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sábado, 4 de março de 2017

OS CONSTRUTORES DE LENDAS

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Pintura de Sergei Aparin
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Não sabiam bem por que o faziam, apenas sentiam que tinham que o fazer. Eram herdeiros de mil lutas, de iguais persistências, em prol de algo que vinha do mais profundo de si. Às tantas, perante tantas pedras no caminho, duvidavam, mas acabavam por prosseguir, deixando, em cada sítio, esboços de coisas diferentes, mapas de inquietudes, incompreensíveis para quem se habituara à segurança de cada coisa no seu lugar. E prosseguiam, prosseguiam sempre, indiferentes aos olhares, aos gestos. Sentiam, há muito, a bússola que os guiava, que os impelia, a estrela que, nos seus sonhos, lhes soprava a palavra liberdade.
Quando chegaram àquele vale, longe da agitação e da cobiça, sentiram que podiam ficar. Não havia colunas, nem torres, nem palácios, apenas algumas ruínas. Era um local simples, tranquilo, desprezado pelos outros, fora do corrupio habitual em que todos se querem ver, em que todos se sentem vivos porque os outros também lá estão. Talvez, ali, conseguissem momentos de pausa, mesmo que curtos, em que pudessem respirar, profundamente, tudo o que os norteava.
Jonas, que liderava o grupo, sabia que não os deixariam ficar ali muito tempo, mas não partilhou, com os outros, os seus receios. Era apenas uma pausa, mais uma, apesar de procederem como se o melhor fosse possível. Talvez fosse desta, pensavam eles. Mas Jonas, lá no fundo, sabia que estavam demasiado habituados a olhar para as estrelas, a tê-las por companhia.
Repararam o essencial das paredes, taparam fendas, deram sentido aos telhados. Escolheram os melhores locais para cultivar, semearam, limparam o terreno circundante. Nos tempos de repouso, em que todos se olhavam, havia sempre alguém que trauteava canções antigas, quem perscrutasse o futuro, quem dançasse, quem contasse histórias...
Começavam a habituar-se, coisa rara, mas um dia chegou um jipe com homens de uniforme. Receberam-nos com o melhor que tinham, tentaram conversar, mas os rostos dos visitantes, fechados, nunca destoaram da farda. Fizeram perguntas, pediram documentos, escrevinharam num livro. À despedida, impassíveis, deixaram a sentença: tinham que partir.
No dia seguinte, bem cedo, despediram-se do vale e empreenderam nova marcha. Um ou outro do grupo ainda olhou para trás, mas por pouco tempo. A herança era pesada, mas teimavam em procurar, sem saber bem onde, um local onde a palavra liberdade fizesse todo o sentido. E, embora em tom de lamento, cantavam, dentro de si nunca deixavam de cantar.
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sábado, 8 de outubro de 2016

O RUIR DO CESTO DA GÁVEA

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Sergei Aparin, Arm-char for the poet
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No início havia um poço. Fundo, muito fundo, por onde começaram a despontar, por acção da luz, muitos embriões duma coisa nova. Eram energia em estado bruto, eram matéria por eclodir. Debatiam-se por espaço, no instinto da sobrevivência, em constante embate, sem toque a rebate, e só os mais fortes chegavam ao cimo, supremo apelo, sem contraditório, de algo por descobrir. 
Os que chegaram, e apesar do espaço abundante, continuaram a batalhar. Acordar, no dia seguinte, implicava sempre tolher os passos a alguém.
As células continuaram a multiplicar-se. E, no esplendor da luz, alguns aprenderam a partilhar. Perceberam que, dessa forma, teriam mais a ganhar. Mas havia sempre um, mais célere, que teimava em se evidenciar. Estava-lhes no sangue. 
Na forma, com o passar dos tempos, tudo se pareceu aperfeiçoar, mas no conteúdo, ah, no conteúdo, o embrião teimava em não se metamorfosear. Para um qualquer visitante, a vida, neste mundo, era uma entidade insinuante, plena de cores e mistérios. Em breve, previam eles, seria igualdade de enaltecer, nada a poderia deter. Assim o transpareciam as luzes, cada vez mais intensas, assim o asseguravam as mensagens, cada vez mais sofisticadas. E comungadas.
O passar dos anos, contudo, trouxe novos esboços. Por entre o toque do despertar, cada vez mais cedo, e o regresso para o descanso, cada vez mais tarde, começaram a acontecer, por mais discretas, algumas falhas de luz. O sistema, ainda que atento, não impedia que, aqui e ali, surgissem perguntas, pequenas contestações, que com o tempo ganharam consistência. Eram uma minoria, lá isso eram, mas nunca se sabe o efeito dum possível contágio. E as medidas, em prol da segurança, não tardaram.
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Os aviões sobrevoam os ares, vemos passar as estrelas cadentes, o nosso quintal continua repleto de pequenas comodidades. Contudo, mesmo ao nosso lado, prestes a substituir a realidade virtual, o exército de deserdados, em sentido crescente, é cada vez mais real.
Pensamos que sabemos mais, mas estamos cada vez mais sós. Inquietante é a sensação de que, para lá da névoa, seres sem rosto riem, hienideamente, de nós.
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sábado, 16 de julho de 2016

