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domingo, 16 de julho de 2023

VÍNCULO

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O pai, vinculado a uma vida de coerência, apesar dos custos, mais que muitos, avisou-o:
- Podes correr por toda a terra, perceber o respirar de cada habitante, mas, na hora certa, cada ser que te rodeia, por mais insignificante, vai cobrar da tua decisão.
Por que raio se lembrava disso, quando o contrato que tanto almejara se prostrava, sorridente, a seus pés? À boleia disso mesmo, encavalitado num contrato de encher o olho, vislumbrou e fruiu geografias distantes, tentando perceber, embalado na herança paterna, o respirar local. Curiosamente, ou talvez não, ao mergulhar nas novas realidades, sentia, a pouco e pouco, que os problemas de uns eram os problemas dos outros, apesar da distância, não em quilómetros, mas em euros ou em dólares. Todos queriam, no fundo, ser felizes, apesar da diferença, essa sim, quase inultrapassável no espectro cultural.
Quando, numa viagem de circunstância, teve oportunidade de trilhar os Andes, temperada com Titicaca quanto baste, lembrou-se do pai, obrigatoriamente, pois era essa a sua viagem de sonho. E, comovido, não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. A partir dali sabia, por mais que invocasse as memórias, que as discrepâncias deste mundo estariam a seu cargo.
Engendrou, com base no engenho diplomado, soluções do agrado de quem decidia. Mas, por entre comemorações, de copo na mão, não conseguia evitar pousar o olhar nos mais simples, que continuavam a bastar-se com dois ou três animais, uma terra saturada e um artesanato ancestral, sonhando, talvez, com a grandiosidade das asas dum qualquer condor duma ordem desaparecida e que, de quando em vez, sobrevoava as escarpas da quase inacessível montanha. E, nessas alturas, sentia que algo lhe escapava, a ele, europeu de gema, apesar de, através da herança paterna, estar desperto para novas equações. Em suma, não se agradava a si próprio.
Por entre caminhos obrigatórios e outros nem tanto, à sorrelfa, foi galgando veredas fora da órbita, procurando comungar dos valores locais. E, o que apreendeu, foi determinante na forma de encarar o mundo. Atrasados, estes indígenas? Que disparate, sentia ele, tínhamos era ainda um longo caminho a percorrer numa mesa vazia, sem pretensões, em que cada um falasse, com humildade, daquilo que mais o inquietava. Caminhar, acima de tudo, de mãos dadas, sentindo que os problemas de uns, apesar da diferença cultural, eram os problemas dos outros.
O caminho não era fácil, pois sabia do riso de escárnio dos mais poderosos, sustentado em ideologias de privilégio, mas estava mais que preparado para ir à luta. Já que mais não fosse, e para além da proximidade, em eterna promessa de sublevação, com os oriundos da terra, na criação das condições para a manifestação do riso natural dos filhos, seus e dos outros, que esperava virem a dar novo rumo a este recanto, aparentemente malfadado, mas com condições únicas para, no final do dia, aconchegar uma visão de dever cumprido. Havia, pois, que deixar-lhes um legado, adornados com cantares de sentido profundo, por mais que doesse.
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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A AVÓ TITA

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AC
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Viera da grande cidade, sem dar cavaco a ninguém, ocupar a casa dos pais, gente de posses herdadas  noutras eras. Os filhos já nasceram na grande cidade, mas ela por ali dera os primeiros passos e, apesar de cedo dali sair, ficaram, para sempre, gravados na sua alma, os recantos, os sons e os aromas daquela xistosa aldeia, no sopé da serra, com uns laivos de granito, banhada por uma ribeira que, nos seus verdíssimos anos, lhe parecia um enorme rio.
Indiferente à modorra do lugar, ela passava, desconcertante, umas vezes a pé, outras de bicicleta, desafiando tabus e conveniências.  O ramerrame não era com ela, isso era garantido, indiferente ao apontar do dedo de vetustas tradições. E, quanto mais a apontavam, mais ela prosseguia. E sorria. Em modo tranquilo, diga-se, tal como a grande tília que, no fundo da propriedade, adornava o morro que circundava o espaço sobranceiro à casa, aparentemente satisfeita com o toque paisagístico que dava ao tom geral da construção. Agitava os ramos, na ventania, mas não passavam de ligeiras cócegas que sorriam, docemente, para quem sabia ver e ouvir, tal era a sua robustez e a forma com que se agarrava à terra, apesar de algumas raízes à mostra, que atraíam, sobretudo, ingénuos fotógrafos, para lá duma diversificada classe de passarada. E, contra tudo e contra todos, ela lá permanecia.
À noite, depois do jantar, quem passava perto ouvia, vindas da casa, algumas notas de piano, as suficientes para adensar a quase lenda daquela personagem. E dizia-se isto, dizia-se aquilo. Mas, lá no íntimo, começavam a admirá-la.
Um dia, sem qualquer pré-aviso, a casa inundou-se de vozes alegres, descomprometidas, que davam nova vida ao lugar. Os netos, em férias escolares, finalmente vinham visitar o velho rincão da avó Tita, que tantas vezes, de soslaio, ela mencionara antes de lhes ler qualquer história. Um mero aperitivo, mas tão sentido pela narradora que, sem se darem conta, lhes ficara tatuado na alma.
Os dias passavam, alegres, ou não fosse verão. De manhã, com toda a gente já bem desperta,  ensaiavam-se umas escapadelas até aos terrenos da família, que o ti João tratava com desvelo. A avó Tita, sempre de olhos brilhantes, aproveitava o momento para "puxar" pelo Ti João acerca daquela árvore, daquela rocha ou daquele pássaro, e o velho não se fazia rogado: discorria, compenetrado, acerca de tudo o que o rodeava, transformando o momento numa envolvente aula ao ar livre, com calorosa participação da pequenada, ávida de descodificar tudo aquilo que a rodeava.
Embalados pelo ar campestre, não lhes faltava apetite ao almoço. E, por entre risadas, depressa os pratos ficavam vazios, perante a satisfação da matriarca.
Depois do almoço, após cada um lavar o seu prato, toda a gente tinha direito a uma pequena pausa para o que lhe aprouvesse. Depois, qual maré iluminada pelos olhos da avó, sempre omnipresente, promoviam-se sessões de leitura, com alguma solenidade, e animados ensaios de uma peça de teatro, onde cada um descobria pormenores dos outros que, até aí, desconhecia.
A meio da tarde, com o sol já mais tolerante, a incursão à ribeira, mais por exigência deles, era obrigatória. E nadavam, riam, pregavam partidas uns aos outros... Imersos na sua espontânea alegria, nem se apercebiam que o seu entusiasmo provocava sorrisos de contentamento nos velhos habitantes da aldeia, alheios que estavam ao canto ingénuo do desabrochar da vida.
Já recolhidos, e após plena satisfação de apetites, a avó Tita reunia a "tropa" na varanda e, quase num murmúrio, reivindicava silêncio. Chegara a hora de, num ancestral ritual, o astro se despedir, por entre os montes, com um eterno piscar de olho, todo melado, como que prometendo, aos crédulos observadores, que o amanhã seria ainda melhor. E eles, imbuídos daquele mágico esplendor, ainda que efémero, acreditavam.
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domingo, 8 de janeiro de 2023

