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domingo, agosto 21, 2022

BELL HOOKS, VERA INBER, HARRY MULISCH, ELIZABETH LEE WURTZEL & MARIA JOYCE

 

 

Ao som da cantora, compositora e produtora cultural Maria Joyce.

 

TRÍPTICO DQP: A casa em que eu nasci não existe mais... - A madrugada chovia e eu dei a mão ao menino da beira do rio que sempre fui lá no quintal dos milagres. Divagação à toa, talvez. Horas a fio. Ali muitos dos meus amigos invisíveis, Ambulantes do Una, me contavam de tudo, escondidos nos troncos e galhos da minha imaginação. E me davam corda para que eu me metesse a ser o protagonista todo Gonçalo do Ramirez de Eça ou aprontando nas ilhas da Polinésia montado na Moby Dick do Melville, como se me esgueirasse explorando a Meseta do Pamir. Vivia solto na traquinagem e, vez em quando, uma menina aparecia para me contar doutras hestórias do tempo do ronca e do faz de conta, e já sabia de cor outras tantas pulando o muro para ir com ela pro brejo no monte de pó de serra, coisas da meninice mais faceira. Foi lá que Zezé apareceu e eu tinha tantas aventuras a mais que um simples pé de laranja lima. Hoje sorrio xexéu exilado a reviver perplexo o que sobrou daquela infância, assaltado pelos fantasmas madrugadores dos aprisionados pela memória da Casa dos mortos de Doistoiewski – todos foram fuzilados, apesar da comutação da pena, e zanzavam por ali como se fossem aqueles do documentário da Débora Diniz. A menina que brincava comigo naquele tempo reapareceu e era a amiga Sydia Araújo: Eu fui criança e hoje sou lembranças do passado que resiste num presente cuja ausência deixa suspensa em nuvens de algodão doce, um filme que insiste na tela de minha cinemateca. Quando ela sumia tudo ficava como se ouvisse de Stravinsky: Minha infância... foi apenas o período de espera até o momento em que pude mandar para o inferno todos e tudo que me rodeou. Sim, comigo também. É que fui pro mundo e enfrentei vicissitudes e o futuro. Hoje a casa onde nasci não existe mais...

 


Tranche de vie... - Imagem do artista conceitual e visual estadunidense David Reed. – O voo, a mão no presente, a cabeça no futuro e o mundo girava sob meus pés. Fui aprendendo que os seres e coisas não só possuem dois lados, mas muitos no âmago dos mistérios. Com isso muitos desmoronamentos dramáticos presidiram a grandiloquência das repulsas. Amiúde, a brandura, mesmo espedaçado, indignado com a repugnante estupidez. E se de um lado ouvia Eyvind Johnson: Deve-se pensar que você é alguém que vive no futuro e que você tem que julgar – aprovar ou desaprovar – o eu que age hoje, o eu que mantém ou falha... E nisso devemos acreditar: que a esperança e a vontade podem nos aproximar do nosso objetivo final: justiça para todos, injustiça para ninguém. De outro aquela menina reaparecia moça feita como se fosse Chimamanda Ngozi Adichie: A história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história... Eu constantemente cometo o erro de pensar que algo óbvio para mim é óbvio para todo mundo... Nossas histórias se agarram a nós. Somos moldados pelo lugar de onde viemos... O tempo passava e entre dúvidas eu ia singrando a vida para saber do escritor holandês Harry Mulisch (1927-2010) a me jogar na cara lisa: Mas nada existe no futuro; ele está vazio; Pode-se morrer a qualquer momento... Um começo nunca desaparece, nem mesmo com um fim. Ao desencontrar de mim no meio de tantos tropeços, aquela que tanto ia e vinha me trazia os versos de Vai Passar da Vera Inber: Inevitavelmente, os anos passarão, arquivando... / Uma longa, longa fila. / Em uma cidade de pomar, colmeia de asfalto, / Todas as cidades crescerão. / Lindas rosas plantadas em telhados de vidro também florescerão. / Mas nós – asas! — não o verá nem o ouvirá; / Não eu, não você. / Apesar de tudo isso, é fácil imaginar / Esta cidade e / Seu verde, emoldurado no brilho do sol, / Em terra de todos os homens. — / Haverá uma estátua centrada no / octógono de uma certa Praça, / Construída para que o ouro do pôr-do-sol se derrame, escorrendo / Sobre o bronze da jaqueta. / Todos os tipos de criancinhas vão lá, felizes, / sem cuidados. / Brilhantes, eles enviam seus sorrisos no rico pôr do sol / Para aquele que ali se eleva. / Uma mãe levanta seu bebê para os degraus de pedra / E vendo os raios de sol empilhados / Acima deles diz baixinho... E sequer ouvia as últimas palavras porque a buzina do trânsito me roubava a complacência. Sabia, nada é dito em vão, mesmo que se pareça um chiste. Dou meu testemunho, apenas, a minha catarse...

