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domingo, 16 de julho de 2023

VÍNCULO

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O pai, vinculado a uma vida de coerência, apesar dos custos, mais que muitos, avisou-o:
- Podes correr por toda a terra, perceber o respirar de cada habitante, mas, na hora certa, cada ser que te rodeia, por mais insignificante, vai cobrar da tua decisão.
Por que raio se lembrava disso, quando o contrato que tanto almejara se prostrava, sorridente, a seus pés? À boleia disso mesmo, encavalitado num contrato de encher o olho, vislumbrou e fruiu geografias distantes, tentando perceber, embalado na herança paterna, o respirar local. Curiosamente, ou talvez não, ao mergulhar nas novas realidades, sentia, a pouco e pouco, que os problemas de uns eram os problemas dos outros, apesar da distância, não em quilómetros, mas em euros ou em dólares. Todos queriam, no fundo, ser felizes, apesar da diferença, essa sim, quase inultrapassável no espectro cultural.
Quando, numa viagem de circunstância, teve oportunidade de trilhar os Andes, temperada com Titicaca quanto baste, lembrou-se do pai, obrigatoriamente, pois era essa a sua viagem de sonho. E, comovido, não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. A partir dali sabia, por mais que invocasse as memórias, que as discrepâncias deste mundo estariam a seu cargo.
Engendrou, com base no engenho diplomado, soluções do agrado de quem decidia. Mas, por entre comemorações, de copo na mão, não conseguia evitar pousar o olhar nos mais simples, que continuavam a bastar-se com dois ou três animais, uma terra saturada e um artesanato ancestral, sonhando, talvez, com a grandiosidade das asas dum qualquer condor duma ordem desaparecida e que, de quando em vez, sobrevoava as escarpas da quase inacessível montanha. E, nessas alturas, sentia que algo lhe escapava, a ele, europeu de gema, apesar de, através da herança paterna, estar desperto para novas equações. Em suma, não se agradava a si próprio.
Por entre caminhos obrigatórios e outros nem tanto, à sorrelfa, foi galgando veredas fora da órbita, procurando comungar dos valores locais. E, o que apreendeu, foi determinante na forma de encarar o mundo. Atrasados, estes indígenas? Que disparate, sentia ele, tínhamos era ainda um longo caminho a percorrer numa mesa vazia, sem pretensões, em que cada um falasse, com humildade, daquilo que mais o inquietava. Caminhar, acima de tudo, de mãos dadas, sentindo que os problemas de uns, apesar da diferença cultural, eram os problemas dos outros.
O caminho não era fácil, pois sabia do riso de escárnio dos mais poderosos, sustentado em ideologias de privilégio, mas estava mais que preparado para ir à luta. Já que mais não fosse, e para além da proximidade, em eterna promessa de sublevação, com os oriundos da terra, na criação das condições para a manifestação do riso natural dos filhos, seus e dos outros, que esperava virem a dar novo rumo a este recanto, aparentemente malfadado, mas com condições únicas para, no final do dia, aconchegar uma visão de dever cumprido. Havia, pois, que deixar-lhes um legado, adornados com cantares de sentido profundo, por mais que doesse.
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sábado, 8 de julho de 2023

PESADELOS NOS INTERVALOS DE OBSERVAÇÃO DAS FLORES

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Margarida Cepêda, Tocando para o abismo
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Eles, os mais velhos, vestiam a pele de sabedores. E discorriam, adoçando as palavras quanto baste, procurando despertar nos mais novos a apetência pela conquista. Mas, na intimidade, desconfiavam.
Eles, os mais novos, vestiam a pele de educados. E, em nome do respeito, evitavam a acidez das palavras para os confrontar com a herança dum mundo em decomposição. Mas, na intimidade, contestavam.
Não houve simbiose na argumentação, longe disso, mas houve, pelo menos, o deglutir duma bela refeição, qual pausa para o encarar dum futuro muito próximo, com a noção de tempo a esvair-se perante as ideias feitas personificadas numa flor: os mais velhos confrontados com a ida para um lar, qual flor murcha, os mais novos com a sobrevivência num mundo sobrelotado, qual flor por inventar.
Se fosse o ensaiar duma peça, o encenador teria o grande desafio, como pano de fundo, de saber retratar a angústia. Com a esperança, de forma muito dissimulada, a tentar espreitar.
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terça-feira, 21 de março de 2023

ONTEM, HOJE, SEMPRE...