O AMOLADOR

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Num tempo em que o normal era medido, por precaução, em ressonâncias de múltiplos espelhos, fossem eles o que fossem, calhou um dia em que, nas calibragens de espera do faz de conta que é a vida, as têmporas dum santo parecessem azuis. E as pessoas, desidratadas de interrogações, socorrem-se do mais básico que a sobrevivência lhes proporciona: ai Jesus, que lá vem isto, ai meu Deus, que lá vem aquilo.
Estava-se nisto, num compasso de nem enferrujar nem desenferrujar, quando, um dia, na aldeia avessa a mudanças, apareceu por ali um velho amolador sorridente, muito sorridente. E, para lá do entoar da tradicional gaita, desembrulhava ditos de fazer sorrir, ancorados em vislumbres de visões para lá do horizonte.
Os velhos olhavam, desconfiados, mas as crianças, eternamente viradas para o mundo, seguiam-no com avidez, não fossem perder algo para lá do ramerrame. E o amolador, sentindo que tinha público, embora não pagante, começava a contar histórias de antanho, todas com um denominador comum: apesar das intempéries, coisas de deuses caprichosos, as personagens acreditavam que tudo poderia ser vencido pelo engenho e pela arte, pela vontade e perseverança. Festa, a haver, só no final dum bom desiderato.
Tal como surgiu, e após um ou outro serviço com uma moeda a tilintar, assim o velho sumiu, com um último trinado a refugiar-se nas pedras das casas. E, vá lá saber-se como, sabia, qual dever cumprido, que as crianças da aldeia jamais o esqueceriam.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O FEITICEIRO E O MENINO

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AC
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Havia uma árvore, um horizonte e um feiticeiro.
Como a ciência começava a imperar, o feiticeiro tomou a resolução da sua vida: esperou pelo fim de tarde, trepou à árvore e, solenemente, abrindo os braços, sentiu os últimos raios de sol como se da coisa mais importante se tratasse. Depois, lentamente, olhou em volta, como se tudo quisesse absorver, e preparou-se para o último mergulho da sua vida. Foi então que, vinda das proximidades, ouviu uma voz infantil:
- Olha, avô, que ave tão grande está poisada naquela árvore! Vai voar?
O feiticeiro, incrédulo, ficou estarrecido. E só então, qual revelação suprema, percebeu donde emanava a verdadeira luz. E, descendo da árvore, correu para abraçar o menino.
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domingo, 19 de junho de 2022

ABISMOS E LABIRINTOS, CANDEIAS (ETERNAMENTE?) ÀS AVESSAS

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Margarida Cepêda, Tocando para o abismo
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Os tempos eram de ameaça, apesar dos dirigentes se esforçarem por vender a canção "Tudo vai bem". O mal vinha de longe, sem aparente cura, e Ruican, que vivia numa solidão assumida, própria de quem via as coisas antes do tempo, mantinha-se inflexível. Havia que dar volta às coisas, combater o fatalismo, de inaugurar uma época para lá da escravidão de todos pensarem o mesmo...
Bruma, que crescera perto de Ruican, sabia muito bem o que ele pretendia. Mas, apesar de limitada à distância que lhe era concedida, conseguia perceber que, por mais que ele tentasse, haveria sempre uma barreira entre ele e os outros. Por mais que ele porfiasse, as pessoas iriam sempre agarrar-se àquilo que sempre tiveram, em detrimento daquilo que a maioria nunca teve.
Ruican gostava de Bruma, para lá duma visão maior, pois sabia que nela habitava o segredo da simplicidade. Mas pensava, para sua desgraça, que havia uma questão superlativa a descobrir.
Bruma gostava de Ruican, por ele mesmo, contra todas as expectativas dos outros. E, sem que ele soubesse, ia todos os dias, à tardinha, remar contra a maré das coisas fáceis: abeirava-se do penhasco, munida do seu violino e, perante a fúria dos elementos, tentava tocar a profundidade das coisas mais simples, qual segredo para chegar a Ruican. Mas este, demasiado entregue ao seu ego, tardava em perceber...
O abismo, sem que Ruican se apercebesse, demasiado entregue à sua visão, começava a desenhar-se à sua frente.
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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

