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sexta-feira, agosto 08, 2025

PEEPING TOM (1960)

A VÍTIMA DO MEDO
Um filme de MICHAEL POWELL


Com Karlheinz Böhm, Moira Shearer, Anna Massey, Maxine Audley, etc.


GB / 101 min / COR / 16X9 (1.66:1)


Estreia em INGLATERRA (Londres) a 7/4/1960 
Estreia em PORTUGAL (Lisboa) a 2/3/1961 (Cinema São Jorge)


Mark Lewis: «Do you know what the most frightening thing in the world is? 
It's fear»

Karlheinz Böhm, actor alemão mais conhecido por desempenhar o papel do imperador Franz Joseph na série de filmes da "Sissi" com Romy Schneider, ambicionava soltar-se das amarras a que aquela figura o tinha ligado. Agarrou por isso a oportunidade de filmar com Michael Powell este thriller psicológico de produção inglesa. Não contava era que na estreia o filme recebesse críticas desvastadoras, que o iriam anatemizar ao longo de cerca de 20 anos. A raiva contra o filme (e contra Powell, que viu a sua carreira arruinada) chegou ao ponto de um crítico inglês, Derek Hill, escrever qualquer coisa como «Peeping Tom" é um filme cuja única utilização satisfatória é a de puxar o autoclismo e mandá-lo pelo esgoto abaixo». Pouco tempo depois da estreia os produtores cancelaram a distribuição do filme e logo que puderam venderam o negativo no mercado negro, circuito paralelo e obscuro onde “Peeping Tom” foi sendo esquecido ao longo do tempo e simultâneamente adquirindo a reputação de filme maldito.

Martin Scorsese, desde sempre um grande entusiasta do cinema de Powell, conseguiu em 1979 comprar uma cópia em boas condições de “Peeping Tom”, tendo-o apresentado depois no Festival de Nova Iorque. Foi o início da reabilitação do filme que hoje em dia, para além do status de cult movie é considerado, a par do “Oito e Meio” de Fellini, um exemplo brilhante da arte de realização.

Desde o grande plano de olho com que o filme introduz o espectador a uma constelação de percepções, “Peeping Tom” é um jogo perverso de aproximações. A distância maior que o filme nos concede é a distância que permite a observação visual, sendo que toda a lógica de “Peeping Tom” vai no sentido de transformar o observador na coisa observada. Psicanálise e voyeurismo são dois pretextos de que Powell se serve para construir uma das mais admiráveis metáforas do Cinema. É sempre através de uma “janela” que os personagens nos são mostrados. Janelas, objectivas, écrans, todos esses “aparatos” servem para mediatizar a visão de alguma coisa. Todos eles mostram, e ao mesmo tempo se interpõem, como se ver fosse uma actividade perigosa que é preciso proteger com uma máscara.

De onde vem a imensa força de “Peeping Tom”, de onde vem a imensa perturbação que o filme instala e que lançou o pânico entre a crítica dos anos 60? Vem, em primeiro lugar, da inocência do protagonista e, por isso, do carácter cruel do seu projecto de ligação ente “arte” e “morte”. Mark é o mais comovente dos personagens de Powell, o mais tímido, o mais desprotegido. A arte de Mark (a sua arte mortal) não é uma segunda natureza do personagem: é a sua única forma de manifestação. Em segundo lugar, a força de “Peeping Tom” vem do modo como nos implica enquanto espectadores. A empatia em relação a Mark, a que Powell nos convida, fazendo dele a vítima da experimentação clínica e brutal de um pai perverso, que filma o filho como se fosse uma cobaia (é o próprio Powell que encarna a figura paterna), faz de nós espectadores (com tudo o que implica de prazer) de um jogo em que o Cinema é um instrumento de tortura e morte. À semelhança de Helen, também os espectadores se afeiçoam a Mark e desejam que ele culmine a sua obra.

