A postagem deste poema nas redes sociais é um
Convite ao Jornal de Poesia:
Um cronômetro
para piscinas
"Nisto
a Arte, meu caro senhor monge Jorge! Porque só a Arte tem o
legítimo poder de transformar o puro em imundo; o
imundo em sagrado. Onde se lia o Mal, leia-se o Bem!"
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Um instante só de
minha distração, e Alídio, o comerciante, dizendo-se
cliente do Coronel, contou a história do próprio pai, um
matuto muito trabalhador, valente e cheio de mulheres, lá
das brenhas dos sertanejos, perto de Arapiraca.
Contou
que só de mulheres com o nome de Vera, o pai montara casa
para três, novas e bonitas, mas havia outras, com outros
nomes, uma infinidade de Marias, Antônias e Franciscas.
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Antônio
Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré |
Um
dia, ele desconfiou que uma daquelas Veras o traía. Fez
que ia de viagem e foi, mas voltou antes do fim do caminho,
a ponto de chegar no romper da barra. Buzinou e focou a luz
da camionete bem em cima da casa. Só deu tempo ver, bem
ligeira, a janela do oitão lateral abrir-se como se fosse
uma lufada de vento ao contrário, e, no seu rastro, a
pernada do cabra. Um corisco teria sido mais lerdo, fugindo,
seminu, para o matagal, o cabra. Dois tiros
rápidos, do pai, mas não acertou nenhum.
Então,
súbito, na seqüência da pernada, surgiu, na janela, um
rosto na direção do cabra, fugindo. E voltou-se, em rosto,
bem na
direção aos tiros...
«Meu filho — assim me disse meu pai —, era um olhar tão doce e gentil, que, imediato, lancei-lhe
a desistência.
Sim, acho que ela me viu.
Era contra os faróis do carro,
mas era a favor da luz do Sol, que acabara de nascer. Viu,
sim! Ela me viu! A Vera, de remorsos, olhando só para mim!
O problema, meu filho, e por favor repare nos seus irmãos
pequenos, é que o terceiro tiro já havia sido disparado.
Bem no meio da testa — e se benzeu —, lá nela».
O
comerciante prosseguiu, baseado no que lhe dissera o pai:
—
Ela, ali, pelo lado de dentro da casa, ciscando como uma
galinha quando a gente lhe puxa o pescoço. As crianças acordando
e chamando pelo nome dele, pai, a Verinha e o Francisco; e
pelo dela, mãe, o nome. Já estão crescidinhos, sabem
ler e escrever, mas não esquecem. Dizem que não perdoam,
mas o pai faz de tudo pelos pequenos. Eu também faço, são
meus irmãos, só de pai é certo, mas são.
—
?
—
Contei essa história ao Coronel quando fui-lhe pagar
uns honorários de outra questão e lhe levei de agrado um pacote
de castanhas torradas. Ele abriu um uísque e tomou três cálices,
sorvendo-os, na ponta da língua, sem gelo, sem nada, como
quem toma chegada de um vinho raro.
—
?
—
Não, nunca vi ninguém beber daquele jeito! Não era
emborcando o copo de goela abaixo. Era assim, de leve, na
ponta da língua, debicando com muito cuidado, mas
rapidamente tomou três cálices e comeu meio prato de
castanhas torradas na manteiga, com sal. Nunca vi ninguém
beber uísque em cálice. Ele insistiu comigo, mas eu não
estava bem da gastrite.
—
?
—
Agora, essa história de que a finada se virara para meu
pai justamente para levar o tiro bem no meio da testa, lá
nela, e que os olhares se haviam cruzado, isto quem inventou
foi ele, o senhor Coronel.
—
?
—
Sim, ele mesmo, o Coronel! A história que eu havia contado era bem
simples. Meu pai havia errado os tiros no cabra, mas acertou
um na testa de Vera. Mas assim que terminei de contar, aliás,
à medida que eu ia contando, ele botava esses enfeites
de que ela olhara primeiro para o cabra, depois na
direção
de onde vinham os tiros. Também o lance da aurora, das
luzes se cruzando, da camionete e do Sol, ele que inventou.
Confesso que fiquei muito emocionado, sobretudo com isto de
o senhor Coronel dizer que meu pai a perdoara. Acho difícil,
meu pai é um homem brabo, do sertão.
