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quarta-feira, 29 de julho de 2020

Esperar o fim no Solar Bragançano II

No domingo fui jantar ao Solar Bragançano e como não o faço com a regularidade que gostaria lembrei-me, até pelas semelhanças de contexto, do jantar memorável e fanfarrão que ali me ofereci em Novembro de 2012*, quando nos afligia a coronotroika. Contudo, para não exagerar no paralelismo e sobretudo para levar um espírito francamente optimista para a mesa, observei, enquanto compunha a máscara depois de passar as mãos pelo álcool-gel da casa, que na altura nada nos protegia da peste e governava Passos Coelho.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Os três tês de um prelúdio para a crise: ténis, tempo (perdido) e Titanic


Os meses de quarentena e desconfinamento, que afortunadamente, ao contrário de muitos, vivo como uma espécie de prelúdio para a crise, têm-me servido sobretudo para ler o Proust que com método vinha adiando para a reforma e para ver ténis como nunca imaginei ver desporto nenhum, acumulando quantidades insensatas de partidas, glossário e bisbilhotice temática.

Se sobreviver para resumir este período e este estado de espírito, talvez possa invocar retrospectivamente uma entrada de diário não escrita que imite, na sua aparente inconsciência ou indiferença, a de Kafka a 2 de Agosto de 1914: «Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde fui nadar.»

Mas, na verdade, tendo em conta o ambiente glamoroso e festivo por onde se passeia o narrador da Recherche e em que disputam os jogos as maiores vedetas do ténis, o meu estado de espírito, não substancialmente diferente, é mais bem descrito como o de um passageiro do Titanic que, informado do iceberg mas resignado ao embate, procura não desperdiçar nenhuma dança e certamente nenhum cocktail.

De resto, o relato no diário, se o puder escrever ainda que postumamente, acabará por ser o mesmo. Porque, mais tarde, na falta de um deus ex-machina, o passageiro, do Titanic ou do Lusitânia (perdão, é forçoso distinguir as guerras: da Lusitânia), vai sem dúvida nadar. Isto na melhor das hipóteses. Ió.


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* Se preferirem uma versão menos sombria e houellebecquiana deste 2020, aproveitem a Mínima Luz e mantenham-se à tona com outros três tês, Três Tristes Tigres: https://youtu.be/XL4i9X0wC18

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dilemas antigos

Recusando que a cretinice de terceiros me perturbe o Proust e os dias, escolho sofrer só de dilemas antigos, pré-crise de 2011. Se chove, hesito entre ter música de fundo ou ficar a ouvir a chuva. Se o tempo está favorável, agora que os dias são grandes, hesito entre ler na varanda ou correr no parque. Se o ocaso está de apetite, hesito entre ficar a ler ao crepúsculo ou ficar a ver o crepúsculo.
Não é fácil.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Alegria primitiva

Sinto quando por acaso descubro uma capa com o logótipo da revista LER, como agora aconteceu, a mesma alegria primitiva que sentia na infância se no horizonte havia uma revista da Disney (que raramente ou nunca pude comprar) ou, mais tarde, algo da Marvel (que já comprava com alguma frequência, preferindo investir nesses álbuns o dinheiro que outros gastariam para comer).

Na crise de há dez anos, deixei de comprar a LER, pela primeira vez pondo outros interesses e necessidades à frente de um prazer intelectual ou estético. Quando depois recuperei algum do poder de compra tinha-lhe perdido o hábito. Não deixei de sentir o entusiasmo de a comprar de novo com assiduidade e a excitação de a folhear, mas a verdade é que raramente a voltei a ler de capa a contracapa, e não posso em rigor culpar a revista. E também não posso dizer que tenha assimilado o sentimento de culpa que o neo-liberalismo tentou, com certo sucesso, incutir nas pessoas que prezam o ócio e não o pretendem substituir por um qualquer patético impulso de empreender seja o que for do ponto de vista económico; mas não pude escapar ao vórtice de ter uma profissão e de, ainda mais do que antes, por mera fatalidade, ter de lhe dedicar a maior parte da energia.

Agora, que não acabei de me pôr de pé, vem aí outra crise económica e, como há uma década, porque atraio os ricochetes que as pequenas potestades usam para infligir a sua parte de danos, hei-de certamente bater nela como numa parede, como tantos já estão a bater (estamos fadados a isso porque este capitalismo não morre mais depressa do que o feudalismo que o inspira e tem mais candidatos a baronetes investidos em cães-de-guarda). Mas entretanto, nestas semanas de quarentena, voltei a sentir aquela alegria de poder ir para um canto — quotidianamente e não apenas nas boas abertas — com as minhas leituras de puro fascínio sem que o mundo, económico ou social, e os tiranetes que nos castram pudessem fazer alguma coisa quanto a isso.