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Imagem retirada da net
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Eles, os observadores, não navegavam, preferiam a margem segura, mas admiravam quem ousasse profanar as águas, fronteira limite dum mundo, assaz aventureiro, que nada augurava de bom para o recanto onde cada um, aparentemente, sabia o que tinha a fazer.
Outros foram, com a alma adocicada, contrariando os oráculos, mas poucos regressavam. E, entre traumas e venturas dos sobreviventes, logo se alongaram os cais, não fosse o diabo tecê-las, apesar da negação das ancestrais professias: cada um no seu lugar, sem necessidade de abespinhar o urso.
Mais partiram, procurando a aurora noutras latitudes, poucos continuaram a chegar. Os jovens, fervilhando, não viam a hora de sentir o porvir, tal o seu ensejo; os homens feitos, apesar do aconchego do conceito de honra, embebido nas origens, começavam a meditar, nos intervalos da suposta epopeia, nos filhos que deixavam, nos campos que ficavam por lavrar; as noivas, arrasadas por uma realidade sem paralelo, para além dos ais, reinventavam um tempo sem tempo, em que apenas elas existiam, ácidas de tanto esperar, sem filhos por nascer; as velhas, envoltas em pesados trajes, nada diziam, apenas lamentavam, pois sentiam o drama. E, às escondidas, limitavam-se a carpir, não fosse a vizinha notar.
Quando um barco chegou, carregado de riquezas doutros mundos, toda a aldeia festejou. E o efeito multiplicou-se por outras, por muitas outras, quando novas velas se fizeram anunciar num porto, em dois, em muitos... E, por um tempo, perante a limitação do olhar humano, a efemeridade insinuou-se como deusa suprema, não fosse qualquer precavido, por mais sensato, perder o próximo barco.
Hoje, passados muitos anos, se alguém festeja a chegada de um barco, é apenas para descompressão dos solitários dias, mas sempre com a esperança, eterna filha em dias melhores, sempre no horizonte. Os hemisférios deslocaram-se, artificialmente, para outras paragens, a conversão da vida em possível festa tornou-se, irremediavelmente, uma questão por reinventar. Segundo alguns, ad aeternum, apesar de continuarem, por hábito, a fazer o sinal da cruz, à espera dum qualquer sinal, seja ele qual for.
Por aqui, num espaço aparentemente imune às questiúnculas dum amanhecer cavernículo, teima-se em deixar espaço às diferentes espécies de vida, cada qual com a sua importância: as ervas, após alguma chuva - não a suficiente - continuam a crescer, florindo; as árvores, num ritmo primaveril comandado pelos raios solares, desabrocham a cada dia que passa, fazendo sorrir quem as sente e observa; as andorinhas fazem-se anunciar, reivindicando, quase que por magia, os ninhos ocupados de antanho; os pardais, sempre omnipresentes, continuam a fazer sentir a sua arruada, como se fossem donos e senhores do espaço; os pintassilgos, muito mais discretos e imunes à presença humana, teimam em debicar sementes e insectos, sempre num voo elegante; os melros, definição perfeita do que é ser esquivo e ladino, poisam aqui, debicam ali, procurando nunca denunciar onde habitam; as pegas-rabilongas, as malfeitoras do lugar, pois devoram qualquer couve jovem, denotam confiança e desfaçatez, mas afastam-se ao mínimo ruído; mais acima, as cegonhas, com ninho nas proximidades, passam ao fim da tarde, num voo ergonómico, com as patas a projectar-se para trás, em consonância com a cabeça, que se projecta para a frente, desafiando, ou evitando, qualquer obstáculo que se lhes depare; as aves de rapina, mais altaneiras, dominam a estratégia do olhar, procurando, socorrendo-se da emanação das correntes de ar, definir qual a melhor forma de apanhar este rato, ou aquele coelho, deitar as garras àquela serpente...
Por mais que, no exterior, os quadros se pintalguem de cores funestas, por aqui o vento continua a soprar, instalam-se os primaveris raios solares, começam a lavrar-se as terras, com as abelhas e as borboletas, qual benfazejo sinal, a dar sinal da sua presença. E eu, apesar dos anunciadores da desgraça, continuo a acreditar.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O FEITICEIRO E O MENINO

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AC
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Havia uma árvore, um horizonte e um feiticeiro.
Como a ciência começava a imperar, o feiticeiro tomou a resolução da sua vida: esperou pelo fim de tarde, trepou à árvore e, solenemente, abrindo os braços, sentiu os últimos raios de sol como se da coisa mais importante se tratasse. Depois, lentamente, olhou em volta, como se tudo quisesse absorver, e preparou-se para o último mergulho da sua vida. Foi então que, vinda das proximidades, ouviu uma voz infantil:
- Olha, avô, que ave tão grande está poisada naquela árvore! Vai voar?
O feiticeiro, incrédulo, ficou estarrecido. E só então, qual revelação suprema, percebeu donde emanava a verdadeira luz. E, descendo da árvore, correu para abraçar o menino.
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sábado, 25 de junho de 2022

