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quarta-feira, outubro 01, 2025

ASSATA SHAKUR, ANA MARIA MACHADO, TERESA COLOMER & USINA GASTRÔ

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Anavitória (2016), O tempo é agora (2018), N (2019), Cor (2021) e Esquinas (2024), do duo musical Anavitória, formada em 2014, dupla formada pela cantora, atriz, compositora e multi-instrumentista Ana Caetano (Ana Clara Caetano Costa) e pela cantora e atriz Vitória Falcão (Vitória Fernandes Falcão).

 

Uma vez o amor... ou a maldição de Kalypso!... - Era uma vez e só agora, quantos desastres: o milagre da vida aos solavancos. Sequer cogitava: fui condenado ao naufrágio pelas moiras. Podia ser, talvez a pior coisa do mundo - dilacerado pelos dilemas com os farrapos de tudo que ficou para trás. Havia me perdido das rotas e fiquei à deriva por uma novena. A sobrevivência por calafrios e frêmitos imensuráveis: havia sofrido uma devastação demolidora, maior adversidade. A sorte fora do alcance, ali pereceria inevitavelmente. Inesperadamente, uma bela sílfide sedutora materializou-se; engatinhava nua para me salvar do precipício de Poelenburgh. Confiei nos seus gestos generosos, deram-me a impressão duma sacerdotisa guardiã de sagrados mistérios. Refeito da agonia, ela recepcionou-me descalça, já com as vestes de Westall. Tomou-me pelas mãos e me guiou por uma espetacular paisagem: era o éden terrestre. A entrada da sua morada era cercada por um bosque com uma fonte e, para quem nunca usufruiu de milagres caídos do céu, ali era tudo colossal. Adentramos numa gruta profunda com amplos salões abertos para jardins paradisíacos, um bosque sagrado com grandes árvores e fontes sinuosas entre a relva. Logo fui envolvido pelas fragrâncias do cedro, sândalo e zimbro que dali emanavam. Pude ver ninfas em todas as dependências e cantavam enquanto fiavam e teciam. Fui, enfim, acolhido em sua morada. Acomodou-me, estava exausto. Logo senti seu vulto ao meu redor e lambeu minhas feridas, acariciou minhas contusões, serviu-me ambrosia. Onde estou? Ogígia. Sim? Você naufragou, Odisseu. Quem? Você penou demais, perdeu a memória, relaxe. E quedei inebriado por um sonho enfeitiçante. Despertei com o perfume de suas carícias benfazejas. Quem é você? Sou Kalypso, a ninfa do mar. Sabia: o seu nome escondia a deusa fiandeira e o seu poder sobre a vida e a morte de todos os seres e coisas. Sua beleza encobria a prisioneira da Titanomaquia. Seus olhos ocultavam o banimento das Oceânides e a solidão eterna. Não resisti à sua tentação. Fui impelido aos regalos e em seus braços nus muito apetecia a vida flutuante nas nuvens. Nossos corpos eclipsaram embalados pelo amor na Gruta de Brueghel. Ela espalmada sobre mim, como se eu fosse as águas de Oxer. E em mim mergulhou como na cena de Vecchiato por muitos dias e noites infindas. Repleta de satisfação, ela estirou o braço e alcançou uma estrela de 6 pontas para me presentear: era a promessa de me seguir aonde fosse e por todos os confins. E mais: prometeu a juventude eterna e a imortalidade. Escolheu-me por consorte e ao violino me embalou seminua na pose de Baecker. E me ofertou as costas na pose de Golovin, na Isle de Draper, na verdade seminua com as vestes de Styka. Enquanto tecia e fiava, ela cantava e me seduzia como na Odisseia de Homero. Passados sete anos e, numa tarde mormaçada, me dissera que Poseidon acalmara a sua ira. Nada entendia, nem queria entender. Saímos do meu refúgio na ilha e ela me levou pelo Estreito de Gibraltar, extremo norte marroquino. Ao chegarmos ao monte de Jbel Musa, suas vestes eram pentimentos reveladores, um caleidoscópio de minhas vivências passadas. O que tudo aquilo queria dizer? Disse-me atender o pedido de Athena e, abruptamente, a vi enfurecer-se, afastando-se à beira da loucura, a ponto de tentar se matar. Que foi que houve? Socorri. Fitou-me compenetrada: Sou imortal, só sofro a saudade de amor não correspondido. Não é verdade! Revelou-me sua maldição, o coração partido de divindade abandonada. Como? Não recorreu aos feitiços e obrigou-se a me despedir de nossos filhos: Nausítoo, Nausínoo e Latino. O que é isso? Ofereceu-me jangada e provisões, um retorno em segurança. Por que? Caí na real: eu não era Odisseu nem Telêmaco de Fénelon. Então, depus meu confiteor: Sapere aude e Horácio apareceu para me mostrar o ônfalo: Aqui é o centro da Terra, a ilha de lugar nenhum. E desapareceu imediatamente. Ela então mostrou-me a ponta aguda do infinito: estava condenado à esperança. Obstinei e me perdi pela grandeza do sonho: pensei por ela e todas as coisas. Seja lá o que for, a cada um a sua provação e um grande amor. Até mais ver.

 

Violeta Parra: Não chore quando o sol se for, porque as lágrimas não deixarão você ver as estrelas... Somente o amor com sua ciência nos torna tão inocentes... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Anne Rice: Ignore qualquer perda de coragem, ignore qualquer perda de autoconfiança, ignore qualquer dúvida ou confusão. Siga em frente acreditando no amor, na paz, na harmonia e em grandes realizações. Lembre-se de que a alegria não é estranha a você. Você está vencendo e é forte. Ame. Ame primeiro, ame sempre, ame para sempre... Veja mais aqui & aqui.

