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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Oliver Sacks / Uma vida escrita até a medula


Oliver Sacks


Oliver Sacks, uma vida escrita até a medula

Prosa do neurologista explode em sua autobiografia, 'Sempre em Movimento – Uma Vida'

Livro faz evocação intensa da sua paixão literária e de seu imperativo vital


Oliver Sacks escreve em seu diário durante visita a Machu Picchu (Peru), em 2006. / KATE EDGAR
Fica até feio dizer isso, vindo de um sujeito que ganha a vida juntando letras. Mas uma boa forma de começar a ler este livro é dando uma olhada nas suas fotos. Oliver Sacks rodeado de livros em Oxford, de estadistas em Jerusalém, de caminhoneiros no Alabama. Sacks com o torso nu erguendo pesos em Londres, com gravata-borboleta olhando pelo microscópio na Califórnia, com bigodinho tocando piano na sua pequena casa de Topanga Canyon. Exibindo sua figura atlética e algo vulgar sobre a imponente moto BMW R60 que o levou por meia América com uma insaciável sede de vida e conhecimento, arregaçando as mangas do jaleco branco para atender aos seus pacientes neurológicos no Bronx nova-iorquino, tirando sarro do grande ator Robin Williams até fazê-lo sair do sério. E, acima de tudo, Sacks escrevendo em todos os lugares e a todas as horas, no trem e ao sair da estação, sobre o teto do carro e no albergue de montanha, à beira-mar e no cume de Machu Picchu – escrevendo sem parar, como se não houvesse amanhã. Toda uma vida.
Oliver Wolf Sacks (Londres, 1933 – Nova York, 2015) é conhecido acima de tudo como neurologista e como divulgador dos mistérios da mente, aos quais dedicou livros devorados por cientistas e leigos, como Tempo de despertar e O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, baseados em casos de pacientes neurológicos tratados por ele, mas transformados de algum modo em histórias, em uma narrativa para o uso de bons leitores. Seu estilo brilhante, profundo e transparente já pode ser considerado um clássico da escrita científica do século XX, parte de uma curtíssima lista de autores que transcenderam a nefasta fronteira entre as letras e as ciências, as quais travam uma disputa que há séculos busca nos transformar a todos em ignorantes funcionais.
Mas as qualidades literárias das quais até agora se podia suspeitar são confirmadas escancaradamente na sua autobiografia, intituladaSempre em movimento – Uma vida, mistura dos inumeráveis diários de viagem que ele guardou desde jovem, cartas selecionadas entre as que enviava a seus pais e amigos e rememorações escritas nos últimos anos, pouco antes da sua morte. Dizer que o livro pode ser lido como romance é, além de clichê, algo que não lhe faz justiça: trata-se, na verdade, de cinco romances. Os cinco que Sacks quis escrever quando tinha menos de 30 anos, para os quais tomou notas e pesquisou intensamente, mas que nunca chegaram a se materializar. Ei-los aqui, na forma inesperada de uma autobiografia.

Fãs da narrativa norte-americana dos anos sessenta desfrutarão como nunca com a leitura de Travel Happy [“viaje feliz”], o diário que Sacks escreveu sobre sua primeira viagem a Nova York, que ele iniciou solitariamente na Califórnia, com sua inseparável moto, mas durante a qual, após uma avaria fatal, ele se viu compartilhando a cabine de um gigantesco trailer com o caminhoneiro Mac e seu auxiliar Howard, um garoto com deficiência mental que acabou por estimular o olho clínico de Sacks, ou Doc, como ficou conhecido pela categoria dos transportadores. Ouviremos ali, pela boca de Mac, a história de John Henry, um negro que trabalhava na construção de ferrovias e que demonstrou a capacidade humana de derrotar o mais avançado engenho mecânico. “Carregava um martelo em cada mão, ia cravando as estacas mais depressa que a máquina, e então caiu e morreu. Sim, senhor! Esta é uma região de aço.”
Também há páginas emocionantes sobre a homossexualidade do autor. “Não parece que você tenha muitas amigas”, disse o pai de Sacks ao então rapaz. “Será que você não gosta das garotas?”, perguntou-lhe. “Não estão nada mal”, respondeu Sacks. “Você gosta mais dos meninos?”, insistiu o pai. “Sim, eu gosto mais, mas não é mais do que uma sensação, nunca fiz nada; não conte para a mamãe, ela seria incapaz de aceitar.” Mas o pai não lhe deu ouvidos, obviamente, porque na manhã seguinte a mãe de Sacks o abordou e lhe disse sem meias palavras: “Você é uma abominação; quem dera não tivesse nascido”. Essas palavras perseguiram Sacks até o fim de seus dias, induzindo-o a um sentimento de culpa pelo que “deveria ter sido uma expressão livre e gozosa da sexualidade”. Forte, não?
Aqui o leitor encontra Sacks na sua plenitude vital e literária. Um testamento e uma pedra preciosa, uma leitura necessária.
Sempre em Movimento – Uma Vida. Oliver Sacks. Tradução de Denise Bottmann. Companhia das Letras. 392 páginas. 35,90 reais.




quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Ansia / O último caso do doutor Oliver Sacks

Oliver Sacks

ANSIA

O último caso do doutor Oliver Sacks

Texto póstumo do neurologista fala das conexões entre o cérebro e o que nos faz humanos


LEONARDO DA VINCI / ROYAL COLLECTION
Em 2006, veio me ver Walter B., homem extrovertido e simpático de 49 anos. Quando era adolescente, depois de machucar a cabeça, sofreu surtos epiléticos que a princípio eram ataques de déjà vu que podiam acontecer várias dezenas de vezes por dia. Às vezes, ouvia música e não podia ouvir ninguém mais. Não tinha ideia do que estava acontecendo com ele e, por medo do ridículo ou de algo pior, manteve em segredo suas estranhas experiências.
Finalmente, consultou um médico que lhe deu um diagnóstico de epilepsia do lobo temporal e prescreveu uma série de medicamentos. Mas seus ataques se tornaram mais frequentes. Depois de dez anos tentando diferentes medicações, Walter consultou outro neurologista, especialista no tratamento da epilepsia refratária, que sugeriu uma abordagem mais radical: a cirurgia para extrair o centro das convulsões em seu lobo temporal direito. A operação ajudou um pouco, mas alguns anos mais tarde, foi necessária uma segunda operação, mais extensa. Esta segunda cirurgia, associada à medicação, controlou melhor os ataques, mas quase imediatamente começou a ter efeitos secundários.
Walter, que costumava comer com moderação, começou a sentir um apetite desenfreado. “Ele começou a ganhar peso”, me disse depois sua esposa. “Levantava-se à noite e comia um pacote de biscoitos, ou um queijo inteiro com um pacote de biscoitos salgados”. “Eu comia tudo o que via”, disse Walter. Ele também se tornou muito irritadiço: “Passava horas protestando contra coisas absurdas em casa. Uma vez, quando voltava de carro do trabalho, um motorista veio para cima de mim em uma confluência de vias, então eu acelerei e não o deixei passar. Fiz um gesto obsceno, comecei a gritar e joguei uma caneca de metal no carro dele. Ele pegou o celular e ligou para a polícia, que me parou e me multou”. A atenção de Walter era total ou inexistente. “Eu me distraía com tanta facilidade”, me disse, “que não podia começar ou terminar coisa alguma”. Mas, ao mesmo tempo costumava ficar “preso” em várias atividades: por exemplo, oito ou nove horas tocando piano.
Ainda mais preocupante foi que ele desenvolveu um apetite sexual insaciável. “Ele queria fazer amor o tempo todo”, disse sua mulher. Deixou de ser um marido amoroso e atencioso, tornando-se rotineiro. Não lembrava o que era ter privacidade. Depois da operação, queria fazer sexo constantemente, pelo menos cinco ou seis vezes por dia. E nada de preliminares. Só queria acabar de uma vez.
Havia apenas alguns breves momentos em que se sentia saciado e, alguns segundos depois do orgasmo, queria começar de novo, de novo e de novo. Quando sua esposa lhe disse que estava cansada, Walter procurou outras saídas. Até então, sempre fora um marido devotado e dedicado, mas agora seu desejo sexual, sua ânsia, o fez esquecer-se da relação monogâmica e heterossexual de que tinha desfrutado com a esposa.