ENTRETANTO

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Margarida Cepêda, As nossas teias
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Há um tempo de frenesim na vida, no nosso crescimento, como se as coisas nos escapassem por entre os dedos, fugindo à vontade de mudar o mundo a nosso jeito. Mas, plenos de energia, continuamos.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas apenas lutam para sobreviver.
Há um tempo duma suposta estabilidade na vida, em que, a pretexto de salvaguardarmos os nossos, começamos a ser condescendentes. Mas os bens materiais são o perfeito antídoto para anestesiar a consciência.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas, com alguma ajuda, apenas lutam para sobreviver.
Há um tempo em que, por mais que nos custe, começamos a envelhecer. Mas socorremo-nos de todos os artifícios para adiar o inevitável.
Entretanto, noutras latitudes, as pessoas continuam a lutar, com alguma ajuda, para sobreviver.
Há um tempo em que, por fim, nada mais há para adiar. E só nessa altura, sem nada para subornar a ceifeira, temos a plena consciência da nossa condição.
Entretanto, noutras latitudes, há muito que os contemporâneos  de nascimento foram tragados pelo inevitável. Mas, felizmente, com maior ou menor ajuda, os que restam continuam a lutar para sobreviver.
Haverá um tempo em que, para lá do tempo que foi, apenas restará a lição. Só então, por mais que doa, se evitará a contra-mão.
Entretanto...
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sábado, 5 de março de 2022

QUANDO OS DIABOS SE SOLTAM

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Hieronymus Bosch, Extracção da pedra da loucura
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Sentou-se em frente da prancha e, pacientemente, esperou que as nuvens que transportava se tornassem gotículas. E elas, paulatinamente, iniciaram o seu bailado, contrariando a gravidade, subindo e descendo, por vezes planando. Havia que agarrar a onda.
Começou a desenhar, freneticamente, o que lhe assomava da alma, qual tempestade cerebral com emergência de emergir. Procurava acudir a todos os focos, a todos os assomos, mas era humanamente impossível. E acabou por ficar um respingo duma ideia aqui, um rabisco duma ideia ali, com muito em branco por preencher. Resolveu adiar.
No dia seguinte voltou a tentar, mas o fundo em branco persistia, dando asas ao desalento. Foi então que, pela janela entreaberta, uma abelha se fez anunciar, esvoaçando pela sala, aparentemente sem rumo. Sobrevoou a prancha, poisou no cortinado e, por fim, após algum atabalhoamento, lá se esgueirou para o exterior, saindo por onde entrara. Num gesto repentino, sentindo a ideia no ar, pegou no lápis, pronto para mais um discorrer com ele próprio. Mas, de súbito, rompendo o código estabelecido, a Inês invade a sala, com ar apreensivo, balbuciando um porra entre dentes:
- Zé! A Rússia invadiu a terra da Yaryna!
Foi-se o esboço da inspiração. E ambos, ainda atordoados pela perplexidade, sentiram uma nova onda a surgir, plena de diabos. O Zé rebuscou, à pressa, qualquer tipo de comparação, e mergulhou nas ondas forjadas pelo canhão da Nazaré, aqui mesmo à mão. Mas estas, pela sua insignificância, nem sequer figuravam no mapa das coisas importantes. A nova onda seria indomável?
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domingo, 27 de fevereiro de 2022

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Para além do acentuar do poderio do sol, dono e senhor destas e doutras latitudes, com mudanças, para os mais incrédulos, em entrega personalizada, tudo parecia igual: os pardais comportavam-se como donos e senhores do território, debicando onde mais lhes aprouvesse,  as borboletas continuavam a esvoaçar sobre tudo o que encaixasse na sua química, o sino continuava a repicar às mesmas horas. Tudo parecia, enfim, no seu lugar. Contudo, algo não fazia sentido.
Lá longe, mas suficientemente perto, um louco - não dos bons, que também os há - lembrou-se de colocar em causa o equilíbrio, já precário, do planeta. E, de repente, as sirenes tocaram, as mães abraçaram os filhos com uma intensidade de quem adivinha a desgraça, os varões, embora com parcos meios, vestiram a farda da luta como se fosse a derradeira causa. Resistir é preciso, acreditam eles.
Perante a resistência, em plano ascendente, o louco persiste, obcecado, como se a sua visão fosse única. E é aí que reside o verdadeiro perigo. É que, e estamos fartos e cansados de saber, uma fera acossada é capaz das maiores dissonâncias, seja qual for o preço. Para ela, se perder, quem cá ficar que o pague.
Vivemos tempos conturbados, é verdade, daí a necessidade, cada vez mais imperiosa, do cultivo de valores como a paz, a tolerância, a esperança... E, já que a minha geração não conseguiu resolver o problema - infelizmente agravou-o, na ânsia de ter, atirando para trás das costas os sinais comprometedores - acredito, cada vez mais, em acções para que a geração dos meus filhos, já, e do meu neto, amanhã, consigam vislumbrar, na prática, os passos certos para alcançar um verdadeiro equilíbrio. Com a premência de que o futuro não é amanhã, é já hoje.
Quanto à avestruz, se sobreviver, quando tirar a cabeça da areia que apague a luz, porque tudo o que ficar não vale um pingo de alívio.
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sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A FORMIGUINHA