POSTAL MERIDIONAL

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Sergei Aparin, Via del Pellegrino
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Galgadas as últimas curvas, a urbe desenha-se, inesperadamente, em cores delicadas, apelativas, numa pequena baía pintada num azul mediterrânico.
Durante o dia não se vê vivalma, mas ao entardecer, prenúncio de todas as coisas, o pátio das casas, antecâmara do palco de trocas e baldrocas, começa a ganhar vida. 
Nas ruas, cenário de aprendizagens geométricas, o sol faz vénia à sombra,  dando início ao desfile, enfeitado de subtilezas, em que se enaltece, mais que tudo, o gesto e o olhar, jogo de múltiplas promessas, quase todas vãs. Mas doces. Os aromas, moldados em partidas e chegadas, tendem em fixar-se em salsa e tomilho, impregnados, aqui e ali, de alecrim, mas é impossível ignorar, vinda dos lados do porto, a insinuação da canela. Os peregrinos do destino, embriagados pela envolvência do cenário, esquecem, por momentos, a delegação nos outros das suas atribuições.
Num qualquer pátio, em contra-mão, dedilhando uma guitarra, alguém teima em dissecar o caminho dos outros. Talvez, quem sabe, para reinventar-se a si próprio.
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sábado, 21 de maio de 2016

FOGACHO EM TEMPO IMPERFEITO

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Sergei Aparin, Last Taxi
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No mergulho em secreta angústia
de tanto tentar perceber as coisas,
há algo que arde, encandeia,
mesclando de alegria, quantas vezes tristeza, 
este renascer constante, de sonhos vacilante,
da vida que, por vezes, se incendeia.
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domingo, 10 de abril de 2016

A HARMÓNICA

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Sergei Aparin, In memory of my grandfather
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Caminhavam. Não sabiam bem para onde, mas caminhavam. O tempo não se media por instrumentos, era o estômago que ditava leis. O estômago e, acima de tudo, os filhos, mola impulsionadora de todas as intenções, de todos os passos. 
De vez em quando, numa pequena pausa, a harmónica saía do bolso, entoando lamentos e anseios. Alheavam-se, por momentos, do mundo, num forjar de forças que não requeria explicação. Era assim, simplesmente, imitando o deambular do sol e da lua.
Quando encontravam alguém, os sentidos ficavam alerta. Andarilhos de muitas paisagens, conhecedores das grandezas e misérias do homem, procuravam, no interlocutor, sinais de abordagem: se era sensível aos outros, se era mesquinho, se olhava de frente. E agiam conforme as circunstâncias.
No regresso, passada a curiosidade das crias, a ordem instalava-se. Cada grão tinha um preço, cada gesto uma intenção. E comiam, gratos. Só quando a harmónica, em acção de graças, saía do bolso, é que os sorrisos se soltavam.
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sábado, 5 de março de 2016

PERTINÊNCIAS, APARÊNCIAS, URGÊNCIAS E DÉBEIS INDULGÊNCIAS

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Sergei Aparin, Between time II
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Os navios, quase clandestinos, iam e vinham, dando lastro, na sua movimentação, a narrativas que respiravam para lá das telas das santas capelas. Pouco era visível, nada era garantido, mas continham, na sua essência, o suficiente para atear o rastilho da esperança.
Atulhados de ventres ao sol, vindos não se sabe de onde, os cais eram insuficientes para tantas vontades. Queriam ousar, queriam arriscar, deixar para trás a fome, a submissão, as memórias de pedras arrasadas.
Os capitães, antes de conceder o visto, submetiam-nos ao teste do castelo de cartas. Para onde iam, em busca do novo, não queriam mercadoria, queriam substância. E, segundo o boletim oficial, anunciado do alto das sete colinas, só quem preservasse, dentro de si, algum assomo de dignidade, conseguia o almejado embarque. Assim houvesse pêndulos para a medir.
Os barcos, na partida, soletravam sempre a palavra mar: do que iriam enfrentar, vestido de vestes de assombro, da gente que deixavam para trás, com as vestes dos condenados. Cada um, a seu jeito, com uma história por construir.
Segundo os novos deuses, embora o escondessem a todo o transe, o futuro não era para todos.
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sábado, 16 de janeiro de 2016

SAUDADE, O DESTEMPO DO TEMPO

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Sergei Aparin, Three Bridges II
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A aurora era rodapé à mercê das circunstâncias. Uns partiam, prenhes de tudo, outros chegavam, com novas vestes, novos olhares, alheios ao esboço inicial.
Dos que chegavam, com passos mais vagarosos, uns ficavam, procurando conciliar velhas com novas memórias, outros renovavam o bilhete, tentando derrubar o muro da eterna insatisfação.
Entre o ir, com acenos, e o ficar, com murmúrios, desenhavam-se novas construções, pintadas com as cores da alegria, ou da tragédia, dos que chegavam, filtradas na vontade dos que ficavam: umas vezes vingavam os velhos, apoiados na experiência de mil-sóis, outras rejubilavam os novos, alimentados em vontades mil. 
Entre o ir e o ficar, a partida tornou-se uma constante, mas a chegada não tanto. Por entre o lamento do destempo, o poeta, com tempo, avivou a palavra saudade.
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