CONTO DE NATAL - A LUZ DO LABIRINTO

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Margarida Cepêda, A luz do labirinto
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Vivia os dias ao sabor da corrente, como se tudo estivesse no seu lugar, apesar de não lhe passarem despercebidos os escuros becos. Mas sentia, no mais fundo de si, que lhe faltava algo. Pensava que sabia qual a margem segura do Grande Rio, e era essa que procurava frequentar, mas tudo lhe parecia demasiado elaborado, demasiado protegido. E, qual pintor de sensações, pressentia que havia algo que faltava - a forma?, a cor?, a mensagem? - para que a tela fizesse sentido.
Apesar dos medos, um dia decidiu atravessar para a outra margem. Comeu novos frutos, aprendeu novas canções, novas formas de linguajar, descortinou outras formas de rezar. Contudo, bem vistas as coisas, os risos e os choros eram os mesmos. Continuava a ver especuladores, vendedores de banha da cobra, formiguinhas incansáveis e ordeiras na sua fila, e muitos autómatos pendurados, quer seja numa garrafa, numa fila de cocaína ou na ânsia de acumular poder e dinheiro. Faltavam, isso sim, pessoas preocupadas com as bocas por alimentar, com um mundo por equilibrar. A visão das coisas alterou-se, é certo, num vislumbre mais global, e sentiu que, a haver certezas, elas são muito relativas. Mas, mesmo assim, e talvez por isso, a sensação incómoda não o abandonava. Continuava a faltar uma qualquer subtileza, indefinível, que lhe travava a pretensão duma visão harmoniosa, em equilíbrio com o que o rodeava. Que fazer? 
Apesar do desalento, continuou a trilhar o caminho das indefinições, à espreita, em cada curva, que algo se revelasse. Mas o pó acumulava-se, e nada. 
Um dia, perante tantos caminhares e divagares, encontros e desencontros, alguém lhe falou, quase em surdina, duma pequena ilha situada no meio do Grande Rio. E, sem hesitações, norteou para aí os seus passos.
Quando chegou, de ar cansado, abordou o cais. Sentou-se nas carcomidas tábuas, comeu duas laranjas e bebeu um gole de água. Depois, já refeito, abeirou-se do barqueiro. Ajustou o preço da travessia, conferiu o conteúdo da mochila e, de espírito expectante, deixou-se transportar contra a corrente.
Na ilha foi recebido por dois anciãos, de manta nos ombros, aparentemente avessos a sensações. Saudou-os, foi saudado. Só então, depois de os fixar olhos nos olhos, reparou que esboçavam, muito ao de leve, um sereno e permanente traço sorridente, como se tivessem encontrado o quase indecifrável equilíbrio da vida.
Levaram-no por trilhos imperceptíveis ao olhar comum. Quando já começava a desacreditar das boas intenções de quem o conduzia, deparou com um velho, de cálice na mão, sentado à entrada duma gruta. Vestia uma túnica que não escondia a pele engelhada, tinha cabelos fracos e baços, mas escorria por ele um porte digno, de forma natural, como se fizesse parte da sua respiração. Abeirou-se, curioso, mas dele apenas brotaram parcas palavras:
- Bem-vindo. Sejas quem fores, nunca te esqueças do pó do caminho que aqui te trouxe.
Depois, sempre solene, desenhou um leve sinal para o interior da gruta, qual sinal para continuar.
Assim fez. Após contornar algumas bifurcações, como que a quererem despistar qualquer intruso, deparou-se com uma ampla câmara, de tecto alto, com uma luz difusa, oriunda de subtis orifícios provenientes da superfície, a incidir sobre um quadro que, ao primeiro impacto, tinha tanto de natural e primitivo como de hipnótico: uma mãe, com o pai em permanente vigia e protecção, dava de mamar a uma criança. Ao lado, brotando das rochas, soltava-se a água cristalina, qual fio irrigador de qualquer crença. Do pó vieste, ao pó hás-de voltar, isso sabia ele. Mas, até lá, e sentia-o ali, muito havia que fertilizar, com o essencial a brotar daquela simples tela: a esperança em melhores dias.
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segunda-feira, 10 de maio de 2021

À TUA, AVÔ!

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Chegara de véspera, dando folga à cidade. Após um sono retemperador em casa dos tios, sempre prazenteiros e sequiosos de novidades, deixou para trás as últimas casas da aldeia e, com um suspiro profundo, como que a antecipar as dores da empreitada, meteu-se por uma vereda que, dizia-se, tinha sido utilizada pelos contrabandistas de outrora.
A pouco e pouco começou a sentir o corpo a corresponder, cada vez mais solto, enquanto ia ultrapassando o que restava dos castanheiros que, noutros tempos, eram orgulho das gentes raianas, agora a recuperarem da doença da tinta. Deles muita fome se saciou, com a castanha a servir ementas várias. 
Continuou, até entrar numa zona de estevas e giestais, com um ou outro afloramento granítico a adornar a paisagem. Zumbiam abelhas, borboletas emergiam na sua dança silenciosa, a passarada fazia-se notar. De vez em quando, à sua passagem, sentia o incómodo dum ou outro lagarto, bem manifesto no som que emitiam na sua debandada. Um besouro, qual Hércules duma outra dimensão, empurrava uma bola de argila, sabe-se lá para onde, com uma incrível facilidade. E ele, a princípio receoso, começou a sentir-se envolvido na paisagem, numa amálgama de odores, cores e quase imperceptíveis movimentos, enquanto descobria, como se tudo fosse a primeira vez, a diversidade de vida que por ali discorria, longe de qualquer holofote.
O tempo passou, com o pó a colar-se na pele, mas ele nem dava conta. E só quando, depois de galgar mais uma pequena colina, se deparou com as águas dum tranquilo e afável rio, tal como lhe tinha dito o Zé Espanhol, velho sobrevivente de outras eras, é que intuiu que tinha chegado à fronteira.
Aproximou-se da margem. Tirou a mochila, despiu-se sem qualquer pudor e, com algum receio, entrou na água. 
Duas ou três bogas, incomodadas na sua pacatez, deram às de Vila Diogo, num movimento brusco. Um melro, no seu canto assobiado, parecia rir-se da sua ousadia. E ele, com a água a acariciar-lhe o corpo, foi soltando as primeiras braçadas, enquanto meditava que, no tempo do avô, atravessar o rio a nado era uma necessidade para driblar os guardas e os carabineiros, nunca um prazer. 
Depois do banho, foi a vez do conteúdo da mochila fazer maravilhas. Limpou-se bem na toalha felpuda, vestiu roupa seca e apanhou lenha nas redondezas. Depois, com a solenidade dos momentos rituais, acendeu uma fogueira, tirou a cafeteira da mochila, encheu-a com água do rio e colocou-a ao lume, bem assente em duas pedras. Já com a água a ferver, tirou da mochila o café e, delicadamente, deitou duas colheres na cafeteira. Mexeu bem e, operação fundamental, tirou uma brasa do lume, tal como os d'antanho faziam, e meteu-a na cafeteira. A seguir, sempre sem pressas, foi à mochila buscar uma moldura com uma fotografia antiga do avô e colocou-a de frente para ele. Pegou então numa caneca, encheu-a com o escuro e aromático líquido, pôs-lhe um pouco de açúcar, como o avô gostava, e mexeu demoradamente, como que a adiar o grande momento. Finalmente, com ar compenetrado, levantou a caneca e disse, numa voz emocionada:
- À tua, avô!
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sexta-feira, 9 de abril de 2021