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É uma formiguinha peculiar. Não daquelas inoportunas, que aparecem quando menos se espera, mas das que sabem ocupar o seu lugar. E labutam, labutam, sabendo bem ao que andam.
As andorinhas já ensaiam voos de despedida, facto que não escapa ao olhar atento e sensível da nossa formiguinha. Ela sabe que tudo tem o seu ritmo, o seu equilíbrio, até a forma como andamos, como acenamos para os outros. E, fiel a este princípio, tudo faz para que a sua azáfama não caia em saco roto. Foi por isso que, de forma discreta, mobilizou quem tinha que mobilizar, de modo a que, no início deste ano lectivo, a sua escola tivesse um telhado novo. Já chegava de infiltrações da água da chuva. Valeu, e muito, que este ano há eleições autárquicas.
Na sala da nossa formiguinha tudo tem um propósito. Para além das aprendizagens curriculares,  a postura, a forma de estar e o olhar circundante são muito importantes. E, dia após dia, com os alunos, reunião após reunião, com os pais, ela insiste que, para se estar preparado para a vida, não basta debitar este ou aquele programa. É preciso ir mais longe, investir nas pessoas, fazer delas melhores seres, a cada dia que passa, possibilitar que tenham um olhar global do mundo que as rodeia. E, nesta azáfama, a formiguinha nunca se cansa: corrige, indica novos caminhos, cultiva o gosto pela leitura, pela experimentação, pelo respeito pelo outro. Não que espere alguma recompensa, que, se tal coisa houver, apenas a podemos encontrar na satisfação do dever cumprido, mas porque sente, dentro de si, que o bem carece de ser cultivado, não nasce de geração espontânea.
Visitei-a ontem, no seu local de trabalho, e o seu olhar brilhante não engana. Com esta formiguinha podemos contar, pois tem o coração em ligação directa com os olhos e com a alma.
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domingo, 12 de setembro de 2021

EM CONTRAMÃO

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Houve um tempo em que conseguia filtrar, de forma eficaz, sem grandes dúvidas, aquilo que de melhor queria para o meu percurso. Pensava que estava no caminho certo, mas as premências da actual conjectura planetária falaram mais alto, rompendo a frágil cortina com que tinha protegido o meu mundo. E, embora me tentasse debater, de forma quase primária, contra as evidências, acabei por aceitar esse facto. E a reformulação das coisas, como é óbvio, subiu à tona. E, paulatinamente, vou observando.
Apesar dum aparente retorno à normalidade, paira no ar o odor a fruta podre. As pessoas tentam sorrir, mas olham de lado umas para as outras; o mercado de trabalho, para a maioria,  está mais frágil que uma cabana de palha; o acesso à saúde, direito primário de qualquer cidadão, está cada vez mais dependente do dinheiro, ou de cunhas, que a burocracia, com listas de espera a condizer, está pela hora da morte; o desinvestimento na educação é visível, com os mais abonados a socorrer-se do ensino particular; a cultura definha, com os verdadeiros protagonistas a (quase) implorar, saltando as fronteiras da dignidade, um subsídio de sobrevivência...
Por aqui, local de poiso e abrigo, a horta e as árvores vão correspondendo, juntando as promessas aos frutos. É gratificante, mas não conseguem esconder aquilo que se passa para lá dos muros de conveniência. E eu, sensível às dores do mundo, do qual faço e farei sempre parte, não me posso alhear de tudo o que respira, de tudo o que sente. E o diagnóstico não é bom, podem crer.
Para lá de toda a angústia, e para quem está atento(a), há sempre uma história em contramão, como que a querer contrariar a desdita. E são essas que eu privilegio, contra ventos e marés, que do fatalismo dos velhos do Restelo estamos todos fartos. Acreditar (e praticar a sobrevivência) é fundamental, por mais que os gurus da desgraça apregoem o contrário. É por isso que, nos próximos tempos, irei publicar alguns textos nesse sentido. Por mais que caiam raios e coriscos, apesar de saber que, de boas intenções, com ou sem Dante, está o inferno cheio.
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domingo, 22 de agosto de 2021