Heather Thomas: O que a escrita faz é permitir que você crie o mundo inteiro, crie uma história inteira, um ponto de vista, uma mensagem, uma experiência... Criar algo completamente diferente acontecendo... Veja mais aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

AFIRMAÇÃO - Eu acredito no viver. \ Eu acredito no espectro \ dos dias Beta e do povo Gama.\ Eu acredito no brilho do sol. \ Em moinhos de vento e cachoeiras, \ triciclos e cadeiras de balanço. \ E eu acredito que sementes tornam-se brotos. \ E brotos tornam-se árvores. \ Eu acredito na mágica das mãos. \ E na sabedoria dos olhos. \ Eu acredito na chuva e nas lágrimas. \ E no sangue do infinito. \ Eu acredito na vida. \ E eu vi o desfile da morte \ marchando pelo torso da terra, \ esculpindo corpos de lama em seu caminho. \ Eu vi a destruição da luz do dia, \ e vi vermes sedentos de sangue \ sendo adorados e saudados. \ Eu vi os dóceis tornarem-se cegos \ e os cegos tornarem-se prisioneiros \ num piscar de olhos. \ Eu andei sobre cacos de vidro. \ Eu admiti meus erros e engoli derrotas \ e respirei o fedor da indiferença. \ Eu fui trancafiada pelos injustos. \ Algemada pelos intolerantes. \ Amordaçada pelos gananciosos. \ E, se tem alguma coisa que eu sei, \ é que um muro é apenas um muro \ e nada além disso. \ Ele pode ser posto abaixo. \ Eu acredito no viver. \ Eu acredito no nascimento. \ Eu acredito na doçura do amor \ e no fogo da verdade \ E eu acredito que um navio perdido, \ conduzido por navegantes cansados e mareados, \ ainda pode ser guiado à casa \ para atracar.

AMOR - Amor é contrabando no Inferno, \ porque amor é um ácido \ que corrói grades. \ Mas você, eu e amanhã \ damos as mãos e fazemos promessa \ que a luta irá multiplicar. \ A serra possui duas lâminas. \ A espingarda possui dois canos. \ Nós estamos grávidas da liberdade. \ Nós somos uma conspiração.

Poemas da escritora e ativista estadunidense Assata Olugbala Shakur (JoAnne Deborah Byron – 1947-2025), que foi ex-membro dos Panteras Negras (BPP) e do Exército de Libertação Negra (BLA).

 

O CANTO DA PRAÇA - [...] As palavras podem ser tudo [...] A expedição que resgatou esse material era formada por curiosos, de boa vontade, mas sem qualquer conhecimento arqueológico especializado. Por isso, não chegaram a anotar direito o local de sua descoberta, que permanecerá ignorado para sempre. Outra coisa que também nunca foi devidamente esclarecida a respeito desse achado é a sua época. É claro que tudo foi cuidadosamente estudado. Quando a caixa chegou, os sábios foram chamados a examiná-la e resolveram levar tudo — caixa e conteúdo — para seus gabinetes de trabalho, para que pudessem analisar a descoberta com todos os recursos de que dispõem. Fizeram os testes de carbono, carvão, açúcar e diamante. Mas os resultados foram, no mínimo, desconcertantes. Acabaram chegando à conclusão de que havia objetos de épocas tão distintas que se tornava impossível precisar a ocasião exata em que tinham sido enterrados. Na caixa havia recortes de jornal, velhos pergaminhos, máscaras de carnaval, um filme de Carlitos, uma flauta de madeira, uma caixa de lápis de cor, sapatilhas de balé, um lenço bordado, um violino, um sintetizador, um cavalo de carrossel, um cocar de índio, uma máquina fotográfica, uma caixinha de música, revistas em quadrinhos, uma pombinha de barro. Na tentativa de compreender o significado de todos esses objetos, os sábios consumiram semanas em ininterruptas discussões e especulações. Como não chegaram a nenhuma conclusão, decidiram introduzir todo o conteúdo da caixa, além da própria embalagem, numa engenhoca fantástica que estão desenvolvendo, uma espécie de aparelho mágico, máquina mirabolante, instrumento maravilhoso, algo assim. Mesmo com o risco de destruir tudo na experiência. Só que não se destruiu. Construiu. Quando a engenhoca foi ligada, nela se acenderam luzes belíssimas, dela saíram vapores de perfumes deliciosos, em volta dela se ouviram sons que só podem ser as tais harmonias celestiais de que tanto se fala. E, de repente, por uma abertura da máquina, como se ela fosse uma mulher parindo, saiu um livro. [...]. Trechos extraídos da obra O canto da praça (Salamandra, 1993), da escritora, jornalista, professora e pintora Ana Maria Machado (Ana Maria Martins Machado), autora de obras como Alice e Ulisses (1984), Aos quatro ventos (1993), A audácia dessa mulher (1999), Canteiros de Saturno (1991), Contra corrente (1999), Democracia (1983), O mar nunca transborda (1995), Para sempre (2001), Recado do nome (1976), Tropical sol da liberdade (1988), Um mapa todo seu (2015) e Vestígios (2021), entre outros. Veja mais aquí.

 

ANDAR ENTRE LIVROS - [...] não deixei de confiar nos livros como os melhores colaboradores dos professores na educação leitora e literária de seus alunos. A leitura de livros é o ponto de intersecção entre leitura, literatura infantil e juvenil e ensino de literatura [...] esclarecer as discussões, as interrogações e os critérios que influenciaram a presença, a seleção e a leitura de livros nas aulas [...] Interessa-nos a escola como instituição que outorga um sentido específico à leitura de obras [...] Também nos interessam os leitores como pessoas, que desenvolvem suas capacidades e competências literárias [...] nos interessam os livros da perspectiva de seu apoio a esse percurso [...]. Estimular a leitura e planejar o desenvolvimento das competências infantis são os dois eixos da tarefa escolar no acesso à literatura. [...] deve responder à conexão entre a capacidade de recepção e de produção literária, entre a recepção do texto e a elaboração de um discurso analítico e valorativo sobre ele, entre a interpretação do leitora e os conhecimentos que a tornam possível, entre a educação linguística e a educação literária, entre os aspectos linguísticos e os aspectos culturais que configuram o fenômeno literário ou entre a literatura e os restantes sistemas artísticos e funcionais que existem nas sociedades atuais. A leitura de obras literárias integrais é uma atividade que se situa no centro da tarefa de alcançar esses objetivos do modo mais amplo possível, tanto em profundidade quanto em extensão social. E o desejo de todos é que os ivros e os professores trabalhem juntos para consegui-lo. [...]. Trechos extraídos da obra Andar entre livros: a leitura literária na escola (Global, 2007), da premiada professora espanhola Teresa Colomer, coautora da obra Ensinar a ler, ensinar a compreender (Penso, 2003). Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

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segunda-feira, setembro 01, 2025

ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite, que possui mestrado em Performance Musical da Manhattan School of Music, em Nova York (EUA), com bolsa integral da Sociedade Cultura Artística. É doutoranda em Performance Musical pela Stony Brook University, instituição de Nova York (EUA). Ela é considerada um dos maiores prodígios contemporâneos no instrumento pela crítica especializada, figurando na lista Under 30 da revista Forbes, como destaque na música brasileira em 2020.