Curiosamente, Powell afirmou na altura que não existia nada de doentio em “Peeping Tom”, que se tratava pelo contrário de um filme muito terno, muito simpático, quase romântico. Sabemos agora para onde é que essa “ternura” levou a simpatia da crítica da altura que, entrancheirada nas tradiçõs do realismo inglês, não soube (ou não conseguiu) ver o objectivo da genial realização de Powell que era tornar visível no écran o invisível, o intuitivo, o que se encontra no subconsciente de cada um de nós. Em vez disso viram apenas um “filme imoral” cujos mecanisnos perversos os confundiam.

“Peeping Tom” teve a ousadia de enunciar uma verdade, nua e crua, que ainda hoje se mantém: continuamos a gostar de ver no écran cenas de terror e de violência porque gostamos de sentir todas essas sensações, desde que confortavelmente instalados, desde que não tomemos parte nos acontecimentos. Ao forçar o nosso olhar à cumplicidade, Powell subverteu essa segurança, lançando uma armadilha da qual não nos conseguimos libertar.

CURIOSIDADES:

- As escolhas iniciais para o papel principal incluiram Dirk Bogarde e Laurence Harvey.

- A revista Premiere incluiu este filme na lista dos "25 Most Dangerous Movies"





domingo, julho 20, 2025

BLACK NARCISSUS (1947)

QUANDO OS SINOS DOBRAM
Um filme de MICHAEL POWELL e 
EMERIC PRESSBURGER



Com Deborak Kerr, Flora Robson, Kathleen Byron, Jean Simmons, David Farrar, Sabu, Esmond Knight, Jenny Laird, Judith Furse, etc.


GB / 100 min / COR / 4X3 (1.37:1)


Estreia na GB (Londres) a 24/4/1947 
Estreia nos EUA (NY) a 13/8/1947 
Estreia em Portugal (Lisboa) a 26/11/1948 (cinema Eden)



Sister Clodagh: "We all need discipline. You said yourself they're like children. Without discipline we should all behave like children"
Mr. Dean: "Oh. Don't you like children, Sister?"

“Black Narcissus” é um filme que faz irresistivelmente pensar em dois cineastas e em dois filmes que estão nos antípodas de Michael Powell: Robert Bresson e “Les Anges du Péché” (1943); John Ford e “Seven Women” (1966). Baseado num romance da escritora inglesa Rumer Godden (a autora do livro que cinco anos mais tarde inspiraria a Renoir o inadjectivável “The River”), “Black Narcissus” foi inteiramente filmado em estúdios (ao contrário do filme de Renoir), numa Índia imaginária e mítica. Powell afirmou que julgava «ter percebido bem o livro, de que gostei imenso. Li-o durante a guerra, anos antes de o filmar, e impressionou-me imenso. Só que não era filme para fazer durante a guerra. Tive imensa vontade de o realizar porque gosto da vida solitária, da vida ao pé das grandes montanhas (...) Sempre quis fazer um filme sobre as lendas sagradas e as gestas da Índia».

Para esta obra, contou Powell com Jack Cardiff e, pela primeira vez, com o concurso simultâneo dos grandes art directors alemães Alfred Junge e Heinz Heckroth (com JungePowell trabalhara antes). Porque um dos prodígios deste filme é a constituição do décor como seu cerne. O palácio hindu de Esmond Knight e Sabu («palácio não no sentido que a palavra lhe evocara») com a sua imagética à “Khamasutra” é revestido, com a chegada das freiras doutra imagética (“saint-sulpiciana” e “Kitsh”) que, mau grado o seu fundo cristão, se revela tão, ou mais erótica do que a primeira, anunciando e enunciando os fantasmas que vão possuir todas aquelas mulheres. «Só há duas maneiras de se viver aqui: como Dean ou como o eremita» diz-se a certa altura do filme. Dean é o homem dos copos e das mulheres (chega a entrar de tronco nu – numa das muitas audácias do filme – no palácio convertido em convento); o eremita é o homem que se recusa a qualquer comunicação, e nem sequer fala.