A juíza o condenou a 26 meses de prisão por não ter informado antes os médicos
Para ele era moralmente inconcebível forçar sexualmente alguém e pensou que a pornografia na internet era a solução menos danosa; poderia ajudá-lo a liberar a tensão e lhe dar satisfação, mesmo que apenas por meio de fantasias. Passava horas masturbando-se em frente ao computador, enquanto sua mulher dormia.
Depois de começar a ver pornografia adulta, vários portais o convidaram a comprar e baixar pornografia infantil, e ele assim o fez. Também ficou curioso por outras formas de estimulação sexual; com homens, com animais, com obsessões sexuais. Alarmado e escandalizado por essas novas necessidades, tão distantes de sua natureza sexual anterior, Walter começou a travar uma luta terrível para se controlar. Continuou indo ao trabalho e a ter vida social. Nesses momentos poderia manter seus impulsos quietos, mas à noite, sozinho, cedia aos seus desejos. Invadido por uma profunda vergonha, não contou a ninguém sua situação e manteve uma vida dupla por mais de nove anos.
Então aconteceu algo inevitável: agentes federais apareceram em sua casa para prendê-lo por posse de pornografia infantil. Foi assustador, mas ao mesmo tempo, um alívio, porque já não teria de se esconder ou disfarçar; para ele foi como “sair das sombras”. Seu segredo foi exposto, à vista da esposa e dos filhos, e de seus médicos, que imediatamente prescreveram uma combinação de drogas que reduziram –praticamente eliminaram– seus impulsos sexuais, a ponto de passar de uma libido insaciável a uma libido quase inexistente. Segundo a mulher, ele rapidamente “voltou a ser carinhoso e compreensivo”. Foi, disse ela, como se “tivessem desligado um interruptor que estava com defeito” no qual não havia uma posição intermediária entre “desligado” e “ligado”.
No período compreendido entre a prisão e o julgamento, vi Walter várias vezes e ele me disse que estava com medo, especialmente das reações de amigos, colegas, vizinhos. No entanto, ele nunca pensou que um tribunal pudesse considerar que tivesse cometido um crime, considerando sua condição neurológica.
Walter estava errado. Quinze meses depois de sua prisão, seu caso chegou diante do juiz e foi acusado de baixar pornografia infantil. O promotor insistiu que sua suposta doença neurológica não era relevante, que era uma desculpa. Walter, afirmou, tinha sido sempre um pervertido, uma ameaça para a população, e deveria cumprir a pena máxima, vinte anos de prisão.
O neurologista que tinha sugerido a operação do lóbulo temporal e havia tratado Walter durante quase vinte anos testemunhou como especialista e eu mandei uma carta à juíza explicando os efeitos da intervenção no cérebro. Ambos dissemos que a doença de Walter era rara, mas conhecida, a síndrome de Klüver-Bucy, que se manifesta como um desejo insaciável de comida e sexo, por vezes acompanhado de irritabilidade e distração, tudo por razões puramente fisiológicas.
As reações extremas de Walter eram típicas de danos no sistema de controle central; podem ocorrer, por exemplo, em doentes de Parkinson tratados com levodopa. Sistemas de controle normais têm um termo médio e reagem de forma modulada, mas o de Walter estava sempre em posição de “avençar”; não tinha a sensação de ter consumado, apenas o desejo de cada vez mais. Quando seus médicos perceberam o problema, a medicação controlou esse desejo, mas à custa de uma espécie de castração química.