 

Dermeval: É melhor deixar pra amanhã, ou pra lá de vez... - Desde menino se remexia todo – quando não se contorcia, se balançava no gingado: brincava carnavalizante, aos giros ritmados foliava, pulava doidejantemente. Adolesceu meneando-se e, logo cedo, arrumou seus muafos e ganhou o mundo como um novilho de ponta limpa. Via de tudo e passou só pro que gostava: bailava ao seu modo, com declamações de versos e hestórias. Haja causo no sapateado do trupé. E era andejo mesmo. E tanto que logo ajeitou-se com Macrina, no meio duma noite deserta. Fugiram saltitantes pro Mar Negro e se arrearam ascetas. Ela então o conduziu ao culto de Terpsícore, a musa da dança, envolvendo-o com sua lira na ambrosia da alcova, festejados pelas sereias do rio Aqueloo. Ao despertar a solidão era seu domicílio, por dias e noites. Foi socorrido pela amabilidade de Paula, a outra irmã dela, que o levou à Baía de Bengala e lá recebeu de Shiva Nataraja o cajado de Okó e se amaram na dança cósmica. E rodaram entre sonhos e madrugadas, até a surpresa dum amanhecer ao lado de Olympia de Manet, a terceira irmã, que o levou à deusa Hathor no Templo de Dendera, com seu disco solar e chifres bovinos roçando a caixa dos peitos. E viu-se enrolado nos seus 7 Hatores, tomado pelo Olho das 4 Faces. A bem-amada celebrou como uma vaca e deu-se à cópula feito a Leoa Sacmis, no Conto de Fadas da Noite de Hoffman. Ali tornou-se o Homem de Areia e ela não mais: Cadê-la, hem? A surpresa foi renovada com Marietta, a Maria Baderna, como se fosse a deusa Laka, pronta para a dança de Hula. De mãos dadas foram conferir os vestígios da coreografia na gruta de Tuc d'Audoubert. De lá seguiram pelas rochas do Les Trois-Frères, aos movimentos dançantes pelas margens do Arièges. Com ela o devaneio duradouro de ser dançarino de nascença nas reencarnações de Parvati e, com ela, a xamã no ritual Kagura. E a fantasia o fez Don Lockwood como um cavaleiro domado pela paixão da Kathy Selden, na cena do bolo! Pra ela ele já era Gene Kelly, e aos píncaros da gloria o fez Fred Astaire. Era o ápice! Daí foram juntos pro Prelúdio do Fauno de Debussy no poema de Mallarmé e viram primeiro a arte de Nijinski, seguido da coreografia de Nureyev pro mesmo tema, afora o bônus das tantas piruetas do Quixote de Baryshnikov. Ali olhou pra ela e sorriu: Dá pra mim não, o que vão dizer lá em casa, ora! Tirante o balé, com ela dançou de tudo. E começou pelos lundus, só na umbigada de roda: Uê, uê... uê, uá... Uê, uê... uê, uá... A lua vai saí e eu vô girá. Vou caçá meu tatu, meu tamanduá... Depois se perfilaram enfileirados na da peiga, na do Peixe a pira-purasseia; na do Tipiti e na do pau-da-fita: Dança, dança, dançador \ dança com muito valor \ dancemos todos juntos \ cada qual com seu amor... Assim se embalaram na do Lelelé (aquela mesma do péla-porco, do Lelé), na do Tambor-de-Mina (e de-Crioula), na do Espontão, na do Chapéu e na de São Gonçalo: Chega, chega, companheira \ que já estamos empareada \ pedindo licença pro santo \ para a primeira jornada... Quem não canta nem dança \ o que veio buscar? \ só veio comer arroz \ e beber o aluá... E se encararam na do Divino, tudo pelas ruas, lama e sarjetas, aos gritos pela abolição, grevistas e a febre amarela no coro dos baderneiros de todas as plateias: Mané gostoso, perna de pau, salta da cama e cai no girau... Daí em diante ele perderam-se e ele tomou nas cuias dos quiabos: macambúzio solitário ao lado de uma trapezista ao desafio: Vai ou não? Fez sapateado até na corda bamba, equilibrista só no golpe de vista. E ficou na pestana da barata, catando os trapos. Peito apertado, aguçou sua espiritualidade: Deus dançava na sua paz interior e sorria. Valia-se de Nietzsche. Aprendia sozinho a mexer os pés como Hermes no mito de Odissi. E celebrou a imagem de Peratus (o Eratus) e tornou-se o andarilho de Copenhague - como se fora Kierkegaard, a decorar o Diário de um Sedutor. Recitava poemas de Byron ao se recolher no Walden de Thoreau. E lá todas as Cartas do Eremita em Paris, de Calvino. E se viu entre os Andarilhos de Coetzee, e se reencontrou com Leloup e os padres do deserto, no Monte Athos. Aprendia de si com Isócratis e Diógenes que era gago. Fez-se entusiasta de Cícero – aquele mesmo, Marco Túlio Cícero, de saber de cor as suas cartas descobertas por Petrarca. Proferia em seus monólogos públicos trechos do Alcorão, do Mahabarata, do Rigveda, dos Upanishads, das Mil e Uma Noites, do Decamerão de Boccaccio, do Satyricon de Petrônio, muitos sonetos de Shakespeare e os tantos de Manuel Bandeira. Foi num solilóquio crepuscular, quando menos esperava, passou-lhe às vistas uma beldade que ensaiava trôpega a Dança dos 7 véus, da ópera Salomé do Strauss. Eita! Enrabichou-se todo dela quase escapulir; nada, ela ia passando de nem vê-lo, indiferente, aí providente deu-lhe uma mucica dela chega arrear-se toda se encostando no passo da Jardineira - a que era a mesma de Cupido ou Arco de Flora -, e ela faceira: Eu sou uma jardineira \ que ando com meu regador \entre perpétuas e boninas \ rosa é a rainha das flores... Era Esmeraldina e com ela foi ao clímax: a dança dos tangarás. Dali foram parar no Santuário de Ise orando pela Paz Mundial e seguiram pela estrada da peregrinação do Furuichi, só para amanhecerem na folia da deusa Ame no Uzume atraindo Amaterasu. De lá foram para Madurai e, no Templo Meenakshi Amman, viram-se envolvidos pelos 4 braços da deusa Parvati, revelando-lhe a reencarnação da deusa Sati no Himalaia. Seguiram pelo rio Ganges porque ela agora era a sua divina Shákti. E remexeram juntos Odissi nos templos de Odisha e ambos os corpos contavam hestórias sobre as águas do Maniari, no Chhattisgarh. Aos versos se casaram e ela, a sua bela quetzalizti dos olhos de maracujá, tornou-se o orvalho de maio na preciosa ourivesaria barroca do Tesouro de Munique. Ela amarrou seu símbolo no braço esquerdo dele e pôs em sua língua a sua pedra úmida, aquosa e lunar - regenerava a vida dele com sua alma verde translúcida. Ela lavou-o com sua chuva e a luz percorreu todo o sangue dele pelo Oeste do mundo. Ela plena e primaveril deu-lhe as virtudes afrodisíacas de Rabelais e a pedra do Hermes na Tábua de Apolônio. O seu orvalho mercurial traspassou as densas trevas para presenteá-lo com o segredo da criação e de todas as coisas. Com seu talismã poderoso o protegeu das criaturas infernais, afastando víboras e najas e o feitiço das paixões prisioneiras. Deu-lhe enfim a sua divina homeopatia, o Graal e a imagem presente do Criador. E com ela avexou-se, arrumou sua loca - uma mei’água pra guardá-la e cuidar dos filhos. Tornou-se carteiro, pés prum lado, passadas proutro, caminhante das boas e más notícias. Era o que queria. De noite, no lar, emocionava-se com a Ardiente Paciencia de Skarmeta. E com a sua dama a rodopiar no salão: Maxixe é dança levada, toda cheia de caídos, em que a mulata é danada e o homem é todo mexido! Depois um tango, Por uma cabeza, de Gardel. Os filhos dormiam e mandavam ver com salsas, frevos, boleros, forrós, sambas de gafieira, bachata, foxtrote, quickstep, zouk, lambada, mambo, Chá chá chá, merengue e o escambau. Até inventaram algumas novas e próprias: a vida era deles. De dia, as correspondências eram entregues em troca de poemas, expondo a sua imensa coleção de terno e gravata: era vê-lo aos sapateados pelo meio fio das calçadas esperando a chuva chegar para dar seu espetáculo no acerto da bengala – Diziam: Aquilo é a arma do Mandrake, meu! Hehehehe. De noite, aos braços da amada, o embalo do amor. A quem perguntasse, respondia com um gole de café forte e amargo: Sou apenas um preto-velho, chamo-me Dermeval, o senhor indígena das ervas, um dançarino poeta. E todo casamento não podia faltar nem ele nem a Wedding March in C major de Mendelssohn; não havia baile de debutante sem ele e as Valsas de Strauss; não havia evento no coreto do centro da cidade sem seus elóquios ao som do maestro Zé da Justa & Orquestra 15 de novembro; muito menos festa no Club Litterário sem seu sarau e seus louvores poéticos. Preferia dançar e trabalhar a ter de encarar a miséria, a repressão e o irrespirável ambiente ao seu redor: a fuligem da usina explodia pulmões. Mantinha-se com seu atencioso senso paternal, apegado à família. Orgulhava-se de nunca ter tido de voltar atrás com nada, sempre ocupadíssimo, independente, equilibrado, perspicaz, controlador ao seu modo, espiritualizado – a dança levou-lhe a venerável maçon, imponente, reservadíssimo. Era um cavaleiro andante que viajava a pé, sempre no passo do jocotó e recitando umas quadrinhas. Como se dizia comumente por aqui: Era um digno homem de gravata lavada! Era o poeta no país das mil danças e sorria: Tudo o mais, ficará pra depois. Encontrei-o quase centenário – dizem que ele já passou e muito disso uns 2 séculos atrás. A mesma bengala lustrada, o mesmo riso terno, a mesma pose de fidalguia calma bem trajada e a sabedoria vivíssima na maior lucidez. Como vai, Dermeval? Esperando a morte, meu filho. Que é isso, homem? Melhor deixar pra morrer amanhã, né? Nada: a gente tem muito pra fazer, meu velho e bom amigo. Então, vamos e deixa o resto pra lá. E lá ia de vê-lo às costas de menino treloso, o peso da vida de todo planeta. Até mais ver.