INICIAÇÃO

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AC, Encosta de Castelo Novo, Serra da Gardunha, bem "barbeada" pelos incêndios
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O pai chamara-o, de véspera, e instruíra-o com ar sério, próprio das grandes ocasiões. Havia que ir à botica de Alpedrinha, com urgência, pois a avó precisava, sem falta, de um remédio. Ele não podia, que tinha um negócio por concluir na Soalheira, há muito combinado, mas confiava nele para o bom desempenho da missão. E assim se deitara, prenhe de responsabilidade, entregue a um sono inquieto.
Saíra de Castelo Novo ainda o galo não cantara, munido de curto farnel e duma cabaça com água do fontanário da antiga Câmara. Alheou-se do ladrar dos cães, sempre atentos a qualquer movimentação fora d'horas, e começou a contornar a serra, por entre fraguedos, num percurso prenhe de reentrâncias e desvios. O jeito que lhe dava agora o comboio, recentemente inaugurado pelo rei D. Carlos, para levar a missiva a bom porto - pensou, de si para si - mas passava longe, e além disso custava preciosos réis. Aquilo era para gente de posses, oh se era, e havia que dar às pernas, que apenas careciam da vontade do dono para pagar a passagem.
Caminhava com algum receio, em plena serra, mas tentava manter a firmeza. Não era agora, com uma missão de responsabilidade, só entregue a homens feitos, que ia dar parte de fraco. Mas, por mais que tentasse, as histórias do avô João e os zunzuns da vizinhança não saíam da cabeça daqueles doze anos incompletos. Andavam por ali lobos, dizia ele, e, quando eles se aproximavam, até os cabelos se punham em pé. E andavam mesmo.
Prosseguiu, sempre atento, e, quase sem se dar conta, de vez em quando levava as mãos à cabeça para se certificar que os cabelos continuavam no lugar. Estavam.  Por mais que caminhasse, sempre com mil cautelas, havia sempre mais uma dobra dum rochedo, igual a tantas outras, sem nunca se ter noção do caminho que faltava. Suava, suava muito, enquanto o coração batia de forma acelerada.
Quando, por fim, contornou a curva onde reinava um enorme castanheiro, de tronco carcomido, velha sentinela do tempo que passa - é do tempo de D. Dinis, costumava efabular o avô, ao serão - vislumbrou, lá ao fundo, as duas imponentes torres da igreja, que congregavam à sua volta o granítico casario da vila de Alpedrinha. Finalmente!
Os suores começaram a esvair-se, o coração moderou o andamento, tempo ideal para uma pausa.  Abriu a braguilha, dando vazão às necessidades do corpo, e sentiu que, à medida que a urina escorria, encosta abaixo, qual torrente libertadora, ainda não seria desta que os seus cabelos ficariam em pé. E lá prosseguiu, a fazer-se de homem, agora com outro ânimo.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O ETERNO CONJUGAR DO VERBO

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Presépio, em telha mourisca, do meu ex-aluno Francisco Paulo
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O homem carregou no acelerador do velho Fiat Uno, lata amolgada carcomida pela ferrugem, mas os gemidos da mulher, no banco de trás, diziam-lhe que não iriam chegar a tempo à maternidade. A hora aproximava-se, assim lho diziam os constantes apelos da mulher, e o desespero incapacitante levou-o a virar no primeiro desvio, recurso último de quem não sabe o que fazer. O velho carro, a dar o que não podia, entrou numa rua escura, esburacada, pejada de armazéns abandonados. A cadência dos gemidos acentuou-se, accionando o chiar dos travões. Era agora.
Enquanto o homem, desesperado, tentava acudir à mulher, das imediações começa a irromper vida. Rostos barbudos, de cabelo em desalinho, caminham para o epicentro. Enquanto ajudam o casal, sente-se o ranger dum enorme portão a rodar. Um movimento inusitado começa a insinuar-se na zona. 
Estendem dois cobertores no chão, entre duas enormes pilhas de paletes, e acomodam a mulher. Ao lado, movido a urgência, alguém acende um fogão de campismo e põe água a aquecer. Vindos do exterior, dois bidões, prenhes de madeira seca a alimentar as chamas, começam a aconchegar o improvisado abrigo. 
Quando se ouve o primeiro choro, nascem lágrimas para temperar o júbilo. De repente, qual quadro há muito esquecido, o enorme armazém torna-se pequeno para tanto rosto barbudo, de olhar intenso, como se algo novo, quase indefinível, despertasse dentro deles.
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Dezembro de 2013
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domingo, 16 de agosto de 2020

BICHOS

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AC, Gravura rupestre do Poço do Caldeirão, rio Zêzere

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Esgueirava-se, por entre as giestas, tentando ver e não ser vista. Tinham-lhe dito que, a meio da manhã, passaria por aquelas bandas a Senhora dos Santos Bichos, a fim de esconjurar a maleita, e não queria perder a ocasião de lhe dirigir uma dúzia de palavras, ou pouco mais, a fim de colocar um açaime nos seus medos.
O andor, transportado por quatro acólitos, que precediam o padre, emergiu da curva do Carvalhal Redondo, transmitindo alguma solenidade ao acto. A Russa, ciente da ocasião, ajeitou a saia, passou a mão pelo cabelo e aguardou, ansiosa. Quando o cortejo passou à sua beira, deu um salto para o caminho, prostrou-se  no chão e, baixando a cabeça, inquiriu:
- Senhora dos Santos Bichos, minha santa, é verdade que anda um bicho à solta por aí?
Ninguém respondeu, o cortejo seguiu em frente. A Russa, não se contendo, exclamou:
- Homessa! Mas eu sou algum bicho do mato, ou quê?!
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quinta-feira, 16 de julho de 2020