Walter foi condenado por baixar pornografia infantil. O promotor considerou uma desculpa sua doença neuronal
No julgamento, o neurologista de Walter afirmou que seu paciente já não sentia impulsos sexuais, e, na verdade, nunca havia tocado alguém que não fosse sua esposa. Na minha carta ao tribunal, escrevi:
“O Sr. B. é um homem de grande inteligência, grande sensibilidade e verdadeira delicadeza moral, que em determinado período agiu contra sua natureza sob os estímulos fisiológicos de um impulso irresistível... Ele é totalmente monogâmico... Não há nada em seus antecedentes nem em sua mentalidade atual que faça pensar que é um pedófilo. Não constitui um risco para menores ou para qualquer outra pessoa”.
No final, a juíza concordou que Walter não poderia ser considerado responsável por ter a síndrome de Klüver-Bucy. Mas ele era culpado, disse, de não haver informado mais cedo o problema a seus médicos e de ter mantido um comportamento que, ao sustentar uma indústria criminosa, era prejudicial a outras pessoas. “Seu delito tem vítimas”, enfatizou.
Condenou-o a 26 meses de prisão, seguidos de 25 meses de prisão domiciliar e outros cinco anos sujeito a supervisão. Walter aceitou a sentença com notável equanimidade. Ele conseguiu sobreviver à vida na prisão com relativamente poucas repercussões e empregou bem seu tempo: criou um grupo musical com outros prisioneiros, leu tudo o que pôde e escreveu longas cartas (para mim escrevia com frequência sobre livros de neurociência).
Suas convulsões e sua síndrome de Klüver-Bucy permaneceram sob controle graças aos medicamentos e sua esposa o apoiou durante os anos de prisão e de prisão domiciliar. Agora que ele está em liberdade, eles retomaram grande parte de suas vidas anteriores.
Quando o vi recentemente, era evidente que estava aproveitando a vida, aliviado por não ter mais segredos a esconder. Irradiava uma paz que eu nunca tinha visto nele.
“Estou realmente bem” disse.




quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Morre Oliver Sacks, explorador da mente e a tolerância

Oliver Sacks

Morre Oliver Sacks, 

explorador da mente e a tolerância

Neurologista e escritor britânico morreu neste domingo de câncer aos 82 anos


Oliver Sacks. / JAMES LEYNSE  (CORBIS)
O neurologista Oliver Sacks enfrentou nos últimos meses a tarefa mais difícil com que qualquer pensador poderia lutar, sobretudo alguém que dedicou toda sua obra a tentar entender o funcionamento da mente humana: explicar sua própria morte. Em fevereiro, Sacks anunciou em um artigo que sofria de câncer terminal e, neste domingo, faleceu em Nova York aos 82 anos de um câncer de fígado. Teve tempo de publicar suas memórias, On the Move, e escrever uns poucos textos na imprensa em que, com sua característica mistura de humor e lucidez, explorava as certezas da vida quando já sabia que lhe restava pouco tempo aqui embaixo. Uma frase daquele primeiro texto inesquecível, intitulado Sobre Minha Própria Vida, que publicou no The New York Times em meio a uma comoção global, resume suas reflexões: “Acima de tudo, fui um ser com sentidos, um animal pensante, neste maravilhoso planeta e isso, em si, foi um enorme privilégio e uma aventura”.
Sacks, que nasceu em Londres em 1933, mas passou grande parte de sua vida profissional nos Estados Unidos, deixa um punhado de livros inesquecíveis como O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um ChapéuVendo Vozes: Viagem ao Mundo dos SurdosUm Antropólogo em MarteCom Uma Perna  e Alucinações Musicaise, sobretudo, muitos pacientes cuja vida ficou muito melhor depois de passarem por suas mãos. O falecido Robin Williams, ator cuja mente genial e frágil poderia tê-lo convertido em um de seus personagens, interpretou-o no cinema no filme Tempo de Despertar, de Penny Marshall, que recebeu três indicações para o Oscar em 1990.
Em seus ensaios, Sacks pretende explicar o que nos torna seres humanos, a estranha viagem entre a mente e algo que poderíamos chamar de alma, nós, cada ser individual. Como funciona a memória? Por que e como vemos? O que significa poder ouvir, escutar o que nos rodeia? O que são o amor e o desejo sexual?