 


É guerra e eu da paz...- Imagem: Iconografia do artista estadunidense Robert Motherwell (1915-1991). – Como pode, hem? Aos trancos e barrancos voo, tudo é tão indefinido, graças! Do nada os olhos de Maria Joyce cantarolando inquieta e cheia de vida, ruacima tempabaixo ali e acolá apontando: viver é possível. Sim, pode ser, eu sei. Era como se fosse a jornalitescritora estadunidense Elizabeth Lee Wurtzel (1967-2020) me dizendo: Às vezes eu gostaria de poder andar por aí com uma placa MANUSEIE COM CUIDADO grudada na minha testa... Isso é tudo que eu quero na vida: que essa dor pareça ter um propósito... E das casas olhos invisíveis por onde íamos entre fotos, instrumentos, garrafas da cachaçaria, o caminho de volta sem antes nem depois. E se para todo lado há só conflito, onde a paz? Não deu outra e Käthe Kollwitz nos lembrava: Toda guerra já traz em si a guerra que a responderá. Cada guerra é respondida por uma nova guerra, até que tudo seja destruído... O pacifismo simplesmente não é uma questão de olhar calmo; é um trabalho árduo... É meu dever dar voz aos sofrimentos das pessoas, os sofrimentos que nunca terminam e são grandes como montanhas. E a cantora trouxe ânimo como se me dissesse que tudo vale a pena, agora e já. Esqueci o que era apenas passado porque o futuro era daquela que se foi sem saudade como se ganhasse o mundo perdendo-se de si mesma. Até mais ver.

 


[...] Não é possível mudá-las [as salas de aula] se os professores não estiverem dispostos a admitir que ensinar sem preconceitos exige que a maioria de nós reaprenda, que voltemos a ser estudantes [...] A integridade está presente quando há congruência ou concordância entre o que pensamos, dizemos e fazemos. [...] Imagine como é ter aulas com um professor que não acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender. [...] Foram as experiências dolorosas que me incentivaram a lutar para ensinar de formas que fossem humanizadoras, que animassem o espírito de meus estudantes de maneira que eles se elevassem na direção de sua peculiar completude de pensar e de ser. [...].

Trechos extraídos da obra Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática (Elefante, 2020), da escritora, artista professora e ativista feminista e antirracista estadunidense Bell Hooks (Gloria Jean Watkins – 1952-2021), autora de obras como E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (1981), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (1989), Olhares negros: raça e representação (1992), Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (1994). Dela a frase: O amor é o fundamento de toda mudança social significativa. Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.

 


quarta-feira, janeiro 20, 2021

ERNESTO CARDENAL, QURRATULAIN HYDER, JACQUES MONOD, KARINE SAPORTA, KAMILLE CARVALHO & AS FILHAS DA DOR

 

 

