Dalila Teles Veras
A contradição da
modernidade: Antonio Machado
Será justo rotular um poeta como
"menor" simplesmente pelo fato de ter-se popularizado? Necessitará
um poeta obrigatoriamente de aparatos conceituais e metodológicos
para ser considerado "maior"? Estabelecer graus hierárquicos nos
domínios da arte tem se mostrado uma questão sempre polêmica, quer
seja à luz da ciência ou da paixão. T. S. Eliot, em 1944, na
conferência "O Que é Poesia Menor", longe de esgotar o assunto,
ilumina alguns pontos nevrálgicos da questão. Diz ele: "há muitos e
grandes caixilhos em poesia que nada têm de mágicos e que não se
abrem sobre a espuma de mares perigosos, mas que, apesar de tudo,
constituem admiráveis janelas". Volto a refletir sobre o assunto,
debruçando-me agora numa dessas janelas: Antonio Machado
(1887-1939).
O popular poeta espanhol, um dos que,
ao lado de García Lorca, melhor cantou as terras de Castilla, é
admirado, editado e reeditado até hoje dentro e fora de seu país. No
Brasil não consegui localizar um só de seus livros no catálogo de
nenhuma das grandes editoras. (Mais uma vez, Eliot alerta: "A poesia
é uma constante advertência a tudo aquilo que só pode ser dito em
uma língua, e que é intraduzível"). Quem, ainda assim, desejar ler
Machado em português deverá recorrer às inúmeras edições de
Portugal, onde sua obra é editada com regularidade.
Machado pertenceu à chamada "geração
98", escritores rebeldes que, a par de suas inquietações estéticas
modernistas, deram ênfase à realidade e à história espanhola. Dela
faziam parte, entre outros, Miguel de Unamuno, Azorín e Valle-Inclán.
Como costuma acontecer com o que se convencionou chamar de "geração"
literária, eram unidos basicamente por idade e circunstância. Cada
um deles acabou buscando seu próprio caminho literário.
O mais jovem de sua geração, Machado
trilhou caminhos plurais, participando de todas as experimentações
do começo do século e, assim como Unamuno, rejeitou os dogmatismos
intelectuais. Foi, sobretudo, um poeta marcado profundamente pelos
problemas sociais de sua época, sem que fizesse disso motivo
principal de seus poemas. Uniu-se, por ideologia e afinidades
literárias, à geração que veio logo a seguir, a de Ortega y Gasset e
García Lorca. Lorca, inclusive, foi, em certa medida, influenciado
por Machado.
Desde seu primeiro livro "Soledades", de 1903, quando foi saudado
como um poeta que aos 27 anos se inseria no melhor da poesia do seu
tempo, até os seus últimos "poemas da guerra", passando por seu
maior sucesso "Campos de Castilla", Machado percorre um caminho
solitário e singular. É nítido, no seu percurso literário, o
processo dessa trajetória, não só no aprimoramento de sua
consciência social "A pátria não é o solo que se pisa, mas o solo
que se lavra", mas, em especial, no da estética e da linguagem, do
qual todo bom poeta não pode fugir.
Do poeta Machado, falou Octavio Paz:
"Ninguém viveu como ele viveu o conflito do poeta moderno,
desterrado da sociedade e, ao final, desterrado de si mesmo, perdido
no labirinto de sua própria consciência. O poeta não encontra a si
mesmo porque já perdeu os outros. Todos perdemos a voz comum, a
objetividade humana e concreta de nossos sentimentos. Nosso poeta
viveu valorosamente esta contradição".
O poema "El Crimen Fue en Granada",
foi escrito por Machado em outubro de 1936, ano em que Federico
García Lorca havia sido assassinado, na noite de 19 para 20 de
agosto e pertence à última fase de sua obra (Poesias de la Guerra).