As freiras que aceitaram um presente envenenado julgaram que bastava substituir um décor e impedir a entrada de homens. Mas não podiam impedir a entrada do vento (reparem na sua omnipresença na espantosa banda sonora) e com ele de todas as suas memórias e de todos os seus fantasmas. Aos deuses hindus chega-se pelo sexo ou pela abulia, como qualquer “vulgata” ensina. Um e outro caminho estavam proibidos àquelas mulheres com voto de castidade e vida de caridade. Daí que elas não pudessem viver ali, onde o perfume do black narcissus contamina até a velha Flora Robson.

Mas tudo se vai passar entre Deborah Kerr e a incrível Kathleen Byron, a portentosa revelação deste filme. Pessoalmente não conheço sequência mais erótica do que aquela (momento supremo deste filme supremamente belo) em que Deborah Kerr lhe entra no quarto e a vê vestida de encarnado. Nenhuma nudez podia ter tido um efeito erótico assim: porque despida de freira, Kathleen Byron não exibe apenas um corpo, mas através da cor, a carne e o sangue oferecidos e escancarados, em suprema provocação ao manto de castidade de Deborah Kerr. O jogo de contracampos em grandes planos (culminando naquele close-up de Kathleen Byron a pintar a boca-sexo) é simultâneamente o cúmulo do exibicionismo e o cúmulo da perversão.

Repare-se que, antes, nunca víramos Kathleen Byron “profana” ao contrário do sucedido com Deborah Kerr, nos vários flash-backs. Víramos o seu olhar, adivinharamos-lhe o ódio e o amor, mas nada nos preparava para essa ostentação do corpo, como se, literalmente, Sister Ruth atirasse à cara da superiora tudo o que esta fora e tudo o que esta reprimira. Simultâneamente, Kathleen Byron denuncia a hipocrisia de Deborah Kerr, declara o seu cinismo (é depois dessa noite que diz a Dean que o ama) e exibe a natureza do seu amor-ódio por Kerr e Farrar.

E, à luz da vela, na longa vigília, contamina Deborah Kerr, até ao orgasmo-desmaio e até aquele inaudito fondu (que hei-de levar para a cova) onde David Farrar se “freiratiza” em Deborah Kerr na fusão das duas imagens. O décor “distingue” então sobre o filme todo: plano ultra-insólito com o miúdo, o grande plano de “filme de terror” dos olhos de Kathleen Byron, a água, o relógio, os sinos, até à luta de morte (vampírica) que termina, em torno da tensa corda, na morte de Sister Ruth. E o último pedido de Sister Clodagh a Dean é que vele pela tumba de Ruth, o sinal da incrível fusão dos personagens.

E é por aqui que “Black Narcissus” evoca “Les Anges du Péché”. Só que enquanto, no também perversíssimo filme de Bresson (embora com aparências contrárias) a transfusão de Anne Marie em Thérèse se processava através da Graça, em “Black Narcissus” processa-se através do pecado. Mas os extremos tocam-se: se era o Pecado (nesse sentido) que juntava a leiga e a freira do filme de Bresson, aqui é a Graça (o vento, a Índia) que une indelevelmente Ruth e Clodagh. Em estilos completamente diferentes (provavelmente os mais diferentes que imaginar se possam, no extremo do espectro do cinema), Powell e Bresson realizam exactamente a mesma coisa: a experiência poética total.

Raymond Bellour, numa bela análise do filme, cita Blanchot: o texto tradicional como imagem dum círculo branco contendo no centro um núcleo negro. E salienta que Powell procedeu exactamente como Lautrémont: «aumentar o núcleo negro até o fazer cobrir toda a superfície do círculo, desenvolvendo ao máximo as pulsões do inconsciente, de modo a que toda a racionalidade desapareça». É essa entrega ao irracionalismo total que aproxima, a meu ver, o filme de Powell do de Bresson. Se o autor de “Les Anges” escolheu a “écriture blanche” Powell optou pela “oeuvre au noir”. Se Bresson escolheu o despojamento formal, o autor de “Gone to Earth” escolheu o delírio e o excesso, a fuga e a codificação, num imaginário igualmente críptico.