REDENÇÃO

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Imagem retirada da net
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Dizia-se amarela. Depois azul. Logo a seguir, quase sem pausas, assumia-se roxa, verde ou siena, pronta para o que desse e viesse.
Procurava-se? Não, nem tanto. Era apenas uma questão de sobrevivência para um ego sem sustentação, que dependia totalmente da energia dos outros. Então, sem verdadeiramente as sentir, ia desfilando cores, como estratégia, até que alguém se dignasse olhar. Depois, caso um ratinho cheirasse o queijo, fazia o pino, pintava a manta, queimava o sutiã. Numa tela resguardada, claro, longe dos rebentos, delicadas joaninhas que, felizes, se deslumbravam com as flores do jardim. E, por entre efabulações descontínuas, sem capacidade para pintar os cenários que evocava, acabava sempre por perder a cor,  afugentando a presa, dando guarida ao despeito e ao rancor.
Lá fora, indiferentes ao secreto jogo multicolor, as joaninhas continuavam a sorrir. Talvez nelas, tecedeiras de cores alegres e vibrantes, residisse a verdadeira redenção, e não tivesse que fazer como Marcel Proust: discorrer em busca do tempo perdido.
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domingo, 8 de março de 2020

A PROMESSA

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Imagem retirada daqui
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A auto-estrada há muito ficara para trás. Após desenvencilhar-se da estrada municipal, com passagem por meia dúzia de aldeias, começou a ladear a montanha por uma estrada estreita, em mau estado, pejada de curvas. Os incêndios tinham deixado marca, era notório, mas ainda se via, aqui e ali, um ou outro pinheiro, além um carvalho, ilhas isoladas no mar de urze e giestas que entretanto tinham desabrochado, sobreviventes duma tragédia há muito anunciada.  
Continuou a viagem, tentando redescobrir traços da paisagem doutros tempos à medida que vencia cada curva. No Braceiro, onde as courelas, outrora, alimentadas pela água das nascentes, eram cultivadas com esmero por um rancho de pessoal cantante, tinham soçobrado à invasão das silvas. A vegetação, indiferente à pegada humana, nem de caminhos ou veredas deixara rasto.  Digeriu a mágoa, meteu nova mudança e galgou mais algumas curvas. Às tantas, ultrapassada a Fraga da Moura, viu-se na Portela das Almas, ponto de encontro nocturno, segundo estórias de antanho, das almas do outro mundo. Não conseguiu evitar um sorriso com a lembrança, como se regressasse ao tempo em que a avó maravilhava com gestos e palavras nos serões invernais. Encostou o carro, saiu e aproximou-se do enorme tronco do velho castanheiro, centenária sentinela de tudo quanto a vista abrangia. Pôs a mão direita por cima dos olhos, à laia de pala, e divisou, lá ao fundo, sobranceiro ao serpentear da ribeira, o Vale da Ponte, ancestral ninho onde tudo começara. Olhou, demoradamente, para o conjunto de casas. À medida que as ia identificando, sem pressas, o pincel da memória ia dando colorido a cada uma delas, pintalgando-as de mil e uma recordações bordadas com algumas travessuras. Sentiu o coração palpitar, sentia-se de regresso à eterna casa.
Olhou para o relógio. O tio e o alemão já deviam estar na loja da Belmira, um misto de mercearia, taberna e posto público, epicentro das poucas novidades do lugar, aguardando a hora para a consumação do acto que ali o trouxera. Estava tudo tratado e falado, a internet facilitava muito estas coisas. O alemão, saturado da vida urbana, procurava reencontrar a autenticidade da vida no contacto com a natureza. Ele, por sua vez, incapaz de se libertar das teias com que a vida o foi tecendo, viu naquele estrangeiro a oportunidade de cumprir a promessa que fizera à mãe: as terras herdadas da família em Vale da Ponte nunca seriam abandonadas.
Reentrou no carro e encetou a descida. O contrato, por sua exigência, não contemplava a venda dos terrenos. O alemão instalava-se, cultivava, podia introduzir todas as ideias que lhe povoavam a mente, dar livre curso à sua utopia. No entanto, após o consumar da sua vida, as terras voltavam à posse da família. Talvez os filhos, ou os netos, quem sabe...
- Frank Bauer?
O sorriso desenhado e a mão estendida diziam tudo.
Almoçaram em casa do tio, conversaram sobre as gentes e o lugar e depressa ultimaram as pontas soltas daquele inusual contrato. Após mais um aperto de mão, de olhos nos olhos, faltava a parte mais solene, aquilo que verdadeiramente ali o trouxera. Dirigiu-se para o cemitério, empurrou o velho portão de ferro e procurou a campa familiar. Depois, em acto solene, justificou-se:
- Ouve-me bem, mãe. Prometi que um dia voltaríamos para este lugar, a terra que sempre amaste, que corre nas nossa veias, mas as minhas batalhas foram mais que muitas e os teus netos andam distraídos com outras lides, correndo em busca não se sabe bem do quê. Mas renovo a promessa: um dia havemos de voltar, como tu sempre quiseste, mas parece-me que, por ora, as nossas terras ficam bem entregues. Sabes, tu havias de gostar do Frank. Os olhos brilham-lhe quando fala da terra, está prenhe de planos, até já fala em construir uma mini-hídrica. Bem sei que não era isto que sonhavas, mas podes ficar descansada, mãe, ele vai saber cuidar da terra como ninguém. Adeus, mãe. Tal como o poeta,  já podes ir com as aves.
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sábado, 2 de junho de 2018

O BILHETE

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Júlio olhava pela janela. Em frente, na pastelaria, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e muitos, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Júlio abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir aquecer a comida, feita na véspera, que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que noutros tempos distribuía entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo com a intenção de lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparara que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Disse-lhe, então, que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Júlio não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E, no dia seguinte, num imutável ritual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair, Júlio ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem e descortinou o seu lugar, tirou o casaco e, com movimentos tranquilos, de quem sabe o que faz, sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, a sua mão, num gesto quase inconsciente, procurou o contacto do estojo, como se da mais preciosa coisa se tratasse. Maria aguardava-o, não queria fazê-la esperar mais.