TRÍPTICO DQC: O SEGREDO DO ENCONTRO - Ao som de Stravinsky: Petrouchka (Universal/Decca, 2019), com a pianista e compositora francesa Yvonne Loriod (1924-2010) & Orchestre Des Cento Soli, Rudolf Albert. - Seja bem-vinda, pode entrar sem bater. Eis-me aqui, em carne, ossos e fracassos. Sou porta ao escancaro e não repare a bagunça, a anárquica arrumação e o lastimável desamparo. Não sou bem assim, levo a vida e nem sei direito, sinto além do que consigo suportar. Celebro meus defeitos, não posso negá-los, nem ser diferente do que sou: vou muito além do que posso. Sou um homem comum e qualquer, não guardo mágoas nem rancor; asseguro de antemão: não tenho a menor coerência. Não desafio a sabedoria das ruas, ando sempre apressado e de sorriso aberto, muito embora ninguém tenha me avisado como foi que dormiu a noite anterior. Saúdo os vivos e os mortos, que os tenha em bom lugar. Carrego a culpa de sonhar demais e, invariavelmente, quebrar a cara: sou mais onírico que real; quando não, patético. Sei que o que é ruim inevitavelmente tende a piorar como se não tivesse mais jeito, mas sou refratário a resmungos - para ter o que tenho tive que levar na marra, sangue e suor à beça e desconfio que se escapar com vida farei tudo que penso e desejo. A vida, como soube de Deleuze & Guattari: A vida está sempre em aberto: seu impulso não é alcançar um fim, mas continuar seguindo em frente. A planta, o músico ou o pintor, ao seguirem em frente, arriscam uma improvisação. Assim voo, como a jornalista indiana Qurratulain Hyder (1926-2007), com: Estudos em uma cultura agonizante. Minha preocupação com os valores da civilização sobre os quais continuo escrevendo pode parecer ingênua, confusa e simplista. Mas então, talvez, eu seja como aquele passarinho que estupidamente levanta suas garras, esperando que isso impeça o céu de cair. Sim, satisfeito ninguém está, nem dou crédito ao que se fala por aí, pro gasto exilado lá estou por aí, até lá.

 


DOIS: ARDISTÃO & A CIDADE DOS MORTOS – Ao som de Inori, adorations for one or two solists and orchestra (1973/1974), de Karlheinz Stockhausen, com Elizabeth Clarke e Alain Louafi, solisti Suzanne Stephens, Japanese rin Maria Bergmann, pianoforte The Symphony Orchestra of the Southwest German Radio. – Despertava no meio da noite, um lugar estranho: que lugar é este, não sei. Olhei em volta e ao longe uma cidade aos pés de um morro, parece, não dá pra ver direto. Observei intrigado. Ao tentar me levantar do chão, toquei a mão em dois volumes do Ardistan und Dschinnistan (1909 - IGEL Verlag Literatur & Wissenschaft, Hamburg, 2013), do escritor alemão Karl May (1842-1912). Hem? Ao folhear um dos volumes, um mapa escapuliu ao vento. Fui pegá-lo e era a reprodução de um outro que se encontrava impresso no livro. Comparei os dois, a mesma dimensão. No do livro, apenas indicava o nome Ardistan e tudo o mais em branco; enquanto no mapa avulso, Takistan, com nomeação de outras partes. Mais adiante encontrei uma foto tirada da mesma posição onde eu estava. Intrigado, comecei a ler: Quando o rio Suhl secou, a cidade ficou deserta e uma nova foi construída. Durante séculos, a velha capital ficou vazia, tendo apenas um ou dois prédios usados como prisão. Poucas pessoas, além dos líderes religiosos, visitavam-na e ela nunca foi completamente descrita. Indaguei novamente: que lugar é este, ainda não sei. Nas páginas adiante: A cidade dos Mortos contém muitos segredos importantes, alguns dos quais conhecidos somente do alto clero de Ardistão. Passagens subterrâneas e antigos canais oferecem meios de acesso escondidos à cidadela. Caminhei até me deparar com um lago que, pelo mapa, deveria ser o Maha-Lama, cercado por paredões íngremes de pedra. Ah, isso mesmo, o que vi e a foto. Foi aí que constatei ali ser a Cidade dos Mortos mesmo: A área é temida e evitada pelas poucas pessoas que visitaram a cidade, talvez porque está ligada a antigas lendas demoníacas. Diz-se que o lago foi criado pelo diabo que teria dito a um antigo sumo sacerdote de Maha-Lama que ele viveria mais cem anos se afogasse no lago todos os que o insultassem. Embora fosse outrora amado por seu povo, o Maha-Lama tornou-se impopular. Centenas de pessoas foram afogadas no lago, que ficou tão entupido de cadáveres que o sacerdote não pôde mais cumprir sua promessa e foi finalmente levado pelo diabo. Fiquei estarrecido com a leitura do relato. Além do mais fui surpreendido com a presença inesperada do bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976) que me disse com ar de intimidade: Neste momento não temos motivos legítimos para afirmar ou negar que a vida teve um único começo na terra, e que, como consequência, antes de aparecer, suas chances de ocorrer eram quase nulas. … O destino é escrito simultaneamente com o evento, não antes. O universo não estava grávido de vida, nem a biosfera do homem. Nosso número surgiu no jogo de Monte Carlo. É surpreendente que, como a pessoa que acabou de ganhar um milhão no cassino, nos sintamos estranhos e um pouco irreais? Sem saber o que dizer, dei de ombros e segui seus passos até vê-lo desaparecer diante dos paredões íngremes de pedra. O reinado da Lua confirmava que eu estava perdido, ainda restava muito para saber dali.

