Mentirolário – vocabulário da mentira

* Quando um fémur se encontra num braço, estamos na presença de um mentirosso

* A mentira nas horas de lazer recebe o nome de mentirócio

* Aqueles répteis cinzentos e repelentes que se fazem passar por simpáticas lagartixas, são as mentirosgas

* Quando um norueguês afirma que a capital do seu país é Nouatchock, deve-se chamar-lhe mentiroslo

* Um herpes simplex que se faz passar por herpes zooster, recebe o nome de mentirzona

* Uma fila em que as pessoas passam à frente umas das outras, inventando as desculpas mais incríveis, chama-se aldrabicha

* Quando aquele nosso amigo muito mentiroso nos convida a dar um passeio no seu iate novo, estamos perante um aldrabote

* Um cão que mia é um grande aldracão

* Se tem pé de atleta na mão, não passa de um aldramão

* Uma rapariga muito feiinha que vence um concurso de beleza é certamente uma aldramiss

* Um daqueles gangster manhosos que não consegue impor respeito aos seus capangas é, sem dúvida, um aldraboss

  • Pão com Manteiga – abril de 1988

Spinum viva!

Era uma vez um primeiro-ministro que tinha um espinho na garganta. Ele não o sentia, mas ele estava lá. E como era advogado e percebia de latim básico, chamava-lhe spinum.

Desculpava-se, dizendo que o espinho era antigo e nada tinha a ver com a sua governação como primeiro-ministro, mas o que era certo é que a Oposição questionava a transparência do primeiro-ministro.

A qualidade da transparência tem destas coisas: a gente via o espinho, à  transparência e o primeiro-ministro, perante essa evidência, tentou passar o espinho para a mulher e, depois, para os filhos, mas o sacana do espinho não se desprendia da sua garganta. O sacana do spinum viva!

Ter um espinho atravessado na garganta pressiona qualquer primeiro-ministro, por mais honesto que seja. Foi então que o primeiro-ministro desta história decidiu levar o caso ao Parlamento, pedindo uma moção de confiança.

Se os partidos votassem a favor da sua moção de confiança, o primeiro-ministro engolia em seco e deixava o espinho lá enfiado no pescoço, mas se os partidos votassem contra, que novas eleições fossem convocadas – que fosse o povo a decidir se o espinho tinha alguma importância nacional ou não.

E tudo isto por causa de um simples spinum!

Viva?…

Fertilidade

Fertilidade é sempre muita coisa, toneladas, aos montes, à brava, em abundância, para dar e vender, de sobra, em excesso, catadupas.

Fertilidade é um beijo hoje e gémeos nove meses depois.

Fertilidade é abrir, com uma única chave, todas as portas.

Fertilidade é Mozart.

Fertilidade é cuspir na terra e fazer nascer um faval.

As origens da fertilidade perdem-se nos tempos sem idade do nevoeiro da História.

Tudo começou com duas irmãs, provavelmente gregas: Ester e Ferter.

Ester e Ferter deitaram-se com o mesmo homem, Alfredo de Seu Nome.

Alfredo de Seu Nome era o reprodutor por excelência. Setenta por cento dos habitantes de Penopoulos era filho de Alfredo de Seu Nome.

Por isso, Ester e Ferter com ele se deitaram, uma de cada vez, noite sim, noite não, durante 31 dias.

Três meses depois, Alfredo de Seu Nome olhou para o ventre de Ester e apenas viu o umbigo. Olhou então para o ventre de Ferter e viu-o globoso, com a pele esticada, lustrosa, sob tensão.

Os meses passaram e enquanto o ventre de Ester permanecia liso e chato, o de Ferter crescia de uma maneira preocupante.

Nove meses passaram e o corpo de Ester não deitou ao mundo nada que não tivesse deitado antes.

Pelo contrário, Ferter deu à luz sete filhos – mais tarde conhecidos como os sete magníficos: Yul Breyner, Charles Bronson, Steve McQueen, Eli Wallach, Robert Vaughn e mais dois.

Foi assim que, de Ester veio a esterilidade e de Ferter, o filme de John Sturges, com a duração aproximada de 127 minutos, já disponível em vídeo.

Plurales, plurães, plurões, plurãos ou pluralistas

Abundância é plural.

E o plural é muito mal tratado na nossa língua. Esta a conclusão a que chegou o Grupo de Trabalho do Gabinete de Estudos Linguales do Pão com Manteiga.

Com efeito, se o plural de televisão é televisões, o de cão deveria ser cões. Mas se o plural de cão é cães, o de mão deveria ser mães – mas este é o plural de mãe. O verdadeiro plural de mão é mãos, pelo que o de capitão deveria ser capitãos. Ora, se o plural de capitão é capitães, o de limão deveria ser limães. Mas se o plural de limão é limões, o de mão deveria ser mões. Mas se é mãos, o plural de patrão deveria ser patrãos – ou patrães, já que o plural de pão é pães.

Por outro lado, o plural de qualquer é quaisquer, pelo que o plural de halter deveria ser haister.