 

Marilena Chaui: Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até à loucura e odiamos até a morte: nosso ser está em jogo em cada e em todos os afetos. Desejo é paixão, diziam os clássicos... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Jennifer Egan: Vivemos em um momento e uma cultura em que a leitura está realmente em perigo. Não há como escrever bem, se você não está lendo bem... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Han Kang: O amplo espectro da humanidade, que vai do sublime ao brutal, tem sido para mim como uma difícil tarefa de casa desde a minha infância... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

I - Sentir qualquer coisa te perturba. \ Ser visto sentindo qualquer coisa te desnuda. \ Sob o domínio disso, prazer ou dor não importam. \ Você pensa o que eles farão, que novo poder eles adquirirão se me virem nua assim. \ Se eles virem você sentindo. \ Você não tem ideia do que. \ Não se trata deles. Ser visto é a penalidade.

II - Como seria viver em uma biblioteca de livros derretidos. \ Com frases escorrendo pelo chão e toda a pontuação arrumada no fundo como um resíduo. \ Seria confuso. \ Imperdoável. \ Uma grande aventura.

Poemas da premiada escritora canadense Anne Carson, autora das obras Red Doc (2013), Autobiography of Red (1998), Plainwater: Essays and Poetry (1995), Glass, Irony and God (1995) e Eros the Bittersweet (1986). Veja mais aqui & aqui.

 

O ÂMBAR DA LATERNA - […] É sempre preciso mais energia para unir e construir do que para destruir [...] Não é com aqueles que parecem diferentes de você que você deve ter cuidado. São aqueles que parecem humanos [...]. Trechos extraídos da obra The Lantern´s Amber (Random House, 2019), da escritora estadunidense Colleen Houck, autora de obras como Tiger's Curse (2011) e Tiger's Quest (2011).

