consciência disso, e sabiam, como a própria Greta, que a sua maior força estava no close-up, o grande plano. Ver o rosto de Garbo num filme feito aos trinta anos é compreender que ela jamais pode envelhecer como todos nós. A luz que irradia dos seus olhos dizia logo tudo, prometia tudo, eram confiantes como os de uma criança, experientes como os de uma mulher, indulgentes como os de uma mãe. As pestanas incrivelmente longas que inocente mas inescapavelmente sugeriam sedução. A boca, flexível, carnuda, bem desenhada, o lábio superior a faiscar mensagens particulares de decisão e força, o inferior a evocar uma sensualidade oculta. As pálpebras pesadas, a pele translúcida sobre os pômulos salientes, davam a Greta a capacidade misteriosa de criar estados de espírito e de tensão ao menor tremular.

Ela e os seus melhores realizadores sabiam que em close-ups ela não precisava de mover a cabeça para conseguir uma reacção desejada (lembrem-se do close-up final de "A Rainha Cristina"). Não, eles sabiam que não. Sabiam que não era sequer uma questão de "conseguir", mas de revelar, e por isso não obstruíam, com qualquer movimento ou emoção falsos, a verdade que a plateia veria ao olhar para aquele rosto. Esse era o seu impacto e o seu dom - levar os outros ao ponto de verdadeira identificação com a mulher que viam na tela, enquanto o seu inconsciente respondia em consonância com o dela. Como isso se dava, claro, é o que é o verdadeiro mistério de Greta Garbo e da arte.
(in "The Divine Garbo", de Frederick Sands e Sven Broman, 1979)


CURIOSIDADES:

- A peça original estreou-se em Paris a 2 de Fevereiro de 1852. Alexandre Dumas Filho baseou a personagem de Marguerite numa mulher com quem tinha tido um caso durante 11 meses, e que morreu com apenas 23 anos

- O filme inspirou Milton Benjamin a escrever uma canção em 1936 chamada "I'll Love Like Robert Taylor, Be My Greta Garbo"

- "Camille" era, dos seus filmes, aquele que Garbo preferia

- Greta Garbo foi nomeada para o Óscar de Melhor Actriz Principal. A vencedora nesse ano foi Luise Rainer pelo filme "The Good Earth", mas a Associação dos Críticos de Nova Iorque deu-lhe o prémio de melhor actriz de 1936.