Não esquecer ainda que, se o plural de barril é barris, o plural de projéctil deveria ser projectis – mas é projécteis. E, neste caso, o plural de funil deveria ser funeis.

O próprio plural de plural é plurais e não plurales, como deveria ser, já que o plural de mal é males, e não mais.

Nem mais!

  • in Pão com Manteiga, março de 1988

“Conta-me tudo”, de Elizabeth Strout (2024)

Elizabeth Strout (Portland, EUA, 1956), criou um universo que lhe permite escrever livro atrás de livro.

Depois de ter ganho o Pulitzer com a obra Olive Kitteridge, criou outra personagem, a escritora Lucy Barton e, neste último livro, faz com estas duas personagens se encontrem.

Olive, uma ex-professora agora com 90 anos, escuta as histórias que Lucy lhe conta, mas, ao mesmo tempo, vamos conhecendo muitas outras histórias relacionadas com os amigos e os vizinhos.

Resumindo: é a vidinha em Crosby, pequena terra situada no Maine, onde life goes on.

O segredo destes livros é simples: falar do dia a dia de pessoas simples, com as suas angústias, as suas desgraças e as suas coisas boas.

No entanto, penso que depois de todos estes livros, Elizabeth Strout esgotou a mina.

Grandes segredos bíblicos

* Quando Jesus disse que era mais fácil a um camelo passar pelo buraco da agulha do que a um rico entrar no reino dos céus, não contou com uma coisa muito importante: alguns ricos são mesmo uns grandes camelos!

* Os mistérios de deus são mesmo insondáveis. Se há um anjo da Guarda, por que razão não há um anjo da Covilhã? Fica ali a dois passos!

* Por vontade expressa de Jeová, o Egipto é mais rico que a Checoslováquia. Sete pragas a uma

* De Sodoma, ainda nos chegou a sodomia. Agora, de Gomorra, nada… A gomorria deve ser cá uma indecência!

* Está provado: o dilúvio apanhou os meteorologistas desprevenidos

* Ao andar sobre as águas, Jesus inventou o surf

* Afinal, parece que 30 dinheiros velaram a pena. Não há dúvida que Judas é o mais famoso dos apóstolos

* Original foi o pecado de Adão e Eva. Todos os outros não passam de cópias

* Caim matou Abel porque não havia mais ninguém à mãe e matar os pais não era muito bem visto, mesmo naquele tempo

* A profissão do pai acaba sempre por influenciar o filho. S. José era carpinteira e trabalhava com madeira e pregos. O seu filho foi pregador

* Se deus tivesse um pouco mais de calma e gastasse, pelo menos, mais vinte dias a fazer o mundo, talvez isto fosse mais bem feitinho

* Como a sua mulher fosse estéril, Abraão dormiu com a serva – que assim se tornou a precursora das barrigas de aluguer

  • in Pão com Manteiga – março 1988

“Kairos”, de Jenny Erpenbeck (2021)

Kairos era o deus grego do tempo oportuno e foi com um livro com este título que Jenny Erpenbeck, nascida em Berlim Oriental em 1967, ganhou o Booker Prize Internacional de 2024.

A acção do livro começa em julho de 1986, quando Hans, um intelectual com mais de 50 anos, casado e com um filho, se encontra, num dia de chuva, com Katherina, uma estudante de 19 anos. Nasce então uma paixão que, com os anos, se transforma numa relação sado-masoquista. Depois de uma grande fascínio mútuo – ele, pela juventude dela, e ela, pela maturidade e experiência dele –  a coisa descamba para uma relação de poder, que ele exerce sobre ela, depois de Katherina ter tido uma experiência com outro jovem.

No fundo, a relação entre Hans e Katherina é uma metáfora para o declínio de uma nação, a RDA, e o despontar de uma Alemanha unida.

A certa altura, Katherina consegue autorização para visitar a avó, que vive em Berlim Ocidental e fica espantada com o que vê no metropolitano:

Uma imagem com texto, Tipo de letra, preto e branco

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.“Junto às escadas que descem para o metropolitano, está sentado no chão um velho de barba por fazer, a dois metros de distância, uma rapariga, não muito mais velha que Katherina, mas que magra está, tem ar de doente, ao pé dela estão sentados dois homens jovens mal vestidos. Estão todos sentados no chão nu. O velho pôs à sua frente um letreiro onde escreveu em letras tortas: TENHO FOME. Um dos jovens dormita, o outro espera juntamente com a rapariga diante de um prato com alguns trocos. Claro que Katherina sabe que, no Ocidente, há mendigos, mas é uma coisa diferente ver isso com os próprios olhos”.

Na RDA não havia mendigos, pelos vestidos, mas havia outras necessidades e, quando Katherina vai a Colónia, visitar a avó, não perde a oportunidade para comprar vestidos que não existem no seu país.

A certa altura, Hans e Katherina vão visitar Moscovo e espantam-se com a monumentalidade do metropolitano da cidade:

“Já andaram agora quatro vezes de metro, e cada estação tem um aspecto diferente (…)

Ao entrar e sair há empurrões e cotoveladas, mas lá dentro, nas carruagens, no maior dos apertos, há sempre uma série de pessoas de livro na mão numa perfeita calma. Gente simples, operários, empregados, a ler. E livros bons, não uma porcaria qualquer, diz Hans. Em nenhum outro país, diz ele, qualquer vendedor e qualquer operário das obras é capaz de dizer poemas de cor”.