 


TRÊS: ELA BAILAVA ENTRE AS ESTRELAS - Imagem: a arte da coreógrafa, dançarina, fotógrafa e diretora de curtas-metragens francesa Karine Saporta, ao som do Brasil Guitar Duo, formado pelos violonistas João Luiz Rezende Lopes e Douglas Lora. – Olhava o céu naquela paragem insólita, quando a vi bailando entre as estrelas e levitava dançando por toda imensidão, até lindamente tocar o chão e se aproximar com seu olhar firme em mim: Sou Anatália, a potiguar Anatália de Souza Melo Alves (1945-1973). E o meu trabalho com os trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco, me levou para Recife, Campina Grande, Palmeira dos Índios e Gravatá, até ser presa pela repressão. Disseram que ateei fogo ao corpo, me suicidando com uma tira de couro. Mentira. Naquele dia, descalça, trajava um estampado vestido de algodão vermelho e calças de jersey cor de rosa, que foram parcialmente queimados por eles mesmos. Fui vitima de violências sexuais quando me encontrava psicologicamente abalada pelas torturas e pelo clima de terror no cárcere, por isso queimaram-me a região pubiana para que meu corpo não denunciasse as sevícias sofridas e me enforcaram. Sou mais uma entre as filhas da dor. Ao término da encenação, suas lágrimas lavaram meu ombro enquanto o nosso abraço solidário era a expressão da paixão mais que vivida. Assim, um tanto desolada, recitou-me Ernesto Cardenal: Ao perder-te eu a ti / tu e eu teremos perdido. / Eu, porque tu eras / o que eu mais amava; / tu, porque era eu / que te amava mais. / Mas, de nós dois / tu perdes mais do que eu. / Porque eu poderei amar a outras / como amava a ti, / Mas a ti não te amarão mais / do que te amava eu! E foi ali na Cidade dos Mortos que celebramos a vida com o amor que nos fez unos em nós e com tudo e todas as coisas. Até mais ver.

 

A ARTE DE KAMILLE CARVALHO



A arte da bailarina, dançarina profissional, professora, coreógrafa, personal dancer e dancing coach, Kamille Carvalho. Veja mais aqui e aqui.


 


quarta-feira, outubro 28, 2020

MARGARET ATWOOD, WILLIAM GOLDING, GUYAU, WAGNER TAVARES, TIPITI & LULA CARDOSO AYRES


  

TRÍPTICO DQC: BATISMO DE FOGO - Há muito que o meu coração espera! Por um cêntuplo de vezes evitei sem firmar: não abjurei meus sonhos, nenhum perjúrio lavou-me o pecado e a inquisição. Quem me acolherá ou direi assim tão só, compungido, minguando nas cinzas da primeira vez, do primeiro amor, do que foi para não mais. Há muito que o meu coração poreja na pia e no nome, aniquilado e só não serei jamais consagrado em qualquer sacramento, apenas confirmado como ex-humano na minha pletora alucinação. É nessa hora que ela chega Zélia Duncan cantarolando Alma de Antunes e Pepeu: Alma, deixa eu ver / Deixa eu tocar (alma, alma, alma) / (Deixa eu ver) / (Deixa eu tocar) / (Alma, alma, alma) / Superfície (alma, alma) / Deixa eu ver sua alma (alma, alma) / Alma (alma, alma, alma). E me beija sorridente com a frase do filósofo e poeta francês Jean-Marie Guyau (1854-1888): A vida é como o fogo: só se conserva, quando se propaga! E com a comiseração pelos miseráveis incapazes e decadentes, as labaredas do seu fogo incendiou o que de mim restava corpalma.