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Outubro de 2009
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domingo, 6 de maio de 2018

CRÓNICA DUM HOMEM SIMPLES

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AC
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Arredara-se dos homens, seres de mil faces, e acomodara-se numa pequena quinta abandonada. Mau negócio aos olhos dos outros, um pequeno paraíso, feito refúgio, no cintilar dos seus. Os filhos bem tentaram demovê-lo, mas nada feito. Era mesmo aquilo que ele queria.
Alberto limpou, cortou silvas, fez obras, rasgou a terra. Quanto mais fazia mais se ligava, mais jorrava, dentro dele, um sentimento de pertença.
Sentia-se grato a cada dia que passava, de alma aberta ao crescimento e ao definhar das plantas, ao distanciamento respeitoso da bicharada. Só os pardais, eternos senhores de qualquer lugar, pareciam indiferentes à sua presença.
Com o tempo foi descobrindo a magia dos enxertos, qual alquímica arte de multiplicação dos frutos. Tentou macieiras, cerejeiras, pessegueiros, pereiras, abrunheiros... Ganhou-lhe o jeito e, vá lá saber-se como, começou a ganhar prestígio nos seus vizinhos, que de vez em quando o convidavam para exercer o seu talento. Talvez fosse pelo reconhecimento da sua arte, talvez fosse pelo pretexto de saber mais daquele homem simples, de olhos brilhantes, que nunca se queixava fosse do que fosse. E isso intrigava-os. Alberto ajudava no que podia, tentava ser cortês, mas depressa regressava ao seu refúgio. Não era dado a grandes conversas.
Os filhos visitavam-no uma vez por ano, mas depressa se iam. Amarrados pelos compromissos de outras vidas, continuavam a não entender aquela espécie de felicidade do pai, cada vez mais entranhada.
Com o tempo começou a tentar enxertos de várias espécies na mesma árvore. De uma só qualidade era fácil, a questão residia quando tentava congregar várias espécies. Tentou, cogitou, voltou a tentar.
O tempo dum homem nesta vida é limitado, e Alberto bem o sabia. Tudo tem um rumo, um caminhar, e outros homens ocupariam o espaço dos que, entretanto, iam partindo, deixando um legado natural, por mais ínfimo. Sentia-o profundamente, a comunhão com a natureza assim lho ditava. Talvez, por o sentir de forma tão profunda e, em simultâneo, natural, nunca se inquietou com questões de vida ou de morte. Continuava a fazer o que achava que devia, que lhe dava satisfação, num permanente deslumbramento pelas manifestações da vida. Por vezes, alheio à noção do tempo, era capaz de ficar horas a observar um besouro na sua labuta diária, era capaz de se deslocar uma distância considerável só para saber onde um melro fazia ninho...
Um dia, no fim do Verão, também chegou a sua vez. Os filhos, depois do funeral, reuniram-se na casa da quinta, fazendo contas à vida, e só então repararam numa árvore, diferente de todas as outras, que dava ameixas, pêssegos, pêras, maçãs... 
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sábado, 16 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL, GUGA!

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Fotografia de AC (2013)
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Havia um mundo para lá das luzes da avenida, recheado de sombras, onde residiam os vencidos da vida. As estatísticas mostravam-se arredias, pouco ou nada sensíveis com tal gente, que só servia para atrapalhar as contas duma qualquer folha de Excel. Mas, por mais que inventassem novas borrachas, novas formas de subtrair, aquele mundo existia, pleno de grandezas e misérias. Ali, no patamar mais baixo da existência, povoado por um batalhão de desistentes semi-adormecidos, havia corações a palpitar, gente que, nos confins da alma, teimava em sonhar com melhores dias.
Guga tentou manter-se agarrado ao sono, num exercício quotidiano esculpido na prática da sobrevivência. O despertar da grande colmeia, numa correria desenfreada, nada lhe trazia de bom, antes pelo contrário. Àquela hora nunca davam nada e, do seu rasto, ficava apenas o perturbar do parco descanso concedido pela díspar fauna noctívaga. Tentou dormitar, mas não conseguia. Levantou-se, a custo, e esgueirou-se para os lados do Dragão Vermelho, reles bar de engate a preços acessíveis. De vez em quando o pessoal da limpeza, gente do bairro, deixava-o esgueirar-se até aos sanitários, que tresandavam a urina, e por lá saciava as necessidades mais prementes do corpo. Por vezes olhava-se ao espelho, mas era raro, só o fazia quando se sentia capaz de enfrentar os seus fantasmas.
- Despacha-te, Guga, que o patrão pode aparecer por aí!
Por ali ainda tinha nome, ainda que adaptado às circunstâncias, mas só ali. Do outro, associado a outras vivências, de há muito lhe tinha ocultado o rasto, embora, quando o fundo do poço ficava mais à vista, se insinuassem as memórias. Saiu, com um aceno, o pessoal dali nada mais lhe exigia. Sabiam bem que, na vida, há um limiar que a todos pode driblar.
Ao fim da tarde, quando a roda da vida parece endoidecer, Guga começou a estranhar. O movimento era o de sempre, gente apressada por todo o lado, mas naquela tarde havia algo diferente, como se a pressa ganhasse contornos de vida, para lá dos gestos mecânicos. Continuava a haver pressa, mas esta era diferente. Talvez fosse a expressão dos rostos, talvez os gestos mais soltos, como que alheados das grilhetas, talvez fosse tudo isso ou qualquer outra coisa que lhe escapava. O certo é que, apesar de apressadas, as pessoas pareciam transportar algo de precioso dentro de si. Até as moedas, habitualmente escassas, pingavam na sua caixa com outra intensidade.
As ruas foram ficando vazias, mas mesmo os mais retardatários transportavam aquele estranho brilho nos olhos, como se, de repente, descobrissem na sua vida algo que valesse a pena. Guga estranhava, mas não entranhava. E, às tantas, com a rua às moscas, levantou-se do seu poiso diurno, passou pelas traseiras do Clementina, onde uma empregada, de modo furtivo, lhe costumava dar umas bifanas, e dirigiu-se, sem qualquer pressa, para o beco onde, por entre cartões, sacos de plástico e um ou outro cobertor, aconchegava a sua solidão.
Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores, lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se, de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
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sábado, 9 de dezembro de 2017