Pela estrutura dramática do poema,
percebe-se a familiaridade do poeta com o texto para teatro. Em
parceria com seu irmão, o também poeta Manuel, escreveu várias
peças, sempre em versos, que foram encenadas com muito sucesso. Se
considerarmos o tempo da ação que decorre em tão poucos versos, o
autor demonstra muita habilidade ao entrar imediatamente no centro
da ação, definir o caráter da personagem e a situação em que está
envolvida, estabelecer um diálogo que, na verdade, é um monólogo em
"flash-back", com elementos de fábula e, por fim, conclamar o povo
(espectador?) a uma ação que é a de construir um túmulo que
permanentemente lembre o crime. Apesar do desenlace ser anunciado
desde a primeira cena, é precisamente dela que advém todo o
interesse no desenrolar do drama. Poeta excelente, dizia Diderot, é
aquele cujo efeito permanece muito tempo em mim. Não quero sair do
teatro levando palavras, mas impressões, dizia ele em seu "Discurso
sobre a Poesia dramática".
O poeta Machado, pela circunstância
política e histórica, poderia ter feito um panfleto. Por ser poeta
maior, optou pela poesia dramática. Permaneceu em mim. E em você? (DTV)
EL CRIMEN FUE EN GRANADA
A Federico Garcia Lorca
I
EL CRIMEN
Se le vio, caminando entre fusiles,
por una calle larga,
salir al campo frío,
aún con estrellas, de la madrugada.
Mataron a Federico
cuando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: !ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
- sangre en la frente y plomo en las entraña -
...Que fue en Granada el crimen
sabed -!pobre Granada! -, en su Granada...
II
EL POETA Y LA MUERTE
Se le vio caminar solo con Ella,
sin miedo a sua guadaña.
- Ya el sol en torre y torre; los martillos
en yunque-yunque y yunque de las fraguas.
Hablaba Federico
requebrando a la muerte. Ella escuchaba.
"Porque ayer en mi verso, compañera,
sonaba el golpe de tus secas palmas,
y diste el hielo a mi cantar, y el filo
a mi tragedia de tu hoz de plata,
te cantaré la carne que no tienes,
los ojos que te faltan,
tus cabellos que el viento sacudía,
los rojos labios donde te besaban...
Hoy como ayer, gitana, muerte mía,
qué bien contigo a solas,
por estes aires de Granada, !mi Granada!"
III
Se le vio caminar...
Labrad, amigos,
de piedra Y sueño, en la Alhambra,
un túmulo al poeta,
sobre una fuente donde llore el agua,
Y eternamente diga:
el crimen fue en Granada, !en sua Granada!
O CRIME FOI EM GRANADA
A Federico Garcia Lorca
I
O CRIME
Viram-no, caminhando entre fuzis,
por uma longa rua,
sair para o campo frio,
ainda com estrelas, na madrugada.
Mataram Federico
quando a luz surgia.
O pelotão de verdugos
não usou mira-lo na cara.
Todos fecharam os olhos;
rezaram: nem Deus te salva!
Morto, caiu Federico
- Sangue pela fronte e chumbo nas entranhas -.
... Que foi em Granada o crime
saibam - Pobre Granada -, em sua Granada...
II
O POETA E A MORTE
Viram-no andar sozinho com Ela
sem medo de sua foice.
- Já o sol de torre em torre; os martelos
de bigorna em bigorna retiniam nas forjas
Falava Federico
adulando a morte. Ela escutava.
"Porque ontem, no meu verso, companheira,
falava do golpe de tuas secas palmas
e deste o gelo ao meu cantar,
à minha tragédia
o gume de teu cutelo de prata,
cantarei a carne que não tens
os olhos que te faltam,
teus cabelos que o vento sacudia,
os rubros lábios que beijavam...
Hoje, como ontem, cigana morte minha,
permaneço a sós contigo
por estes ares de Granada, minha Granada!"
III
Viram-no caminhar...
Edifiquem, amigos,
de pedra e sonho, no Alhambra,
um túmulo ao poeta,
sobre uma fonte de onde a água chore,
e eternamente diga:
o crime foi em Granada, em sua Granada!
Antonio Machado escreveu este poema
em outubro de 1936 e o mesmo foi publicado pela primeira vez na
revista "Ajuda", em novembro de 1936. Federico Garcia Lorca havia
sido assassinado na noite de 19 para 20 de agosto daquele ano.
(publicado na revista literária A Cigarra no.° 31,
agosto 1997, Santo André, SP)
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