—
?
—
Mas, pensando melhor, talvez o senhor Coronel esteja certo.
Meu pai não pode falar no nome dela que já começa a
tossir. E, com
pouco fica vermelho. Sei não, talvez ele, naquela hora,
fosse perdoando com uma mão e atirando com a outra...
—
?
—
Perdoou, sim, tanto que não mandou matar o cabra, o que é
de lei, lá, dando-lhe tempo para fugir para um seringal do
Acre. Depois, meu pai disse a um parente do cabra que ele podia voltar, como de fato voltou, e ambos rezam, sem se
cumprimentar, é claro, no túmulo da finada, mas quem chega
por último espera que outro termine.
—
?
—
Depois de comer as castanhas, aliás, comendo-as e falando,
o Coronel me garantiu que o homem valente é aquele que anda
desarmado. Pediu meu revólver. Eu entreguei. Ele disse que
daria fim nele... acredito que tenha dado.
—?
—
Então, ele mandou um abraço para o meu pai. Mandou
a senhorita estagiária comprar dois presentes para as
crianças, os filhos da finada, meus irmãos de pai.
—?
—
Sim, ele me deu um presente: um
cronômetro de piscinas que eu nem sabia como funciona, mas
ele ensinou.
—?
—
Ele me disse:
«Alídio, em qualquer aflição, acuda-se deste
cronômetro.
Marque o tempo que quiser e repare no ponteiro correndo em
direção do eterno. Que pode ser morte, que pode ser vida,
que a diferença é nenhuma. Quem dirá o lado vencedor será
sua mão, sua mãe... Assim, ó!» — E botou a mão em pé,
como quem mede a altura de
um porco, virando-a para direita
e para a esquerda, lá e cá, à fortuna. Só então me dei
conta de quanto é frágil o pender da morte, da sorte.
—
?
—
Sim, eu ando com o meu. Na saída passei na loja em frente
ao escritório do Coronel, e comprei um cronômetro de
piscinas igualzinho para meu pai — disse o comerciante, Alídio.
Ah,
meu caro leitor e minha distinta leitora, como se não
pudesse existir história mais confusa do que esta, o
comerciante engasgou-se com a própria fala. A
mãe do Coronel socorreu-lhe um cálice do vinho das
paridas. Ele retemperou-se e chispou na mesma carreira em
que havia chegado.
Acho
que o cabra que saltou a janela da cama de dona Vera — que Deus
a tenha! — ficara menos aflito, ainda que correndo das
balas no garranchal do sertão, do que Alídio, o
comerciante.
O fato inconteste, ali, na frente de todo
mundo, é que a história do pai de Alídio, o comerciante,
fora remendada pelo Coronel. O monge reclamou:
—
Senhor Coronel, esse comerciante contou a vergonhosa história
de um triste assassinato. Com que direito o senhor lhe
enfeitou a versão, inventando esse lance da troca de
olhares? Perdão!? Quem já viu assassino perdoar ninguém?!
Antes
que o Coronel respondesse, alguém falou que fora com esses
ornatos que ele ganhara a questão do pai do comerciante e,
evidente, novos pagamentos, novas castanhas e outros uísques
a debicar no cálice.
Sim,
eu concordo que a história seca seria algo bruto, mas, com
o lance do trágico, da força impossível de atender, mais
o lance do perdão — e algum dinheiro do comerciante, é
claro —, fora assim que o Coronel lhe soltara o pai.
Não!
Não deu para identificar de quem, mas em meio a essas
divagações, uma voz, que até desconfio que tenha sido o
próprio monge, de ventríloquo. Não será surpresa se
tiver sido ele. Ou, quem sabe, tenha sido do Profeta a voz que nos pegou a todos de surpresa:
«Nisto
a Arte, meu caro senhor monge Jorge! Porque só a Arte
tem o legítimo poder de transformar o puro em imundo; o
imundo em sagrado. Onde se lia o Mal, leia-se o Bem!»
E,
numa compulsão terrível, desta vez reconhecido, assim
falou o senhor Capitão:
—
Só a ARTE, meu caro Bibliotecário Djalma! Só a ARTE!
Eu disse que sim, aliás,
nada disse, apenas meneei com a cabeça, e, lá longe, o
vulto do comerciante pelas costas.
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