O elogio do intelectual, ignorando tudo o resto, nomeadamente, a falta de liberdade que, segundo ele, só conduzirá ao capitalismo.

As páginas mais interessantes do livro, na minha opinião, acontecem depois da queda do muro de Berlim. Nessa altura, a relação entre Hans e Katherina já se degradou – aliás, nunca é feita crítica nenhuma, ao facto de Hans ser casado e ignorar a sua mulher, Ingrid e o seu filho adolescente. São coisas que acontecem…

“Quando, em contrapartida, Katharina percorre a parte ocidental, sente-se como uma cópia de má qualidade das pessoas que têm ali o seu quotidiano, sente-se como uma embusteira, em risco permanente de ser desmascarada. Com os seus olhos, que, na outra metade da cidade, são os olhos de uma estranha, vê que, nas lojas do Ocidente, há muito tempo todas as necessidades imagináveis foram respondidas por um produto, a liberdade de consumo parece-lhe uma parede de borracha que separa as pessoas dos anseios que estão além das suas necessidades pessoais.”

Em conclusão: trata-se de um livro curioso, mas não é um dos meus preferidos.

O pum que Dona Genoveva deu, não foi ela, fui eu!

O primeiro-ministro Luis Montenegro faz-me lembrar aquela anedota do Bocage.

Num baile, uma Dona Genoveva deu um pum e pediu ao Bocage que assumisse o ónus do fedor que se instalou no salão. Foi então que o poeta anunciou, com voz grave que o pum que a Dona Genoveva  deu, não foi ela, fui eu.

Passa-se o mesmo com o Montenegro.

A empresa que ele fundou, não é dele, é da mulher.

Ou então, a empresa que ele fundou, não é dele, nem da mulher, mas dos filhos.

E os clientes que Luis Montenegro arregimentou, não são dele, mas do Hugo Montenegro, seu filho.

E quando a Solverde telefona a Montenegro e pede que lhe actualize os cookies e a política de proteção de dados, o primeiro-ministro, escandalizado, responde: pergunte ao meu filho, que eu não tenho nada a ver com essa empresa e até tenho raiva a quem tem!

Ai, Montenegro! A tua transparência é cada vez mais opaca!

“O Lago da Criação”, de Rachel Kushner (2024)

Rachel Kushner (Oregon, EUA, 1968) é já uma romancista norte-americana consagrada.

Dela já li Telex de Cuba (2008), Os Lança-Chamas (2013) e O Quarto de Marte (2018).

Sáo todos romances actuais, com implicações políticas e este O Lago da Criação não foge à regra.

Foi finalista do International Booker Prize e trata-se de um romance de espionagem à moda antiga, com a característica específca de ser narrado por uma mulher.

Sadie Smith é uma espia contratada para se infiltrar num grupo de activistas franceses, prontos a pôr em causa o status quo.

Sadie é implacável, e tem um humor muito especial, não se importando que o seu disfarce a obrigue a algumas cenas menos, digamos, formais. Faz-se passar por namorada de um grande amigo do líder do grupo activista, com tudo o que isso a obrigada a fazer, nomeadamente sob o ponto de vista sexual:

“Baixou-me os calções e pouco depois senti-lhe o hálito quente entre as minhas pernas. Sabia o que esperar. A língua na minha vulva era um prelúdio, um serviço que era sobretudo um pedido. (…)

Não sentia a menor atracção por Lucien, mas nessa tarde, naquele quarto de hotel, fechei os olhos, concentrei-me e, fingindo que me masturbava com um aparelho, ainda que o aparelho fosse o corpo de outra pessoa, consegui vir-me, precipitando assim o orgasmo dele, como cavalheiro que era.”

Sadie é americana e aceita trabalhos na Europa, nunca revelando quem a contrata. Desta vez está em França.

“…ou trufas secas, mostardas e frascos de carne gelatinosa semelhante a comida de gato, que os franceses apelidam de «terrine» e comem como se não fosse comida de gato”.

A crítica aos franceses está presente ao longo do livro:

“«Mas vai e diverte-te», dissera a Vito. «Os meus familiares teriam feito tudo para pertencer a um clube como esse. Em vez disso, esfregavam chãos e eram confundidos com portugueses.»”

A história é muito boa e poderá dar uma excelente mini-série de televisão, se alguém pegar nela.

Os activistas que Sadie infiltra, querem impedir as autoridades francesas de constituírem as chamadas mega-bacias hidrográficas que vão alimentar a agricultura intensiva. Têm, como mentores, alguns dos antigos activistas do Maio de 68 e toda a narrativa está cheia de ironia, como se este fosse um romance policial negro.

“Acho que confundiu água com identidade. Como aquelas pessoas que vão para o ioga e se convencem de que lhes bastará respirar para resolverem todos os problemas que têm.”

São 400 páginas de puro divertimento.