INTERIORIDADES

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Margarida Cepêda, Procurando o princípio
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O ser humano, dito de forma básica, sempre foi assim: quanto menos sabe mais pensa que sabe, abrindo a porta à arrogância e às maiores atrocidades; quando, após a resolução de alguns problemas, mais pensa que sabe, sentindo-se preparado para qualquer empreitada, basta o dobrar de algumas curvas para vislumbrar que, afinal, pouco ou nada sabe, sentindo necessidade - demos graças - de bater à porta da humildade, caminho essencial para almejar alguns resquícios de sabedoria.
Dito desta forma, quase parece simples. Mas o caminho é longo, muito longo, com os escolhos populistas, os clássicos escolhos, a tentar inundar as marés. Sempre foi assim (antiga Grécia dixit), sempre assim será.
Lúcia andava desencontrada dos movimentos naturais: as marés não se coadunavam com o seu sono, a chuva caía na pior altura, os ventos desafiavam sempre qualquer oráculo para se manifestar. Apesar do avanço da ciência. Para ela, na impaciência da sua juventude, tudo era uma chatice. Nem, por um momento, lhe ocorria que era ela que tinha que se desligar dos quintais e suas proximidades, e subir ao monte mais alto para tentar apreender, para tentar conjugar a vontade dos ventos e das pessoas. Sim, porque, interiorizando bem a questão, as coisas não estavam desligadas. Muito pelo contrário.
Lúcia, após alguns conselhos de gente sabedora, verdadeira biblioteca viva da terra, subiu ao monte. Viu mais longe, isso é certo, mas nem por isso se sentiu mais apaziguada. É que, fazendo bem as contas, as batatas, as uvas, as couves, os tomates, as cerejas e outros que tais, tinham a sua razão de ser. Mas não acreditava que o João da Laurinda deixasse de andar na sua Peugeot a gasóleo, até porque isso lhe custava os olhos da cara, quanto mais um carro eléctrico, nem a empresa de autocarros, que servia a aldeia duas vezes por semana, tinha condições para aparecer de cara lavada. Custos da interioridade, diziam os políticos. Um raio que os parta, diziam os poucos sobreviventes da terra.
Lúcia desceu o monte e, ao contrário do herói bíblico, não vinha nada apaziguada. E, se revelações houvesse, apenas uma se lhe afigurava: ao contrário da Elsa, que por aqui dormia para jornadear, diariamente, até à sede do concelho, apaziguando as saudades da infância com um sentido de dever cumprido, com um ordenado confrangedor, ela iria fazer as malas para ousar enfrentar o mundo para lá do amparo dos montes maternos. Não sabia o que iria acontecer, mas luta, isso era garantido, ela iria dar. A força da interioridade assim a obrigava.
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sábado, 17 de julho de 2021

QUANDO OS SINOS AMEAÇAM COMEÇAR A DOBRAR

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Margarida Cepêda, Metamorfose e labirinto
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Sei como gostas duma canção suave, ancorada num fim de tarde apaziguador, com o murmúrio da brisa a desenhar nas árvores, por entre as aconchegantes solaridades da despedida, a tua sensação de bem-estar. Sei, mas não vou por aí.
Hoje, nem sei porquê, apetece-me falar da avidez dalgumas formigas, que tudo invadem, do escorpião que se aventura para lá da porta escancarada, das moscas que pousam em qualquer porcaria, das andorinhas que de tudo dão conta e comentam, das pombas que, contrariando a ideia do ramo de oliveira no bico, vão benzendo a terra num constante cerimonial de ácidas fezes.
Que é isso?, questionas tu. Que fel te amarga os dias para proferires tais impropérios? Não vês que, qual eterno sinal de esperança, continuam crianças a nascer?
Não, não vou mesmo por aí, nem por além. Apenas queria recordar-te que, nestes tempos conturbados e sem memória, a cantilena que nos fazem ouvir apenas nos induz ao cultivo dos extremos: ou se aplaude, com o sorriso n.º 5, ou se dá largas à vaia, com o cenho bem franzido. Com esta a ganhar por ippon, que a reputação do circo das desgraças não se constrói com falinhas mansas, apenas nos resta resistir e, em simultâneo, tentar construir algo de novo. Não há outro caminho, por mais que doa, mas o espaço e o tempo são cada vez mais curtos. E eu, que raramente rezo, tendo a tecer esboços de mil e uma orações, por entre algumas acções, que me vão rasgando os calções. Em prol das crianças que nascem, acima de tudo. Elas merecem um futuro com maior luminosidade.
Lá no alto, aparentemente indiferentes a tudo, as aves de rapina planam, ao sabor da corrente, à espera da melhor oportunidade. Elas sentem que o seu momento vai chegar.
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segunda-feira, 21 de junho de 2021

