Quando ela passa por mim às cinco para as duas, suspende-se por instantes a existência banal dos dias, como se alguém desligasse o interruptor do real, eu a salvo durante uns segundos, desprendido das paredes do escritório, Cristo ressuscitado pelo perfume dela — parece francês, será?, um cheiro a flores tão parecido com o que me chegava quando era miúdo em casa dos meus avós em São Pedro do Sul, eu e os meus primos a irmos à chicha nos terrenos dos outros apesar dos avisos, sobretudo do meu avô, que qualquer vizinho menos tolerante podia recambiar-nos a chumbo, ainda nós sem os dentes definitivos para trincar a fruta conquistada pelo crime miúdo.
A Daniela — é assim que se chama a rapariga que trabalha no piso de cima, recursos humanos — tenho a certeza de que podia ser modelo, capa de revista, e não entendo por que gasta os dias e a beleza na empresa mais aborrecida do mundo, onde até o mais alegre mirra numa semana, a virar excels como febras numa grelha sem convívio, prazer ou calor.
Trabalha cá há muito tempo, precipito-me a perguntar, o barulho da máquina a regurgitar a água suja de café para o copo de papel. Desculpe? — diz ela, virando as costas à máquina. Se trabalha cá há muito tempo — repito, sabendo que a pergunta me condena: ou porque não dei por ela antes, quando já há meses a vejo vir buscar a bica antes do turno da tarde, ou porque sou o idiota que mete conversa da forma mais vulgar possível.
Recebo, em troca, apenas um sorriso forçado. Não responde, pega no copo de papel a fumegar arábia sabor intenso e mete-se no elevador. Claro que percebi que a oportunidade se foi, uma rapariga daquelas não olha duas vezes para um tipo como eu, condenado aos números, telefonemas, e-mails maçadores, e cuja maior ousadia dos últimos tempos foi sair de ténis quando as nuvens carregadas de cinzento baliam em uníssono — chuva da grossa a caminho. E ela deixou de vir ao nosso piso beber café, devo ter feito qualquer coisa esquisita sem perceber, às vezes não me reconheço nas fotografias, quem é aquele com cara de parvo, ainda mais parvo do que quando me olho ao espelho.
Mas hoje, de repente, voltou a suspender-se a existência banal dos dias: ligaram-me de São Pedro do Sul, o único amigo vivo do meu avô, disse-me que agora já não há ninguém para me proibir de ir à chicha.