A poesia está viva, andando
e pulsando por aí. Ela
cintila, se insinua, invade
o olhar e a percepção. Se o
país apodrece, se o mundo se
deteriora, se de repente (ou
não) tudo parece perder-se,
a expressão poética nos
garante um ganho primordial:
é a quintessência da
comunicação entre os seres
e, na palavra de um poeta
como Sérgio Cohn, ela
continua a se destilar,
premente, na relação com o
mundo. Em “O sonhador
insone”, Cohn realiza uma
síntese decisiva.
Em sua escrita de recortes
essenciais, que se revela
como uma arte de ponta-seca
entre mágica e reflexiva,
encontramos a confluência de
raízes várias. Há desde
traços bandeirianos (no modo
de eleger, ou de saudar, as
formas e os motivos),
passando por um contido
clamor de liberdade beat bem
filtrada — “liberdade,
palavra-erotismo/ puro
fetiche” — até as lições de
um concretismo lido
criticamente, sem qualquer
simplificação apressada. No
sentido de que pôde, assim,
contribuir para propiciar em
Cohn o compromisso com a
busca do máximo significado
na máxima concisão.
Quem falou em minimalismo?
Não nos vamos confundir nos
nomes e nos conceitos.
Há, sim, um tanto da
caprichosa vertente
minimalista nos poemas de
Cohn, mas a questão a ser
apreciada é aquilo que o
poeta, acrescido de sua
abertura intertextual (bem
descrita por ele na nota que
lhe serve de posfácio),
elaborou e praticou para
fazer de “O sonhador insone”
uma coletânea original. Nem
reescreve o espanto — e o
encanto — de Bandeira ante o
dom da vida, nem reabilita
algo da explosão americana
de Ferlinghetti, Ginsberg et
al ., nem se inscreve como
um acólito ou repetidor dos
concretistas, mas se mostra
senhor de uma linguagem.
Senhor de sua trama verbal
que interage com a
existência e se designa
“numa perspectiva afetuosa/
de tudo”, tocado e ferido
fundo pelo “amor mínimo/ que
as coisas nos doam”, atento
e suficiente diante do que
afortunadamente nos
ultrapassa, do que “foge/ à
estrada, a trilha/
guaxinins, jaguatiricas”, e
só se pode expressar pela
nossa voz.
Assim como não se extraviou
intelectualmente,
perdendo-se como tantos no
passado literário ou na
filiação a matrizes
estrangeiras, reincorporando
formas esgotadas ou
rebeldias alheias, também
não se desgarrou em sua
procura poética. Sabe que
“não há como celebrar o
raro/ sem o encontro”
(conhecendo-se, neste, o que
o integra e o supera ao
mesmo tempo: revelação,
entrega, às vezes êxtase).
Autenticidade da invenção
sensorial
Daí a autenticidade de sua
invenção sensorial. Seja
numa dupla metonímia como
“(mas se o olhar perco/ é
uma asa de borboleta/ pura
chama congelada/ o sol indo
de encontro/ com a água)”,
com sua plasticidade e suas
sinestesias, ou nas
metáforas concretas das
“Aproximações,
encantamentos”,
particularmente na seção da
Chama, com a alofonia dos
erres no “começa a corroer/
a carne do ar” ou no “calor
azul” das “línguas de vidro/
de Murano”, com a mobilidade
e a agudeza de um Miró, ou
do que Cabral, sobre o
artista, chamou de “cifras
da realidade”.
Nessa realidade transita o
poeta Cohn, colhendo e
reelaborando suas centelhas
expressivas. Reparemos como
não escreve versos. Os que
dizem o contrário sobre
autores como esse, e
insistem na tolice de lhes
apontar aqui os “versos” de
três sílabas, ali de quatro,
cinco ou sete, perdem tempo,
e a essência da criação
poética. Cohn cria em linhas
descontínuas, que se
equilibram pela sua
respiração nesse trabalho,
às vezes interrompido por
parênteses de silêncio,
ícones do “repouso do
guerreiro”, ou de suas
armas. Há, em seu espaço
poético, um tanto de
paganismo helênico, de
fascínio pelos elementos, e
pela estética do furto de
Prometeu (do fogo da
criação) — sendo de se
torcer para que, como tantos
de nós, não tenha o fígado
para sempre bicado por um
abutre: “chama/ você é o
fruto / no galho da
goiabeira/ de quem furta a
sua vida?” (os grifos,
nossos, acentuam a
associação paronomástica do
“fruto” com o “furto”, do
invento substancioso com a
sua conquista).
Mas o poeta não se limita a
essa perspectiva, em que se
apreenderia um toque
neoclássico: tal como se
abre à co-autoria, à
poetização coletiva, se
mostra disponível a toda
sugestão criadora, se enleva
com a ruptura surrealista
(que valoriza em citação de
Breton) sem se afastar das
fontes culturalmente
brasileiras (insere “a pele/
da cobra-grande” em seu mar
de “azul e vertigem”, ou de
“sede de Sísifo”...), e se
envolve numa espécie de
mística da natureza, que se
materializa, mais do que
nunca, nesta imagem viva que
agrega perfume, ar, energia
física e luz: “a carne do
sândalo/ respirando/ tatua o
sol/ no vento”.
MAURO GAMA é poeta e crítico
literário