PULSANDO PARA LÁ DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS

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Margarida Cepêda, A forma é o invólucro da pulsação
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O bebé chorava, de forma desesperada, pela ausência da aura materna, enquanto o adolescente exultava, ainda que de modo incipiente, pelas mesmas razões. Um não se queria desligar, o outro começava a dar os primeiros passos para se desconectar. Ambos por necessidade.
A Rita subia, apressada, as escadas que a levariam ao miradouro, impelida pela vontade de ver e sentir quem esperava por ela. O João, num escritório dum 12.ª andar, tentava iludir os avanços da chefe. A Sílvia, enquanto abraçava a filha, pensava na melhor forma de lhe arranjar a roupa de que ela tanto carecia. O António sentava-se, quase conformado, perante os infrutíferos esforços para arranjar um novo emprego. A Eva, na casa de banho, socorria-se da maquilhagem para tentar ocultar as olheiras dum sono incerto. O Carlos, cabisbaixo, sentia que tinha que fazer o que não queria: incomodar os pais para o pagamento da prestação que se aproximava. A Nocas, entediada na espreguiçadeira, suspirava pelas festas com os amigos.
A Florbela e o Jacinto viviam no mesmo Lar, mas não se conheciam. Partilhavam, contudo, o mesmo sentir: a ausência da família, a falta de liberdade e, acima de tudo, sentiam que já não contavam. Sem se darem conta, as memórias dum ser único, a mãe, começou a povoar-lhes os dias, amaciando-os, qual porto de abrigo para os preservar daquela realidade. Mas não chegava. E o Jacinto, de tempos a tempos, com o olhar cada vez mais apagado, lembrava-se das palavras do poeta José Gomes Ferreira: viver sempre também cansa. Duma forma mais profunda, estava na hora de voltar, como canta Abrunhosa, para os braços da sua mãe.
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quinta-feira, 3 de junho de 2021

OS ÚLTIMOS FILHOS DOS RINCÕES DO INTERIOR

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Cabeço da Argemela
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Iam e vinham, sem parar, não descurando qualquer metro quadrado. Tiravam o chapéu, sorriam, apaparicavam. E as pessoas, confiantes, assinavam o papel. 
Depois de eles saírem, embrulhados em gentilezas mil - ainda havia uma ponta de reserva, rebuscada lá no fundo de quem pouco percebeu, mas acreditar fazia parte da sua herança - parecia que o mundo ia mudar para muito melhor. Mas não. Era apenas um plano estratégico a avançar, imune a qualquer sentimento humano.
Quando se deram conta, feitas as mudanças convencionadas, havia uma barragem, uma mina de lítio a céu aberto, uma zona privada de caça, ou outra coisa qualquer, no lugar onde dantes eram as suas casas e os seus terrenos de cultivo. Apareceram algumas organizações a contestar, é verdade, mais uns políticos candidatos a qualquer coisa, mas tudo se esqueceu depois das fotografias e das filmagens da praxe. Já tinham o que queriam.
Alguns, moldados na dureza da vida, choraram pela primeira vez desde que se sabiam adultos. Tinha-se esboroado a fé na palavra de honra dos homens, cultivada, desde sempre, no seu rincão natal, cavando um abismo irremediável na tranquilidade da sua velhice. Acabara-se o olhar de frente, com um discreto brilho nos olhos, instalara-se a luz mortiça de quem baixa a cabeça. Para sempre.
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sábado, 20 de março de 2021

LEVAS-ME CONTIGO?

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Margarida Cepêda, Inquietação e segurança
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A acção decorre na passada semana, última do confinamento dos alunos do 1.º Ciclo, numa sala de Acolhimento para filhos de trabalhadores da linha da frente. Com toda a gente mascarada, note-se.
A Marisa, vamos chamar-lhe assim, era uma das frequentadoras, e fazia-se notar por apresentar alguma relutância em deitar mãos às tarefas que lhe estavam destinadas, após as sessões síncronas com a sua professora. Argumentava, empatava, tudo lhe servia de argumento para não deitar mãos à obra. E tudo indicava que o seu comportamento se tornaria padrão.
Eu era presença recente naquela sala, mas depressa a Marisa se fez notar aos meus olhos: pelo que ela não fazia, pelo que ela desafiava. E aceitei o repto.
No início, com as devidas meças a um novo interveniente, ela fez-se de nova, reagindo com cautela. E, embora fosse concretizando qualquer coisa, tudo o que produzia era sempre cadenciado por pausas mil, inquirindo por tudo e por nada. Mas sempre com um olhar atento, como se medisse a intenção de quem a solicitava. Mas eu tentava, cabriolava, tentava seduzir. E assim se passou um dia, dois dias...
Entretanto, e atendendo à minha preocupação, fiquei a saber, por consultas várias, que havia indícios de que, na família dela, talvez houvesse violência doméstica. Um talvez que me soube a escusa, a falta de envolvimento. Mas desta faceta dalguns seres já eu estou vacinado.
A meio da semana, quando tudo parecia mais do mesmo, a Marisa chamou-me. Aproximei-me, solícito, para indagar daquilo que ela carecia, e ela fez um gesto, aparentemente natural, a pedir aproximação. E eu correspondi. De repente, quando nada o fazia pressentir, ela pega na minha mão e, qual gesto dum qualquer activista, resgata-a para debaixo do seu braço direito, enquanto a aperta com a sua mão esquerda. Depois, reclinando o corpo de encontro ao meu braço resgatado, como se fosse um apoio, liberta a sua mão direita e começa a escrever ininterruptamente, qual dealbar dum barco em porto seguro. E eu, atónito, assistia àquele inesperado fervilhar de vida.
A Marisa prosseguiu na escrita, convicta, mas às tantas, sem nunca me olhar nos olhos, diz-me, num tom íntimo, quase discreto:
- Levas-me contigo para a tua casa?
Ainda esbocei "a tua mãe ficava tão triste, Marisa", mas nada que eu dissesse me faria apagar o impacto dum pedido tão espontâneo. E, apesar do contentamento pela confiança depositada, um aperto devassou-me as entranhas, trespassado pelo grito interior de tantas marisas, pelo desespero de tantas mães.
Para lá das máscaras, a vida, por vezes, é mesmo madrasta.
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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