 


DANÇA DO TIPITI – Imagem: Tempo (2012), arte do escultor, fotógrafo e artista multimídia Wagner Malta Tavares. – Do meu quarto um local desconhecido e ae longe as vozes: Dança, dança, dançador, / dança com valor, / dancemos todos juntos, / cada qual com seu amor. / Traça e retrança, / volta a trançar, / que o tipiti / vai começar. Lá-lá, um passo pra lá, / Lá-li, um passo pra qui, / dancemos todos em roda, / tecendo o tipiti. / Destrança as tranças, / ó meu amor, / que o tipiti / já se acabou. Fui levado por ela e ao dobrar a esquina pude constatar a festança. Já havia visto o pau-de-fita, sabia lá esse auto era índios tarianos ou aimorés, uma ciranda com translação em ziguezague e trançando fitas coloridas com palmas, queda, anta, rede e croché, trança do lenço e destrança o trancelim, cacetão, cacetinho cruzado ou doido com bastões nos moçambiques, pra findar no florão ou tope, em reverência ao renascimento da árvore depois da invernada, prenúncio da primavera na sanfona, violão e pandeiro, violas e rabecas. Será vilão ou moinho, engenho ou traçado, jardineira ou mastro no Crato, Cariri, Varginha ou Pernambuco, do sudeste pro sul, noutra cantoria: O amor quando nasce / Parece uma flor / É tão delicado / Tão cheio de amor / Seria tão bom / Que ele fosse uma flor / Sem ter espinhos / Da dor / Depois que tudo / É sonho ao luar / Começam os desencantos / O amor passa a existir / Nessa voz do nosso canto. E ela me puxava para mais perto, como se quisesse participar das comemorações que só muito depois tomei pé no Roteiro do folclore amazônico (Sérgio Cardoso, 1964) e Os supostos festivais folclóricos do amazonas (CNFL/IBECC, 1962), ambas as publicações do historiador, professor, escritor e advogado Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ela encantada com tudo aquilo, abraçou-me forte como se quisesse ao saracoteio sussurrar Margaret Atwood: Na primavera, no final do dia, você deve cheirar a terra. E do seu corpo o perfume das flores, frutas, lavouras e rincões para minha vida.

 


ELA, PÁSSARO NA PIRANDRIA – Imagem: a arte da bailarina inglesa Julia Farron (1922-2019) – E era da pele dela em chamas o incenso do bailado no Pássaro de Stravinsky em plena Pirandria – aquela ilha do Supplément de l’histoire véritable de Lucien (Paris, 1654), do historiador, geógrafo e diplomata francês Frémont d’Ablancourt (1621-1696) -, e a se transformar em centelha flutuante no ar, para que em mim fogo-fátuo, ser a vida, a iluminação e o renascer, a paixão e o destrutivo infernal, a intuição e o incêndio criminoso, o ritual de passagem para purificação, a regeneração e as cinzas, a fricção e o sexo, o arquétipo da poética e da metafísica, para me acordar no real da vida com William Golding: Pior do que a loucura, a sanidade. E por três vezes ininterruptas, quando ao talento curto de imaginação sem fôlego e inspiração nenhuma, ela me levou incólume em suas mãos aladas pela travessia da fumaça tóxica da distopia de ontem e agora; e por seis vezes consecutivas em que a casa desabou sobre minha sombra antes de posar para retratos na parede e a voz que é minha e o braço que é meu envolveu-a como se eu fosse um fantasma de fogo pobretão e morto de fome a ressuscitar no domingo de todas as semanas e meses e anos vindouros; e por nove vezes sucessivas, depois de cantar e contar as minhas histórias arruinadas sem adornos nem louvores, os pulmões que são meus tiveram o privilégio de ser ocupado pela fragrância de sua carne nua na colina das estrelas para acudir o destino no reino da esperança. E nela sou e me realizo. Até mais ver.

 

A ARTE DE LULA CARDOSO AYRES

A arte do pintor vanguardista, desenhista, cenógrafo e programador visual Lula Cardoso Ayres (1910-1987), que participou de exposições no Brasil e no exterior, executando cerca de cem painéis e murais em diversas cidades brasileiras, entre as quais Recife, Salvador, Santos, São Paulo e Natal. Seus quadros fazem parte do acervo de alguns museus brasileiros e de coleções particulares da Europa, América do Norte e América do Sul. Veja mais aqui e aqui.

 


ROSA MECHIÇO, ČHIRANAN PITPREECHA, ALYSON NOEL, INDÍGENAS & DITADURA MILITAR

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som de Uma Antologia do Violão Feminino Brasileiro (Sesc Consolação, 2025), da violonista, cantora, compos...