PALAVRAS, TAKE 1

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Júlia Tigeleiro, É só um olhar...
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Parecia nada ter de especial, mas ninguém lhe ficava indiferente. Incisiva, sorridente, persuasiva por condição - muito mais quando acreditava convictamente naquilo que dizia, ou fazia - meneava a espessa cabeleira ondulada enquanto fazia valer o seu ponto de vista. E insistia, não desistia facilmente.
Vais ver que gostas, dizia-me ela, dando forma ao seu perfil entusiasta. E, rendido a tanta crença, lá fui.
À primeira vista, envolvida num fato cinzento e resguardando o olhar atrás duns óculos finos e redondos, a conferencista não suscitava grande crédito. Talvez fosse preconceito meu, considerava, mas o olhar da Inês, que me era enviado embrulhado num sorriso apaziguador, continuava a garantir que valia a pena. Por fim, depois de sucinta apresentação, a suspeita lá começou a debitar palavras, que a determinada altura começaram a merecer alguma atenção.
A vida, dizia ela, não é um caminho estreito, ladeada dos arbustos de que mais gostamos, como se pudéssemos manipular tão sabedora ama. Não, a senhora em causa ultrapassa o nosso conhecimento. Podemos tentar adivinhá-la, adorná-la com toda a espécie de cultos, sentir que estamos próximos, venerá-la mesmo, mas nem mesmo assim a esquiva madame se compadece.  
Até aqui tudo bem, pensei. Estava a gostar do rumo da coisa, em crescendo. 
Seguimos a intuição, estudamos, tentamos desvendar os pequenos e grandes sinais, porfiamos, mas nada. A grande resposta teima em se ocultar. 
Começava-me a interessar, como se por ali houvesse preocupação em construir, não em vender.
De vez em quando, prosseguia ela, condescendemos numa pausa para viajar, para caminhar no que resta da natureza, para dançar, aqui e ali conseguimos introduzir o riso. Mas não basta.
Apurei melhor o ouvido. Será que a conferencista iria ousar debitar alguma fórmula?
A vida, meus caros, é uma constante descoberta. Em nome do conforto e da segurança deixámos que alguém se apropriasse dela, ditando regras e modos, cores e odores, a um preço módico. Mas apenas na aparência. Quase sem nos damos conta, qual menino apaziguado dos seus medos pela figura incontornável da mãe,  ficámos reféns do que nos venderam, daquilo a que nos habituaram. É preciso reagir, é urgente não dar a outra face. Nós, instituição que se preocupa com o aparecimento dum novo homem, temos uma linha de atendimento que...
Afinal era mais do mesmo, uma venda ao vivo com contornos aveludados. Segredei qualquer coisa ao ouvido da mulher de farta juba, que não estranhou, levantei-me e saí.
A Inês apareceu no bar uma hora depois. Não vinha eufórica, longe disso, mas sentia-se bem. Ambos sabíamos que nos esperava uma noite regada por muitas palavras, condicionadas por uma única regra:  filtradas de vazio e de fel, com muita alma e coração. Só assim, para nós, elas faziam sentido. Era a única forma que conhecíamos de tentar (re)construir a vida.
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sábado, 2 de dezembro de 2017

O CAÇADOR DA LUA

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AC, Beijo lunar
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Já lá vão muitos anos, mas é como se fosse hoje. Nas noites frias de Inverno, à lareira, os mais velhos gostavam de recordar, de contar, inundando a noite com personagens vestidas com roupagens muito próprias, como se nelas se escondesse a explicação das coisas. Eu adorava ouvi-los, hipnotizado pelas palavras e pelos gestos, e foi nessas histórias que comecei a desenhar o mundo, muito para lá da geografia que me rodeava.
Zé Rosendo é pura ficção, é claro, nascida num momento em que, no aconchego da lareira, a memória desses momentos se fez presente. E, em homenagem a eles, deixo-vos com o Zé Rosendo.
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Espreitava. Não por defeito, mas por condição. As noites bem podiam enrolar, num jogo de crescente aparece, crescente esconde, mas ela fazia-se sempre notar. Mesmo na ausência. E Zé Rosendo, bicho de pouca convivência, habituado à caça furtiva, sem nada para lá dos sentidos, sentia-se farto de tanto espreitar. Queria o mundo certinho, com tudo no lugar, como se a pequena parcela que habitava fosse o centro do mundo. Só assim as coisas, para ele, faziam sentido.
Uma noite, após dar voltas e mais voltas no toutiço, resolveu armadilhar a Lua, como se de bicho se tratasse. Comprou dois foguetes ao Estoira-Noites, fogueteiro de serviço nas aldeias circundantes, dirigiu-se para a Portela, sítio mais alto das redondezas, e preparou o foguetório. Quando a atrevida, bem redondinha, se balançou no céu, mesmo a jeito, o Zé Rosendo, soltando o caçador que lhe impregnava as entranhas, sacou do isqueiro e acendeu um cigarro. Depois, mal contendo a impaciência, ateou o primeiro foguete e orientou-o na direcção do disco amarelado.
Ainda o segundo foguete lhe beijava as mãos, prestes a partir, e já o caçador da Lua sentia que algo estava errado. Mas o objecto lá se esgueirou em direcção ao céu, enquanto a noite se enfeitava de pequenas lágrimas de luz, que caíam harmoniosamente, reabastecida aquando do estouro do segundo foguete.
Zé Rosendo, atónito com o espectáculo, sentiu-se testemunha de algo transcendente, como se de milagre se tratasse. Depois, diluída a euforia da luz, olhou de soslaio para a Lua e, lentamente, começou a ajoelhar-se.
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sábado, 1 de julho de 2017

