Rubens da Cunha
Bricolages
para Geladeira
é o primeiro livro de Clotilde Zingali. São poemas, mas prefiro não
fronteirizar a diversidade dos textos que o livro carrega. São
palavras tão livres que podem ser lidas como cartas, anotações
esparsas, manual de instrução, bula, delírio, razão e também como
poemas. São textos docemente irônicos, atuais, nunca vazios ou
gratuitos, mas sempre cheios de uma certa incomodação, uma certa
ranhura nas entrelinhas.
Os textos são ambientados dentro de um
espaço doméstico. Percorremos fotograficamente um cotidiano feito de
minúcias: saco grande na lixeira, raviolli, frestas, repolho,
agulha, gavetas, não há objeto que o olhar da poeta não tenha
perscrutado, não tenha trazido para o papel e dado elevações de
alma. Estamos visitando um mundo real e nos entremeios desta visita,
vamos conhecendo uma mulher, que ora é sem nome: “me carregam sobre
alcunhas diversas”, ora é Lenimar Andrade, ora apenas uma narradora
que nos fala de sensações, desapegos, intensidades amorosas. Vida
num contínuo fluxo.
Assim, temos neste
livro dois planos. No primeiro, o ambiente físico que cerca essa
‘personagem’ multifacetada, por isso os poemas se fazem de
fragmentos, estruturados como se fossem recados para si própria, em
que o não dito se acasala com o dito e provoca no leitor uma
identificação imediata com este rol de reminiscências, esta lista de
objetos, de bricolages. Noutro plano, o corpo físico da personagem é
exposto como caminho para conhecermos aquilo que vaga por dentro
dela: as suas vontades de sair, de ser outra “quem é esta moça nua,
essa outra que me espia pelo buraco da fechadura?” reverberam em
momentos de solidão. “Cores, pêlos, manchas e zelos”, “tatuagem com
gosto de vôo”, “Palpita em minhas vértebras uma urgência que se
esparrama”, são exemplos dos gritos da mulher que vaga dentro do
livro.
Poeta de concisão
imperativa “ir à luta, sair na frente, pingar o
i”,
“morrer de sede, de seca”, Clotilde transmite em muitos poemas
aquilo que Clarice Lispector denominava o “é da coisa”, a essência,
o cerne viril dos significados. Temos no Bricolages para Geladeira,
muito mais que enfeites para colar na geladeira e confirmar nossas
verdades. Este livro traça um embate entre o mundo de sonhos,
angustias, breves desejos por se realizar e a rotina concreta do dia
a dia. A força do exílio presente neste espaço é a base para a poeta
vasculhar, não apenas a superfície dos objetos e do corpo, mas
sobretudo os ecos que este adentramento poético causa.
Diante do incômodo
uma estrofe bandagem: “eu sequer ouso / dentro de mim / escrevo”.
Puro disfarce, à medida que vamos nos aprofundando na visita
percebemos que a poeta vai adensando e aumentando seus textos, que
se aproximam da prosa, ganhando um o olhar esmiuçado e emiuçante,
que contorna o vagar da ‘personagem”; “na minha hora me percorre com
demora, em sépia, talvez. te reconheço por debaixo dos cascos. tenho
em mim estilhaços, seduções de cerejas e espumantes, coisas antigas
e ossos frágeis”.
Na parte final do livro, o ambiente
quase se esfumaça. O corpo torna-se o centro do olhar. Os poemas
escarafuncham este corpo: “sentimentos enterrados / debaixo da pele
/ entre a íris e a retina / glândulas linguais/ interfaces do ouvido
/ no coração desritimado”
Agora já somos
invasores de uma intimidade poética, somos voyeurs de sentimentos.
Não se trata de um ataque à privacidade, mas de uma visita às
estranhas dessa poesia, sabiamente nomeada de bricolages para
geladeira.
Rubens da Cunha
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