 

DEIXE PRA LÁ - [...] Meu ponto é simples: os adultos terão opiniões negativas sobre você e tudo o que você faz. Deixe-os julgar. Deixe-os reagir. Deixe-os duvidar de você. Deixe-os questionar as decisões que você está tomando. Deixe-os estar errados sobre você. Deixe-os revirar os olhos quando você começar a postar vídeos online ou quiser reescrever o manuscrito pela 12ª vez. Em vez de perder tempo se preocupando com eles, comece a viver sua vida de uma maneira que te orgulhe de si mesmo. Deixe-me fazer o que eu quero fazer com a minha única e preciosa vida. [...] Se seus amigos não estão te convidando para um brunch neste fim de semana, deixe-os. Se a pessoa por quem você realmente se sente atraído não está interessada em um compromisso, deixe-os. Se seus filhos não querem se levantar e ir àquele evento com você esta semana, deixe-os. Tanto tempo e energia são desperdiçados forçando outras pessoas a corresponderem às nossas expectativas. E a verdade é que, se outra pessoa — uma pessoa com quem você está saindo, um parceiro de negócios, um membro da família — não estiver aparecendo como você precisa, não tente forçá-la a mudar. Deixe-a ser ela mesma, porque ela está revelando quem ela é para você. Apenas deixe-a e então você pode escolher o que fazer em seguida. [...] Concentrar-se no que você não pode controlar causa estresse. Concentrar-se no que você pode controlar torna você poderoso. [...]. Trechos extraídos da obra The Let Them Theory (Hay House LLC, 2024), da advogada, autora e apresentadora estadunidense Mel Robbins (Melanie Lee Robbins, nascida Schneeberger), atuando abordagem inovadora sobre mudança de comportamento, ela se tornou uma das palestrantes mais populares do mundo, treinando cerca de 60 milhões de pessoas todos os meses, tornando-se uma das principais vozes da atualidade no campo do desenvolvimento pessoal. Ela é autora de obras como The 5 Second Rule: Transform Your Life, Work, and Confidence with Everyday Courage (2017) e Stop Saying You're Fine: Discover a More Powerful You (2011).

 

CLUBE DE LEITURA DA ESCOLA DERMEVAL MIRANDA

Os estudantes da escola municipal em tempo integral, Dermeval Alves de Miranda, reúnem-se em um Clubinho de Leitura, com o objetivo de difundir o hábito da leitura, o compartilhamento de conhecimentos e o protagonismo estudantil, na cidade dos Palmares, em Pernambuco. Veja detalhes clicando aqui, aqui, aqui & aqui.

 

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segunda-feira, dezembro 16, 2024

ÉVELYNE TROUILLOT, ANA MARIA MACHADO, JAQUELINE GOES DE JESUS & COSMOVISÕES DE AMOR

 

 Imagem: Zineblog TTTTT - Acervo ArtLAM. Veja mais abaixo & aqui.

Ao som dos álbuns This Land (2024), Love at Last (2023), Reflections: Scott Joplin Reconsidered (2022), Florence Price Piano Discoveries (2020), For Love of You (2019), Holes in the Sky (2019), For Lenny (2018), America Again (2016) e Exiles' Cafe (2013), da pianista e ativista cultural estadunidense Lara Downes.

 

Monólogo de não sei quantas vírgulas... - Olhei para trás e vi o futuro: aonde cheguei uma nova partida. Fiz o que tinha de ser feito, missão cumprida - muito embora ainda me assalte a insatisfação. Por conta própria percorro o quadrado de Sator: estou sempre em curso, em processo pela alquimia do verso na magia poética, a prestar atenção na esotérica natureza experimentando a clarividência e zis sentidos pra tudo. Voo em frente, paro e olho pros lados: mudo de lugar na disforia pela sedução das sereias e de não sei quantos ilusionistas – o vício e a virtude foram embalados no mesmo saco, não há mais como distingui-los ou separá-los, contaminou-se o sangue na abundância dos do contra. Mudo de lugar e me pego morrendo de vergonha o tempo todo: é difícil encarar o reino dos predadores, não consigo conter a indignação, muito menos ao constatar a face fria no espetáculo da agonia de presas manipuladas pelo controle geral. Outro passo pela coleção de incertezas só levou a me deparar com a abundância da dor e nenhuma decência: pioramos o pior, o retrato falado do fim. É tudo tão depressa: o efêmero revoga o definitivo, ainda bem. Ninguém entende e tira proveito disso: todos querem segurança a ponto de esborrar estupidez insuportável beirando o perigo, muitos precedentes para que tudo esteja envenenado pela matança indiscriminada, festivais de escândalos e supérfluos, o entretenimento geral e o que é tão devastador. Decerto, uma confusão na cabeça e o estômago embrulhado pela náusea do mau gosto ornado com uivos selvagens de salves e aleluias. Para escapar alguns tombos pelos catabís, coisas da vida: a buscar onde eu possa me sentir em casa, com a sensação medonha de que, apesar da boa vontade, só piorei as coisas e talvez precisasse reaver o perdido que não sinto falta por conta do patético esquecimento ou mesmo negado, quem sabe um reencontro, sabe-se lá. Não parei por aí, todas as direções e o voo na escolha, a da vez do acerto ou que terei de voltar de novo. É sempre assim e até mais ver.

 

Dalton Trevisan: Os dois degraus da varanda — "Fui justo", repete, "fui justo" —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Linda Woolverton: Anime-se, criança. Vai dar tudo certo no final. Você verá... Veja mais aqui & aqui.

Stephenie Meyer: É importante para mim ser livre e sei que estou agindo por mim mesma. Eu faço as coisas porque eu quero, e isso é importante. Você quer ser sua própria pessoa... Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

 

UMA CHUVA DE ESTRELAS

Imagem: Acervo ArtLAM. Veja mais aqui.

I - Em que idioma devo falar com você? \ quando as palavras sob nossos lençóis \ sopre na minha barriga \ a vida me fez guardar rancor \ derramando café em minhas lembranças \ não revelando onde a lua encontra sua água \ Quando as crianças choram \ e não vai parar \ uma após a outra as palavras secam \ na palma da minha mão \ não me deixando batizar a escuridão \ Acredite em mim \ Não sei o que você é: \ Um umbigo que perdeu a corda no meio de um livro de poesia? \ Uma flor de hibisco com um olho doentio? \ Um pássaro com as asas presas nas costas? \ Fiquei surpreso com você \ Eu não sabia quem você era \ Hoje sua boca está virada para cima \ Este grito, mais alto que sua dor.