MÁ SORTE

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Sónia Reis, Amarras
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Na pequena aldeia já todos se tinham recolhido, fazendo contas à vida. Lá fora pareciam felizes, contentes com a sua existência - andavam, numa azáfama, a preparar a festa do padroeiro - mas recolhidos, enquanto cogitavam, um nome era transversal a todas as conversas, quase de forma inconsciente: o de João Afoito, executor da agenda do barão. Todos sabiam do seu poder, todos sentiam na pele o preço de estar de bem com ele. Servil, até à medula, para quem lhe dava ordens, transfigurava-se na sua aplicação, como se a salvação da alma dependesse da sua obediência. E, aí, era cínico, frio, alicerçado numa fidelidade canina.
João Afoito, contudo, não sentia paz. E, de quando em vez, talvez para apaziguar a consciência, convidava um ou outro peão mais influente para uma petiscada. Copo daqui, copo dali, as palavras começavam a brotar, embora comedidas. O Afoito tentava debitar insinuações de humanidade, esboçando recompensas a quem o entendesse, os peões sentiam-se protegidos por merecerem a sua atenção. A sombra, contudo, era fiel testemunha do subtil amordaçar.
Um dia, no largo da ribeira, onde todos se encontravam ao fim da tarde para dois inofensivos dedos de conversa, o Aranha, que já tinha bebido uns copos na adega do compadre, começou a questionar as amarras do barão e do capataz, o João Afoito. Silêncio. Todos ouviam, mas o olhar, não fosse interpretado como de concordância, afastava-se noutra direcção. E, quase em murmúrio, naquele dia regressaram mais cedo a casa.
O João Afoito, por beneplácito de alguma alma caridosa, depressa soube o que se passou. Ouviu, mas dele nada transpareceu.
A aldeia voltou à sua azáfama, benzida no ouvir e calar, em prol do pão de cada dia. E nem mesmo quando o Aranha, personagem bafejada pela má fortuna, apareceu afogado num poço, se atreveram a endireitar as costas. Para rematar o caso, ficaram, qual etéreo epitáfio, as palavras da Ti Ana do moleiro:
- Coitado, nunca teve sorte nenhuma.
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sábado, 6 de maio de 2017

PRINCESAS, PEDRAS, PÁSSAROS E LENDAS, O MARAVILHOSO PARA LÁ DAS TENDAS

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AC, Gardunha
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Em tempos que já lá vão, havia uma princesa moura, muito bonita - contavas tu, enquanto me aninhava, encantado, no calor do teu colo - que costumava passar por ali, nos fins de tarde, lamentando a ausência do alaúde e do bendir. Então, perante tão sentido carpir, toda a passarada da Gardunha se reuniu, em assembleia, para debater sobre a melhor forma de apaziguar o lamento da princesa. Decidiram cantar por turnos e, não fosse alguém esquecer o combinado, confiaram tudo às Pedras da Memória.
Melros-azuis e rouxinóis, cotovias e piscos, ferreirinhas e pintassilgos, e outros que tais, que esvoaçavam por cima das pedras, nunca mais se esqueceram do protocolo, embalando a princesa moura em naturais cantares, fazendo-a sentir como se aquela fosse a sua verdadeira casa. 
Ainda hoje, quando alguém passa por ali, e se estiver atento, as pedras parecem querer dizer-lhe algo. A passarada por lá continua, cumprindo a decisão da ancestral assembleia, apenas falta quem a ouça e sinta como a princesa moura.
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sábado, 4 de março de 2017

OS CONSTRUTORES DE LENDAS

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Pintura de Sergei Aparin
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Não sabiam bem por que o faziam, apenas sentiam que tinham que o fazer. Eram herdeiros de mil lutas, de iguais persistências, em prol de algo que vinha do mais profundo de si. Às tantas, perante tantas pedras no caminho, duvidavam, mas acabavam por prosseguir, deixando, em cada sítio, esboços de coisas diferentes, mapas de inquietudes, incompreensíveis para quem se habituara à segurança de cada coisa no seu lugar. E prosseguiam, prosseguiam sempre, indiferentes aos olhares, aos gestos. Sentiam, há muito, a bússola que os guiava, que os impelia, a estrela que, nos seus sonhos, lhes soprava a palavra liberdade.
Quando chegaram àquele vale, longe da agitação e da cobiça, sentiram que podiam ficar. Não havia colunas, nem torres, nem palácios, apenas algumas ruínas. Era um local simples, tranquilo, desprezado pelos outros, fora do corrupio habitual em que todos se querem ver, em que todos se sentem vivos porque os outros também lá estão. Talvez, ali, conseguissem momentos de pausa, mesmo que curtos, em que pudessem respirar, profundamente, tudo o que os norteava.
Jonas, que liderava o grupo, sabia que não os deixariam ficar ali muito tempo, mas não partilhou, com os outros, os seus receios. Era apenas uma pausa, mais uma, apesar de procederem como se o melhor fosse possível. Talvez fosse desta, pensavam eles. Mas Jonas, lá no fundo, sabia que estavam demasiado habituados a olhar para as estrelas, a tê-las por companhia.
Repararam o essencial das paredes, taparam fendas, deram sentido aos telhados. Escolheram os melhores locais para cultivar, semearam, limparam o terreno circundante. Nos tempos de repouso, em que todos se olhavam, havia sempre alguém que trauteava canções antigas, quem perscrutasse o futuro, quem dançasse, quem contasse histórias...
Começavam a habituar-se, coisa rara, mas um dia chegou um jipe com homens de uniforme. Receberam-nos com o melhor que tinham, tentaram conversar, mas os rostos dos visitantes, fechados, nunca destoaram da farda. Fizeram perguntas, pediram documentos, escrevinharam num livro. À despedida, impassíveis, deixaram a sentença: tinham que partir.
No dia seguinte, bem cedo, despediram-se do vale e empreenderam nova marcha. Um ou outro do grupo ainda olhou para trás, mas por pouco tempo. A herança era pesada, mas teimavam em procurar, sem saber bem onde, um local onde a palavra liberdade fizesse todo o sentido. E, embora em tom de lamento, cantavam, dentro de si nunca deixavam de cantar.
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