A aproximação com “Seven Women” de John Ford é talvez ainda mais obscura. Porque não a faço pela idêntica situação de clausura em “orientes de sonho ou não” das mulheres de Ford e das mulheres de Powell. Nem pelo paralelismo que se possa fazer entre a relação Margaret Leighton-Sue Lyon no filme de Ford e as de Deborah Kerr-Kathleen Byron no filme de Powell (o lado homossexual). Onde os dois filmes, igualmente antagónicos em estilo e linguagem se aproximam é na inscrição do sexo feminino (o sexo não aparente) como lugar de todos os conflitos éticos e estéticos, é na suprema metáfora vaginal, elidida em Ford pela figura do “grupo” e elidida em Powell pela obsessiva repetição de grandes planos.

Em Ford, o corpo feminino colectiviza-se; em Powell fragmenta-se. Por outro lado, a figura masculina (já em tempos notei que em “Seven Women” Anne Bancroft tratada à John Wayne assume um idêntico papel): David Farrar, misto de Walter Pidgeon e Stewart Granger, é o homem só enquanto catalisador. A guerra é outra e bem mais funda (o que é igualmente visível na personagem de Sabu e no diálogo com Deborah Kerr sobre a masculinidade ou a forma masculina de Cristo).

A conversa vai longa e pode parecer a muitos excessivamente cinéfila ou excessivamente hermética. Abstrusa pode ainda parecer a comparação entre dois cineastas do rigor e da disciplina como Ford e Bresson com este filme completamente desregrado e totalmente indisciplinado. E convém que se diga que para amar “Black Narcissus” é preciso uma boa dose de “infantilismo”, no sentido de uma deixa de Deborah Kerr («Without discipline, we’re all like children»). É preciso amar o gratuito, o excessivo, o maravilhoso, os filmes de terror, os filmes fantásticos e os filmes de aventura. Porque, sobretudo, “Black Narcissus” é tudo isso, ou melhor, está entre tudo isso: os Himalaias, o “holy-man”, Sabu, Jean Simmons (reparem bem nela), as gaiolas, os papagaios, os marajás, os frescos hindus, os santos “Kitsch”, a freira, as jóias (o fabuloso colar de Deborah Kerr), as trompas, os crepúsculos e aquele vento, o black narcissus e as coisas que se julgavam esquecidas «and now they came back home».

«It’s that place, with such a strange atmosphere», responde Deborah Kerr a Flora Robson quando ela lhe fala desses inesperados flash-backs. É exactamente isso. É este filme, é a atmosfera estranhíssima dele, o vento, o vento, o vento, a perda de qualquer identidade («I forgot who I am») e a perversão em qualquer sentido da palavra. «That rare thing, an erotic english film about fantasies of nuns» escreveu David Thompson. “That rare thing” na verdade. Mas o seu erotismo vai muito para além das fantasias das freiras. Digamos simplesmente que “Black Narcissus” é um filme fantástico e erótico. Com Kathleen Byron. E, já agora, para acabar como comecei, outra comparação “insólita”: quem é que se lembrou do “Vertigo” de Hitchcock? Precisamente, na metamorfose de Kathleen Byron, ela também Judy-Madeleine deste filme, ela também morrendo (vertiginosamente) sob o signo do hábito e sob o signo das monjas.
(comentário de João Bénard da Costa)

quinta-feira, dezembro 02, 2010

THE RED SHOES (1948)

OS SAPATOS VERMELHOS



Um filme de MICHAEL POWELL e EMERIC PRESSBURGER


Com Moira Shearer, Marius Göring, Anton Walbrook, Léonide Massine, Robert Helpmann, Ludmilla Tchérina


