Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Dalila Teles Veras

 

DEPOIMENTO DE Dalila Teles Veras, Na Casa da Palavra (Sto. André – SP) no dia 07.11.2001, dentro do projeto A CIDADE ESCRITA – RAZÕES DA PALAVRA
 

“As palavras aí estão, uma por uma:
porém minha alma sabe mais.

De muito inverossímil se perfuma
o lábio fatigado de ais.

Falai! que estou distante e distraída,
com meu tédio sem voz.

Falai! meu mundo é feito de outra vida.
Talvez nós não sejamos nós.”

 

Este poema, cujo título é INTERPRETAÇÃO, é de Cecília Meireles, que HOJE faz 100 anos. A sua benção poeta.

E já que nomeei Cecília, utilizo-me do seu verso, “Talvez nós não sejamos nós”, como mote para este nosso tão espinhoso papo poético. Definir a significação e o porquê da escrita é tentar desatar os nós de que fala a grande poeta brasileira, os nós dos mistérios da criação, os nós de nós os poetas, os nossos nós, nós mesmos. Isso, é claro, já é motivo para psicanálise e não para a poesia.

Deixemos, assim, as razões, os motivos e seus fenômenos alquímicos guardados nos escaninhos da memória, a memória das coisas, dos seres e dos lugares, armazenagem imprescindível ao poema, e falemos dos procedimentos poéticos conscientes, o suor do ofício.

Apesar de cometer poemas desde menina, devo confessar a consciência do ofício literário aconteceu-me tardiamente, tanto que o meu primeiro livro publicado é de 1982, após umas duas centenas de poemas publicados na chamada imprensa alternativa, ou marginal, das décadas de 60 e 70. A poesia era exercício pueril e esparramado, sem compromisso com a linguagem, mero ensaio de ofício.

Ao perceber que o fervor da juventude havia se transformado em imperativo categórico, vi-me diante do impasse em que se meteu toda a poesia depois dos anos 50: filiar-me a grupos com severas premissas canônicas, patrulhadores da emoção, para quem a poesia deveria ser uma peça meramente intelectual ou buscar uma voz que, sem desprezar a pesquisa estética, sempre como meio e não como fim, encontrasse o equilíbrio entre a emoção que perdura e o formalismo exacerbado.

Sou irremediavelmente o que se pode chamar de uma poeta sem escola (que se entenda aqui escola no sentido de identificação de mão única) nem geração, mesmo porque não acredito que pessoas da minha idade pertençam a qualquer “geração” literária. A segunda metade do século XX não produziu gerações literárias, mas vozes dissonantes que retiraram da tradição, do modernismo e das vanguardas apenas aquilo que mais lhes interessou. As tentativas de rotulação ficaram por conta da crítica, sempre preocupada com enquadramentos, às vezes pouco sensíveis para entender os não alinhamentos.

Completarei, no próximo ano, 20 anos de publicação do meu primeiro livro e surgiu, então, a idéia de publicar uma antologia reunindo a minha produção poética, cobrança que me foi feita pelo meu anjo da guarda literário Maria de Lourdes Ruegger Silva, professora de Literatura Brasileira do Curso de Letras da Fundação Santo André, uma vez que todos os meus livros de poesia encontram-se, de há muito, esgotados.

Ao fazer, no entanto, a releitura dos meus livros, não resisti à tentação de experimentar dizer de outra forma algumas coisas que disse há duas décadas, muito em especial as dos poemas dos meus três primeiros livros (Lições de Tempo, Inventário Precoce e Elemento em Fúria) e em outros poemas publicados esparsamente em revistas, jornais e antologias.

O trabalho resultou numa espécie de antologia pessoal mas, denominá-la “antologia pessoal” talvez não seja exato, uma vez que, ao invés de simplesmente selecionar os poemas “preferidos”, optei por reescrevê-los, não porque fossem “preferidos” mas justamente porque eram “preteridos”. Preteridos, não por seu conteúdo mas, principalmente, por sua forma original (os temas que escolhi para a reescritura ainda me são bastante caros e, todos sabemos, os poetas passam a vida inteira recorrendo aos meus temas eleitos a partir dos poemas inaugurais).

Não se trata de mera substituição daqueles poemas por outros melhores (afinal, sequer tenho certeza de que os fiz melhores), mas simplesmente, como diria Borges, mostrar algumas possibilidades de transformação, já que depois de 20 anos de exercício poético, o meu discurso, em função da própria experiência de vida, é outro e, ainda, experimento outras possibilidades de dicção e linguagem, algumas já convicções. Como é que eu diria hoje aqueles mesmos temas? era o desafio. Foi assim que poemas de 15, 20 versos, resultaram num novo poema, muitas vezes com 4 ou 6 versos e ainda assim, preservando a idéia original. O livro sairá no início do próximo ano e o título é À Janela dos Dias, POESIAquaseTODA (1982-2002).

Citando um desses poemas reescritos, eis-me, portanto, novamente aqui, “ré, a pé, descalça” a caminho da sentença dos leitores.

Devaneio

Um beijo automático
(amorantigo)
a lembrar outro beijo
sabor a chegada
(amorardente)
como só pode mesmo ser
um amor em começo

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

Início desta página

Francisco Brennand