II - Em que idioma devo falar com você? \ quando a oração se ajoelha diante da pobreza \ e nossas filhas empinam pipas \ pela catedral \ cansados de lavar suas bolinhas de gude \ na sacristia \ Acredite em mim \ Eu não sei seu nome \ quando um mendigo de dez anos \ despe sua fome sob a estátua de Santa Ana \ cada grão de arroz deixa uma cicatriz em nossa pele.

III - O vento faz uma pausa para nos embriagar \ nós carregamos isso nas costas \ nosso caminho é acidentado \ Em que idioma devo falar com você? \ quando o sol perde o seu caminho \ Acredite em mim \ Não me lembro do que mais me dói \ Fico na ponta dos pés para coletar estrelas \ que vira para nunca mais se levantar \ O amor perdeu o seu nome \ os continentes não permanecem estáveis \ um dia selvagem, nos encontraremos \ sem que eu saiba quem você é.

Poema da escritora haitiana Évelyne Trouillot.

 

LEITURA –[...] Como ler - essa é uma grande questão que vamos encontrando a toda hora nesse mergulho pelos livros essenciais. Ler criticamente é uma das respostas. Significa que não se lê para concordar servilmente em atitude reverente, mas também não se lê para discordar e refutar num eterno desafio. [...] Os tempos modernos surgem justamente com esse questionamento sobre o real e o imaginário, essa desconfiança em relação a certezas que vinham sendo aceitas como verdades e que o espírito humano começava a desafiar [...] Uma parte de mim também não se sente nada à vontade diante dessas escolhas tradicionais. Mas não posso mudar o que já passou. E não creio que a forma de mudar o que ainda vem por aí seja ignorando o que se construiu antes. [...]. Trechos extraídos da obra Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (Objetiva, 2002), da escritora, jornalista, pintora e professora Ana Maria Machado, que questiona: Por que tantos autores homens? Tantos brancos? Tantos europeus? Por que sempre esses? Por que não fazer outra lista, um cânone alternativo? Por exemplo, uma lista que só admitisse mulheres, não brancas ou autores não europeus... Afinal, esses nunca têm uma chance de serem conhecidos... A primeira é que não conheço o suficiente para propor esses nomes. A segunda é um princípio ético básico: não fazer aos outros o que não gostaria que me fizessem. E sei que me sentiria roubada de algo fundamental se não tivesse lido Homero, Cervantes, Shakespare. Não sei quem se poderia propor para o lugar deles, não consigo me imaginar sem Ulisses, Dom Quixote, Hamelet. Se não quero essa pobreza para mim, não vou me meter a fazer experimentações com os jovens... Veja mais aqui & aqui.

 

LUTA & SOFRIMENTO - Não vejo outra saída! O que dói mais, afinal? Ou fingir que não a sente? Existem pessoas que conseguem te fazer sentir melhor apenas com um toque, um olhar, uma palavra ou um sorriso... Sabemos que muitos são os obstáculos para alcançar este patamar e comigo, mulher negra, não foi diferente. Todas as barreiras que enfrentei foram vencidas com muito sofrimento e eu sou uma pessoa que não romantiza o sofrimento... Não podemos comunicar resultados científicos só entre pares... Me tornar um modelo para novas gerações é provar que através das oportunidades, o talento e a inteligência podem alcançar e gerar frutos positivos para uma nação... Pensamento da biomédica, pesquisadora e doutora em patologia humana Jaqueline Goes de Jesus, que coordenou a equipe de pesquisadores que sequenciou o genoma do Sars-Cov-2 em 48 horas, após o primeiro caso de Covid-19 no Brasil e fez parte da equipe liderada por pesquisadores ingleses que sequenciou o genoma do vírus Zika, razão pela qual tornou-se a primeira mulher negra e nordestina a ganhar tamanha projeção internacional no mundo das Ciências.

 

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Cosmovisões de Amor - 44 autores indígenas compartilham as Cosmovisões de seus Povos como uma contribuição fundamental para este novo tempo. Veja mais aqui & aqui.

 

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quarta-feira, setembro 05, 2018

NICANOR PARRA, JOSUÉ DE CASTRO, OSCAR WILDE, FAUSTO WOLFF, KARITA MATTILA, CAMPANELLA, ILIA POPKHADZE, SALOMÉ & O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA


O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA – Imagem: The destruction of the Great Library of Alexandria - A Biblioteca Pública de Alagoinhanduba atendia o público no expediente normal e, ao cerrar suas portas de noite, servia de entretenimento para seus fantasmas. Isso era o que todos diziam entre cochichos e ouvidos. Diariamente, ao abrir o atendimento de manhã, estudantes acorriam para realizar seus trabalhos, ou visitas de classes escolares ao acervo, afora a costumeira presença de maníacos que se passavam por bibliófilos, ou de personagens que fugiam das suas histórias para nunca mais dar sinal de vida, ou mitômanos que renovavam seus repertórios em longas consultas, ou obcecados que mais endoidavam com as leituras, ou mortos que não foram avisados e ainda insistiam em achar que estavam vivos, ou malucos que se envultavam entre as páginas para retornarem assumindo a identidade de seus heróis. Assim era todos os dias até o início da noite. Quando davam as vinte e uma horas, era uma correria: não ficava ali ninguém, todos saiam às pressas para não toparem com os famigerados fantasmas que ouviam dizer ali existirem. É que ao longo dos anos a população denunciava que a biblioteca era malassombrada. E diziam que durante toda noite ouvia-se o som do maior festejo. Ninguém tinha coragem de conferir, quem era doido? Tanto é que depois das enchentes que devastaram a cidade, todos iam logo conferir se haviam destruído aquele recinto. Nada, enxurrada que fosse, a cidade quase desaparecia, mas ela ficava, intacta, só com o acervo destruído. O prédio, na verdade, aguentou tsunamis de todo jeito. O acervo, realmente, aniquilado: móveis suntuosos e antigos doados pelo Império e pela elite açucarocrata, registros históricos, descobertas arqueológicas, objetos desconhecidos, discos, gravuras, utensílios folclóricos, livros antigos e luxuosos, fitas de filmes antigos, jornais de antanho, obras e documentos raros, fotos antiquíssimas, quadros, esculturas, artesanato, enfim, tudo aquilo que a população inteira chamava de velharia havia sido sucateado ou surrupiado por sabidos da Administração Pública. Tinha até o disse-me-disse de gente da cidade e de Ribigudo que possuía mobiliários e bibliotecas privadas só com o que sumira do seu acervo. Boato ou não, ninguém perdia tempo em investigar. Pois bem, a exemplo das tantas bibliotecas públicas do Brasil, a de lá também sofria com o descaso da administração: quadro funcional regularmente reduzido, prédio em petição de desabamento, instalações com infiltrações e riscos de curtos nos circuitos elétricos e etc e tal. Foi por conta dessa penúria que, uma noite lá, os fantasmas resolveram tomar conta da situação. Fizeram um levantamento dos problemas e resolveram inicialmente reverter a situação e ajudar os funcionários. O primeiro a chegar ao trabalho, ao deparar com aquela assembleia, saiu na carreira de findar internado num manicômio, repetindo a todo instante: É verdade, tem fantasma na biblioteca! Os demais, aos poucos, mulheres corajosas, mesmo aos sustos e redobrados receios de serem atacadas, comedidamente mantiveram contato com os rebelados e tomaram pé da proposta deles. Como eram duas ou três apenas, aceitaram desconfiadas a colaboração sobrenatural, vez que ao chegarem tudo já estava limpinho e organizado para o início das atividades diárias. Com o passar dos dias já se acostumavam com a intervenção deles no atendimento de crianças e jovens que acorriam ali com dificuldades para pesquisas, ou nas visitas escolares, ou mesmo desavisados que por ali passavam equivocados com o endereço de algo que precisavam. Os assíduos apareciam com um pé atrás, mas logo entraram na roda e se metiam com os alienígenas em contações de históricas, encenações de obras ou mesmo saraus, recitais e serenatas que começavam logo de manhã e duravam a semana inteira por anos. Isso até o dia em que os boatos se avolumaram e arrepiaram fanáticos religiosos que entraram em pé de briga com aquela insolência misteriosa do mundo dos mortos entre vivos. O fato era que, como crianças, jovens e mulheres estreitavam relações com aquele absurdo, logo as religiões correriam o risco de perder esses fiéis entre as suas fileiras, o que levou a um ecumenismo geral que findou num ataque de exorcismo, com o objetivo de expulsar aqueles intrusos. Nada adiantou. A revolta religiosa logo passou do nível razoável para o mais aguerrido, a ponto de se preparar a destruição total daquele despropósito. Foi, então, que contando com o apoio da gestão pública que achava melhor acabar com aquilo do que manter um local cheio de obsoletas tranqueiras, aliado a policiais e gente que sempre odiou estudo, reuniram-se em frente da igreja da matriz e de lá partiram para acabar de vez com aquela farra. Invadiram de forma violenta o recinto, findando por provocar desabamentos ruidosos, resultando num incêndio sem precedentes de restar nem cinzas na memória da população sobre aquela biblioteca. Era uma vez. O fogo queimou com altas labaredas por dias e semanas, até ser tudo consumido de restar apenas um buraco onde antes estava aquele estabelecimento. De peito lavado, a população fez uma festa, comemorou o fim dos abusos sobrenaturais que tanto atormentavam os munícipes mais temerosos, regado a muita roda gigante, montanha russa, bailes e assustados, bebidas e orações. Agora não precisam mais de ler nada, nem lembrar nada, a vida segue como sempre fora: um passeio pelos dias de sol a sol com a noite no meio, nada mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da soprano finlandesa Karita Mattila: Salomé de Richard Strauss, Myrskyluodon Maija, Erwartung op. 17 de Arnold Schönberg & Triunphant Return NYC & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] A fome no Brasil é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os seus grupos humanos sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa, portanto, da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva ou, pelo menos, desequilibrante da saúde econômica da nação: o do pau-brasil, o da cana-de-açúcar, o da caça ao índio, o da mineração, o da “lavoura nômade”, do café, o da extração da borracha e, finalmente, o da industrialização artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime de inflação. É sempre o mesmo espírito aventureiro se iniciando, impulsionando mas, logo a seguir, corrompendo os processos de criação de riqueza no país. É o “fique rico” tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a impaciência nacional do lucro turvando a consciência dos empreendedores e levando-os a matar sempre todas as suas “galinhas de ovos de ouro”. Todas as possibilidades de riqueza que a terra trazia em seu bojo [...]. Trecho extraído da obra Geografia da fome - o dilema brasileiro: pão ou aço (Antares, 1984), do médico, professor catedrático, pensador, ativista político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973). Veja mais aqui e aqui.

CIDADE DO SOL – [...] As artes mais fatigantes obtêm maior estima, como a do artífice, a do pedreiro, etc. ninguém se recusa a exercitá-las, porque a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância, e também porque o trabalho é distribuído de modo que nunca possa ser nocivo à pessoa, mas, ao contrário, deve torná-la e conservá-la melhor [...] As mulheres exercem as artes menos pesadas. Todas devem ser hábeis na natação, e reservatórios especiais de água foram preparados não longe da cidade [...] À Cidade do Sol costumam chegar comerciantes das diferentes partes do mundo, que compram dos solares o supérfluo. Os habitantes não recebem dinheiro, mas trocam com as mercadorias de que precisam, sendo que, muitas vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo o coração, riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas deixadas por tão poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos. A fim de que a cidade não seja corrompida pelos maus costumes dos servos e dos estrangeiros, fazem todo o comércio nos portos, vendendo os prisioneiros de guerra ou mandando-os para fora da cidade a cavar fossas e para outros trabalhos fatigantes [...] Possuem de tudo com fartura, desejando cada qual mostrar-se o primeiro no trabalho, que não fatiga e é útil. Os seus ânimos são dóceis e assim obedecem a quem preside aos mesteres, chamando-lhe rei. Nem esse nome lhes desagrada, pois é criação dos habitantes solares, que não o entendem à maneira dos ignorantes [...]. Não ofendem ninguém, mas também não toleram injúrias, brigando só quando agredidos. Dizem que o mundo alcançará tanta sabedoria que os homens viverão como eles. Admiram a religião cristã e esperam, neles e em nós, a confirmação da vida dos apóstolos [...]. Trechos extraídos da obra A cidade do Sol (Guimarães, 1980), do filósofo e poeta italiano Tommaso Campanella (1568-1639). Veja mais aqui.