DESENHAR RUMOS: MAL-ME-QUERES OU BEM-ME-QUERES?

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Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
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Para o/a futuro/a dirigente com que todos ansiamos
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Quando as ondas pareciam tudo devastar, elevando a crista, saías do teu modo discreto e, perante o clamor, juntavas tudo à tua volta e começavas a contar uma história, a história da gente. 
O ritmo era pausado, mas melódico, como se, naquele momento, fosses o centro do mundo. E eras, embora não o quisesses.
As ondas, por fim, começaram a baixar, e, apesar do campo que se abria de fáceis promessas, nem assim baixaste a guarda. Embora preferisses refugiar-te na penumbra, continuaste a transportar a plateia pelos caminhos da serenidade possível, enquanto os cenários dramáticos se dissolviam nas vagas, cada vez mais frágeis.
Então, pressentindo a trégua das nuvens negras, pausavas ainda mais a voz, sorrias, e apelavas à reconstrução. E, como que por magia, quase todos te pareciam ouvir, imbuídos de esperança, apesar de saberem da efemeridade das coisas.
No dia seguinte, para  melhor perceberes o sentir da tua gente, começaste a receber, para as ouvir, algumas pessoas. E, para admiração de muitos, os primeiros foram os dissonantes. É que, daí o teu gesto, tu tinhas bem presente que, para seguirmos o rumo certo, não podemos pretender que todos entoem a pauta da vida a uma só voz.
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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

EU NATALICIO, SEM PINGA DE PAPEL DE EMBRULHO. E TU, APARENTEMENTE DE BEM COM O MUNDO, FAZES O QUÊ?

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Imagem retirada do google
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Rebusco, em jeito de retrospectiva, em 2009 e, sem surpresa, qual eterno pesquisador, resgato palavras como se fossem pedras em eterna combustão. Afinal, sem qualquer admiração, e apesar da presença do bicho, nada mudou.
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Aproximou-se e, com ar de quem sabe o que está a fazer, levantou a frágil tampa. Lá dentro, no meio dos detritos da abundância, uma ideia desprezada debatia-se, inconformada com a inevitabilidade dos tempos. Pegou numa velha vassoura e varreu a zona contígua ao contentor, tornando-o a estrela do beco. Então, com a solenidade de algo que contivesse a maior premência, pegou numa placa, virou-a e escreveu algo no verso. Depois de a colocar de modo a nela incidir a luz do candeeiro, afastou-se do local.
Quando os almeidas saltaram do camião para recolher o lixo, depararam com uma placa onde, em letras gravadas a fogo, se podia ler: "AQUI AGONIZA O ESPÍRITO DE NATAL".
Naquela noite, no desconcertante beco, o lixo ficou por recolher.
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O tempo passou, de melhorias do beco nada constou. E assim penamos, colados na TV, no Twitter ou no Face qualquer coisa, como se dali algo de bom pudesse advir, para lá de nós.
Continuamos tolos, como sempre, assim registou o cronista. Para que conste.
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sexta-feira, 16 de outubro de 2020

UMA ILHA DE M...

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Passas por mim uma, duas, três vezes e, inevitavelmente, reparo nas tuas passadas. És alguém que acredita que, para além das amarras da luta pela sobrevivência, é bom andar ao sabor do vento, sem grandes preocupações, como se, a partir do metafórico apito da sirene, pudesses navegar para uma ilha só tua. Se alguém quiser mudanças, que lute.
Estás enganado, já há muito que as ilhas estão todas monitorizadas, até as do pensamento. Sabes, já que não te queres fazer ouvir, a única forma de passares despercebido é disfarçares-te de lixo. Há tanto por aí que, com toda a certeza, encontrarás a tua ilha no meio de tanta porcaria. Não sei se isso te diz algo, mas haverá sempre alguém que diz não.
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terça-feira, 8 de setembro de 2020