GB / 133 min / COR / 4X3 (1.37:1)


Estreia na GB a 6/9/1948
Estreia nos EUA a 22/10/1948 (New York)


Estreia em Portugal a 23/2/1950 (Lisboa, inauguração do cinema S. Jorge)


Victoria Page: "Julian?"
Julian Craster: "Yes, my darling?"
Victoria Page: "Take off the red shoes"

“The Red Shoes” foi o filme que inaugurou o cinema S. Jorge, em Lisboa, a 23 de Fevereiro de 1950, ano e meio depois da estreia em Londres. Através da Rank Filmes de Portugal, o público português começava assim a ser familiarizado com a depois famosa imagem do atleta semi-nu a bater no gong sempre que um novo filme daquela distribuidora era apresentado em território nacional. E no entanto o aparecimento de um filme como “The Red Shoes” naquela época, não começou por ser logo um grande êxito.
Pelo contrário, o próprio J. Arthur Rank, patrão da empresa, estava plenamente convencido de que tinha entre mãos um autêntico fiasco e só muito timidamente as primeiras cópias começaram a ser exibidas nas sessões mais tardias de um cinema da capital inglesa. Mas pouco a pouco as pessoas foram aplaudindo e passando palavra, de tal modo que quando o filme se estreou em Nova Iorque, nos fins de Outubro de 1948, esteve 110 semanas em cartaz num cinema de segunda categoria, fora do grande circuito da Broadway. Foi o suficiente para a Universal comprar os direitos de exibição e relançar “The Red Shoes” três anos depois, dessa vez em todo o território americano.
Martin Scorsese, que tal como Coppola ou Spielberg, sempre foi um apaixonado pelo cinema de Powell e Pressburger, e muito especialmente por este “The Red Shoes” (afirmou em tempos ter sido o filme que mais o tinha influenciado em toda a sua carreira, e ainda recentemente, no seu filme “The Shutter Island” o homenageia directamente numa particular sequência), conseguiu, através da sua Fundação, completar a restauração do filme a partir do negativo original e após vários anos de grande trabalho e dedicação. O resultado, brilhante a todos os níveis, foi mostrado no Festival de Cannes de 2009 e é a cópia que agora se encontra disponível em Blu-Ray da editora itv (região B). Uma cópia belissima, de aquisição obrigatória por qualquer cinéfilo que se preze, e que consegue ser ainda superior à edição da Criterion (região A).
“The Red Shoes” não é só um filme de dança (ou sobre a dança). Como referiu Powell numa entrevista concedida em 1981, «Era um argumento encomendado a Pressburger por Alexander Korda antes da guerra. Korda queria fazer um grande filme romântico sobre a história duma bailarina. Julgo – suspeito – que a bailarina seria Merle Oberon, a sua mulher nessa altura. E pensava fazê-lo como então se costumava fazer: uma actriz a representar o papel de bailarina e uma verdadeira bailarina a dobrá-la nos ballets. Emeric escreveu a história e eu gostei imenso. E disse-lhe: é preciso que seja uma bailarina a fazer o papel. E outra coisa: temos que criar um bailado original. Não se pode passar o filme a falar da criação duma obra de arte... e não a criar! É preciso efectivamente realizá-la. E com a rapariga. Se não for assim, é inútil meter mãos à obra». Powell contou também como toda a gente se assustou com essa ideia de criar um bailado novo. Até que Hein Heckroth (famoso director artístico alemão) se entusiasmou e descobriu Moira Shearer, à época uma total desconhecida.
Regressemos a Scorsese, um dos grandes entusiastas deste filme, para recordar outra das suas afirmações: «Michael Powell e Emeric Pressburger criaram uma visão que nunca foi igualada; na verdade “The Red Shoes” é o filme mais maravilhoso alguma vez já feito em technicolor». Toda a razão do mundo, até porque hoje em dia a melhor técnica computarizada é incapaz de recriar todas as matizes pelas quais os filmes rodados a cor, anteriores à década de 60, ainda hoje se distinguem.
A sequência da dança em “The Red Shoes” continua a ser um dos exemplos mais notáveis das perspectivas que o cinema abriu sobre a união do movimento e da cor. A fluidez da realização junta-se ao domínio privilegiado desta última, elevando a estética do cinema ao patamar da pintura, do maravilhoso ou do puramente imaginário. Mas não foi apenas a esplendorosa fotografia e os magníficos cenários do filme de Powell e Pressburger que tanto encantou Scorsese; e muito menos as excelentes coreografias de bailados tão clássicos como “Copélia”, “Les Sylphides” ou o “Lago dos Cisnes” que o filme contém. 
O que realmente fascina Scorsese e outros realizadores foi a noção de que a arte, seja ela qual for, é uma razão pela qual se pode morrer também. O cinema sempre foi pródigo em mostrar mortes ou sacrifícios em nome da honra ou da pátria ou do amor; mas nunca em nome da arte, pelo menos de uma maneira assim tão explícita. Victoria Page (Moira Shearer) sabe porque morre (ou porque se mata): porque lhe é impossível escolher antre a dança («I must») e o amor. Lermontov (Anton Walbrook), que é o espectador e não o criador, não conhece esse dilema como mortal. A sua única e importante missão é manipular tudo e todos à sua volta, passando por cima de coisas tão comezinhas como os sentimentos humanos.
Para ele, é tudo uma questão de encenação, como a que de si próprio dá ao anunciar ao público (no lugar do actor, contra a cortina fechada) a impossibilidade física de Victoria Page estar presente e depois quando ordena que o espectáculo prossiga (“the show must go on”), mesmo após a morte da bailarina, e portanto sem a intérprete principal em palco – unicamente o foco de luz a iluminar os espaços onde dantes havia vida e agora apenas a sua memória. É sob este aspecto que The Red Shoes” ultrapassa o simplificado dilema arte-amor («nothing but the music», como diz Walbrook) para ser sobretudo uma reflexão sobre o espectáculo.
CURIOSIDADES:

- Não foi de ânimo leve que Moira Shearer aceitou protagonizar Victoria Page. Para ela o bailado estava muito acima do mundo do cinema e só o incentivo da sua professora de dança (convencida que o filme iria trazer muito mais público ao ballet – e não se enganou) a convenceu em definitivo a estrear-se no cinema

- A sequência do bailado “The Red Shoes”, que dura cerca de 15 minutos, levou seis semanas a ser rodada. O corpo de ballet era composto por 53 bailarinos e foram usadas 120 pinturas nos cenários pelo director artístico Hein Heckroth, que pela primeira vez trabalhava no cinema. Por outro lado, Jack Cardiff, o operador de câmara, usou velocidades diferentes nas filmagens, de modo a realçar os diversos movimentos dos bailarinos

- O escritor Ludovic Kennedy confessou que quando viu pela primeira vez Moira Shearer neste filme soube instantaneamente que ela iria ser a mulher da sua vida. Não se enganou – dois anos depois, em Fevereiro de 1950, o casamento teria lugar em Londres, na capela real do palácio Hampton Court. A união duraria até ao falecimento da actriz, a 31 de Janeiro de 2006, tendo havido 4 filhos. Um retrato conjunto dos dois, da autoria do pintor israelita Avigdor Arikha, faz agora parte da colecção permanente da Scottish National Portrait Gallery.

- O filme foi galardoado com 2 Oscars da Academia, nas categorias de Música e Direcção Artística e Cenários. Teve ainda mais três nomeações: Filme, Argumento e Montagem.

- Em 2000, o British Film Institute classificou “The Red Shoes” em 9º lugar na lista dos melhores 100 filmes ingleses de sempre