À MÃO ESQUERDA[...] Uma noite de inverno em que o minuano parecia querer cortar as orelhas da gente de tanto frio, ele, que devia ter então uns sete anos, levantou os olhinhos pra mim e perguntou, vozinha triste: “Por que é que isto está acontecendo com a gente?” Rapaz, me deu uma agonia por dentro, como se tivesse vidro quebrado no estômago. Me senti burro, infeliz, miserável e triste. Eu não sabia por que aquilo estava acontecendo com a gente! […] Que Deus ruim é esse que faz uma moça bonita como a minha mãe se casar com um homem bonito como o meu pai, ter noves filhos, para depois matá-la? Por que faz nascer uma criança com o nome de Querido de Deus para depois deixar ele apanhar toda noite, sem um beijo, sem um carinho, sem uma lágrima morna de mulher para confortar a cabecinha dele? [...] Começo falando um assunto, entra outro na minha cabeça, desvio e, quando quero voltar, já esqueci. [...] Para se casar, um rapaz precisa ter pelo menos 480 mil metros quadrados de terra, que recebe do pai ou que vai pagando a ele aos poucos. As filhas, quando se casam, ganham de presente da família um cavalo de montaria, utensílios de cozinha […]. Se o rapaz é pobre, o casal se estabelece em terras devolutas. Irmãos e cunhados solteiros ajudam na preparação da terra e na construção da casa. Logo após o casamento, o casal inicia a vida de colono e procura ter o maior número de filhos. Os homens são mais bem-vindos por causa da força física […]. Em Esperança, a virgindade é fundamental e controlada pela comunidade. [...] Depois que se meteu nesse negócio de escrever, nunca mais teve de suar o couro para ganhar o dinheiro dele. […] A não ser que vocês considerem que escrever é trabalho. [...] Se algum dia alguém ler este meu diário, talvez se espante com o fato de uma colona se expressar tão bem em português. [...] Pronto, já está sorrindo, não é mamãe? É a morfina. Está viciada, não é mesmo? Eu sei que é bom. Já experimentei, sabia? Só que a senhora está morrendo e eu, não. Estou morta, mas não como a senhora. Quem morreu dentro de mim foi a moça que queria ser feliz e a senhora matou. […] Estou com cinquenta e cinco anos, mamãe, e a senhora está morrendo com quase oitenta. Mas não podia deixá-la morrer sem saber quanto a odeio. A senhora, provavelmente, não lembra, mas tive uma oportunidade de ser feliz muitos anos atrás. Ele era professor e comunista.[...] Aliás, meu filho, seu neto Anibale, é um homossexual incansável, conhecido em todas as saunas da cidade. Certamente, vai morrer de Aids, sabia? [...] Eu, porém, nunca o amei, e uma mulher tem direito de amar uma vez na vida, não é mesmo? Embora soubesse que quase todas as minhas amigas tinham amantes, eu era uma mulher ingênua. Estava à espera do meu príncipe encantado. [...] A senhora aproveitou para convidá-lo para a nossa casa de praia em Fregene. Deu-lhe um porre, fez ele jogar pôquer com seus amigos e perder alguns milhões de liras. Ele teve de pedir dinheiro emprestado para cobrir os cheques que assinou. [...] Quando voltei, a senhora ameaçou me deserdar se eu continuasse com ele. Lembra o que me disse? Se você precisa tanto de sexo, minha filha, arranje um gigolô, mas arranje um profissional discreto que sai muito mais barato [...] O que, mamãe? Fale mais alto, sua vaca, ou acha que eu não sei que a senhora traía papai com titio, sua santarrona, que trepou até com o mordomo. [...] A senhora nunca foi sodomizada, mamãe? Nunca felaciou ninguém? Claro que sim. Eu também. Já fui para a cama com negros, com mulheres, com prostitutos e prostitutas [...] Eu amava aquele homem, mamãe. Foi o sentimento mais bonito que já tive por alguém e a senhora acabou com ele para me transformar no que sou: uma puta rica. [...] Acordei mais cedo e depois de tomar banho, em vez de me vestir, descer e dar as ordens do dia aos empregados, me surpreendi olhando meu corpo nu no espelho. Nos meus trinta e seis anos de vida nunca vi outra mulher nua, nem a minha mãe ou minhas irmãs mais moças, Yolanda, Amália e Ofélia. O que vi no espelho não me desagradou. Tenho um rosto simpático, seios firmes, cabelos e olhos negros e um sorriso que raramente aparece em meu rosto, mas que quando aparece todos elogiam. Sou mulher honesta e virgem. Tenho um defeito grave: meço um metro e oitenta e dois e sou mais alta que a grande maioria dos homens que conheço [...]. Trechos extraídos da obra À mão esquerda (Leitura, 2007), do jornalista e escritor Fausto Wolff (1940-2008). Veja mais aqui.

MUDANÇAS DE NOMES - Aos amantes das belas letras / anuncio o meu maior desejo: / mudarei os nomes de algumas coisas / Minha posição é esta: / o poeta não cumpre sua palavra / se não mudar o nome das coisas. / Com que razão o sol / há de continuar chamando sol? / Peço que se chame Micifuz / das botas de quarenta léguas / Meus sapatos parecem ataúdes? / Saibam que de hoje em diante / os sapatos se chamam ataúdes, / comunique-se, anote-se, publique-se / que os sapatos mudaram de nome / desde agora se chamam ataúdes. / É certo que a noite é longa / e todo poeta que se preze / deve ter seu próprio dicionário / e antes que eu me esqueça / há de se mudar o nome de Deus / cada qual o chame como queira / pois esse é um problema pessoal. Poema do poeta e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018).

SALOMÉ
[...] Ah! Beijei a tua boca, Iokanann! Beijei a tua boca! Os teus lábios têm um gosto amargo. Era gosto de sangue? Não! Foi talvez o gosto do amor... dizem que o amor tem um gosto amargo... mas que importa? Que importa? Beijei a tua boca, Iokanaan, beijei a tua boca!...
Trecho da peça teatral Salomé (Itatiaia, 1989), do escritor e dramaturgo britânico Oscar Wilde (1854-1900). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

AGENDA
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A arte do artista georgiano Ilia Popkhadze.
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ROSA MECHIÇO, ČHIRANAN PITPREECHA, ALYSON NOEL, INDÍGENAS & DITADURA MILITAR

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som de Uma Antologia do Violão Feminino Brasileiro (Sesc Consolação, 2025), da violonista, cantora, compos...