ELAS

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Margarida Cepêda, A forma é o invólucro da pulsação
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Começaram por, sendo muito, ser pouco mais que nada.
Resistiram como rocha para lá de tântrica, indestrutível na resiliência, intuindo sempre a melhor saída para contornar a força máscula.
Foram, a pouco e pouco, ganhando espaço, principalmente em meios onde se cultivava a lucidez, a inteligência e o bom senso, para o qual investiram de forma discreta. Continuavam a ser olhadas como acessórios, mas começavam a fazer sentir a sua voz. E, aproveitando uma aberta aqui, outra ali, começaram a votar, a frequentar universidades, a escalar cargos de responsabilidade, provocando ondas de choque que abalaram ideias feitas.
Hoje, libertas de amarras, elas chegam-se à frente no assumir dos novos desafios globais e, apesar das resistências, começam a rir-se das competências dos seus comparsas do género oposto, eternos meninos mascarados de guerreiros, à boleia duma condescendência de séculos.
Eles, em momentos de desafio, costumam encher o peito, como se a honra se medisse em testosterona, mas já há muito, de forma subtil, que perderam o confronto. Desta forma, jamais jantarão o coração delas.
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É urgente outra via, eu sei. Eles que cresçam e... talvez se almocem e se jantem mutuamente. O mundo agradece.
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sábado, 5 de setembro de 2020

OLHAR DO ALTO DA MONTANHA

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Margarida Cepêda, Procurando o principio
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Pareciam vir de longe, mas já se tinham instalado há muito. Trouxeram, consigo, novas formas de ser, novas formas de estar, irrompendo nos preconceitos de quem estava. 
Houve embate, houve controvérsia, mas, após algumas desavenças, as novas gerações, de ambos os lados, acabaram por selar a concórdia. E criaram novas canções, novas danças, novas histórias...
Em nome da união, preciosidade a defender, prescindiram de subir às montanhas para ver ao longe, não se abeiraram do mar, a grande mãe, para perceber melhor a profundidade das coisas. E seguiram, muralhando-se. Hoje, unificada a forma de estar, continuam a olhar para quem chega como um corpo estranho, sujeito às mais variadas provas para ser aceite. No fundo, apesar de se considerarem na senda certa, continuam a ser uma ilha, sujeita às mais diversas intempérie de tudo o que é desconhecido. 
Cometendo os mesmos erros de outras eras e de outras latitudes, crêem-se donos da verdade. Mas, por mais defesas que criem, por mais demagogos que elejam, o mundo irá sempre ter com eles, derrubando muros de papel. É que, para lá de palavreados fáceis, a nova filosofia, a irromper, discreta, mas com a força do inadiável, precisa de todas as cores para se multiplicar e assentar. Talvez, então, entendidas as crenças de todos os lugares, com um especial olhar sobre as coisas naturais, consigamos discernir o melhor rumo para o nosso futuro.
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terça-feira, 21 de julho de 2020

TEMPO SEM TEMPO

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Salvador Dali, A Persistência da Memória
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A canícula tem sido inclemente, tolhendo gestos e pensamentos, configurando um galinheiro em estado de sítio, com as galinhas a perderem o norte. Mas eis que, repentinamente, os deuses se compadecem, e enviam uma chuva apaziguadora, entremeada de raios e trovões, qual recado para os pretensos donos dum qualquer galinheiro.
A vida quer-se simples, apregoa o filósofo da reconciliação, mas isso dá uma trabalheira danada. E, pondo de lado qualquer reflexão, condição mínima para qualquer tentativa de evolução, dá-se primazia ao grito, à vitimização, tentando condensar a razão de ser aos gestos mais básicos e mais boçais. Dizem-me que é assim, que é da natureza humana, mas tenho dificuldade em aceitar essa argumentação. É que, para lá do básico, há sempre uma margem de progressão, alicerçada em princípios nobres e elevados, assim nós o queiramos. É uma luta dura, eu sei, uma luta de sempre. Com avanços e recuos. E não é à toa que, no mundo em que vivemos, emergem, ciclicamente, figuras de banda desenhada, ou de qualquer má ficção, como Trump, Putin, Bolsonaro, Kim Jong-un...
Voltemos à chuva benfazeja, permitam que me centre na minha horta. Ela sofreu, há tempos, um forte revés, mas, a pouco e pouco, começou a renascer, produzindo tomates, curgetes, pepinos, alfaces, cebolas, pimentos... Como em tudo, há que dar tempo ao tempo. E o gozo que me dá, depois da rega, colher esta ou aquela espécie para abastecer a cozinha!
Infelizmente, vivemos num tempo em que todos parecem querer tudo para hoje, olvidando as memórias, individuais e colectivas, de como se chegou até aqui. E exigimos, exigimos cada vez mais, como se tudo viesse dum saco sem fundo.
Agradeço aos deuses a chuva retemperadora, propícia a uma pequena pausa, mas ela não esbate a evidência: olhar para o nosso ego, continuamente, sem nos preocuparmos com a visão e o bem-estar dos outros, vai acabar por dar cabo de nós, sejamos bons ou maus. Sem excepção.
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