 O milagre da identidade positiva

Sua grande contribuição foi aproximar milhões de leitores em todo o mundo daqueles que a sociedade se empenha em tratar como diferentes e que Sacks sempre considerou iguais. Ajudou-nos, com textos extraordinariamente divertidos, a compreender a imensa complexidade da mente humana e nos permitiu vislumbrar a forma como todos aqueles que muitas vezes preferimos ignorar enfrentam o mundo. “Não quero parecer sentimental diante da doença. Não estou dizendo que seja preciso ser cego, autista ou sofrer de síndrome de Tourette, absolutamente, mas em cada caso uma identidade positiva surgiu após algo calamitoso. Às vezes, a doença pode nos ensinar o que a vida tem de valioso e nos permitir vivê-la mais intensamente”, explicou em uma entrevista a este jornal em 1996.
Oliver Sacks nasceu em Londres e viveu na capital britânica os bombardeios nazistas durante a 2ª Guerra Mundial. Sobre essa experiência escreveu um grande artigo, publicado no The New York Review of Books, com o título Fala, Memória, em que explicava os complexos mecanismos da memória e a capacidade dos seres humanos para gerar lembranças inexistentes que ao final são tão sólidas e reais como as autênticas. Sua carreira científica se desenvolveu nos Estados Unidos – mas nunca chegou a ser cidadão americano – e se ganhou fama como médico nos anos 1960 por causa de seus ensaios sobre o mal de Parkinson (precisamente a história que conta em Tempo de Despertar). Seus livros proporcionaram a ele um reconhecimento mundial.
É difícil selecionar algum de seus personagens acima de outros. O autista que se aproxima da linguagem através do desenho – “O artista autista” em O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu – pode servir para resumir sua forma de conceber a medicina e a literatura. O paciente se permite escrever a Sacks: “Ser uma ilha, estar separado, é inevitavelmente uma morte? Pode ser uma morte, mas não inevitavelmente. Porque embora se tenham perdido as conexões horizontais com outros, com a sociedade e a cultura, pode haver conexões verticais, intensificadas e vitais, conexões diretas com a natureza, com a realidade, sem influências”. Seu personagem conseguia essas conexões diretas através de sua capacidade de desenhar. Seu desafio como cientista era dar-lhe uma oportunidade, procurar formas de orientá-lo e conseguir que encontre uma vida plena em sua diferença radical. Esse foi sempre seu objetivo como cientista e como escritor.
Em seu obituário, o The New York Times conta um caso que resume muito bem sua forma de ver o mundo: recebia 10.000 cartas por ano, mas respondia sempre “aos menores de 10 anos, aos maiores de 90 e àqueles que estavam na prisão”. Escreveu seu último artigo no início de agosto, intitulado Minha Tabela Periódica: lamentava ao mesmo tempo tudo o que ia perder na iminência da morte – explicava que já se encontrava muito doente – ; mas também celebrava a densidade de sua existência. E não pensava em se render: “Queria me divertir um pouco fazendo uma viagem à Carolina do Norte para ver o maravilhoso centro de pesquisa sobre lêmures da Universidade Duke. Os lêmures estão próximos à estirpe ancestral de que surgiram todos os primatas, e eu gosto de pensar que um de meus próprios antepassados, há 50 milhões de anos, era uma pequena criatura que vivia nas árvores não tão diferente dos lêmures atuais. Eu adoro sua vitalidade saltitante e sua natureza curiosa”.
Sua obra é uma descomunal lição de solidariedade, que segue a fundo o princípio que Atticus Finch, protagonista do romance O Sol é para Todos, de Harper Lee, explica a seus filhos como grande lição de vida: “Você só conhece realmente uma pessoa depois de calçar seus sapatos e caminhar com eles”. Sacks nos obrigou a caminhar com muitos sapatos – os de um cego, os de um pintor que perdeu a percepção de uma cor, os de um autista, os dos surdos – e o fez de forma extraordinariamente divertida. O fato de que, como contou recentemente, sua mãe o amaldiçoar quando confessou a ela sua homossexualidade, certamente influiu de maneira profunda na tolerância com a diferença que marca todos os seus ensaios. Mudou a forma de vermos os outros e de vermos a nós mesmos, e isso é algo que se pode dizer de muito poucos autores.