Se a crise passar, se lhe sobreviver de alguma maneira, hei-de desta vez perseverar na LER (considerando que a revista se continue a publicar, que o «novo normal» não se limite neste campo a ser a radicalização niilista da normalidade medíocre em que vivíamos). No final disto, as minhas prioridades serão, de novo, estão já a ser, as da infância e da adolescência — uma ânsia de alegria primitiva, essencial.

sábado, 1 de outubro de 2016

Indignação de classe

Eu devia saber que não se podem julgar as pessoas pelo aspecto. Durante anos fui lendo artigos de Maria de Fátima Bonifácio e espreitei-lhe a fotografia tipo-passe no cimo da coluna ou vi-a de relance num qualquer canal televisivo a emitir opinião no seu casaquinho de malha sem pretensão visível. Era apresentada como historiadora e respeitei-a abstractamente por ter uma profissão diferente dos políticos de carreira, embora a sua evidente inscrição na mais assanhada das direitas fizesse lembrar um daqueles espécimes.
O que não me tinha ocorrido, juro, era que Maria de Fátima fosse «rica». Não só rica por ter dinheiro, mas «rica» por herança genética. Digo genética porque, percebi hoje, mais importante do que o dinheiro (que ainda assim é importante) é o grupo social — ou classe, se quiserem (e ela quer) — onde se nasce.
O artigo de Bonifácio no Observador é duma eloquência autobiográfica inesperada (para mim). O tema é Mariana Mortágua (o tema preferido da direita nos dias que correm) e é desde logo enternecedora a forma como Maria de Fátima põe a rapariga no seu lugar, que não é definitivamente o mesmo onde Fátima se encontra: «Mariana não sabe, não tem mundo para saber o que são e como são os verdadeiros ricos.» Traduzindo: Mariana Mortágua, essa mulherzinha, não nasceu numa família de ricos, não pode, portanto, julgá-los e muito menos propor impostos sobre eles.
Mortágua, como se sabe, é o arauto do «ódio de classe». E reagir à ideia de ódio de classe com essa maravilha filosófica do «orgulho de classe», assumido belicamente por Bonifácio, é o argumento definitivo para arrumar a esquerda. O que pode ser mais racional do que ter orgulho no grupo social a que se pertence? Não é apenas na família, é no conjunto das pessoas que se nos assemelham em posses e origens. Sabem todos os doentes da bola e todos os patrioteiros que não há nada melhor e mais puro do que o nosso grémio, por idiota que ele seja.
Maria de Fátima Bonifácio, historiadora de formação e «rica» por herança e genes, aprendeu cedo «o valor supremo do trabalho e da honestidade». Julgo que ela não quer dizer que teve acesso precoce aos extractos bancários da família, mas também não sugere que a sua eventual fortuna pessoal se deve aos ovos que vendia em criança, como a filha de José Eduardo dos Santos. Terão sido a educação e a observação do intenso labor familiar que lhe forneceram essas noções sobre os benefícios do trabalho. O certo é que daí em diante aprendeu «a poupar o necessário para evitar depender de terceiros». (Devemos concluir que todos os que dependem de terceiros não sabem poupar?)
Não parece haver grande mérito em poupar quando se herda, pelo menos não mérito suficiente para moralizar arrogantemente sobre o trabalhador comum, como Maria de Fátima faz com regularidade, pelo que quando fala em saber poupar talvez se refira ao dinheiro que põe de parte do seu salário de historiadora. Mas nesse caso isso poderia significar que Maria de Fátima não soube poupar a herança, o que faria dela uma vulgar estroina, ou que aquela lhe foi confiscada no pós-25 de Abril — e isso explicaria o seu ódio às classes baixas. Sim, porque nisto de ódio de classe há uma reciprocidade, como resulta evidente da leitura da prosa bonifácia.
A verdade é que cada proletário deste mundo ambiciona ser um daqueles «burgueses» de que Maria de Fátima tanto se orgulha de ser. O que acontece é que a maioria deles não nasceu numa família rica, não teve um «Pai», com ou sem maiúscula, industrioso como o dela. E não tem culpa disso, uma culpa que deva expiar pagando proporcionalmente mais impostos do que os «ricos», ou que consiga expiar apenas trabalhando «mais e melhor», como Bonifácio de algum modo sugere.

Uma crise instalou-se no país há vários anos e só por profunda falácia (ou exacerbado e patético orgulho de classe) se pode dizer que a culpa foi dos pobres ou remediados. Na última legislatura aumentou-se «brutalmente» a carga de impostos, sobretudo dos assalariados. Não chegou para resolver o problema, pelos vistos. Será então assim tão escandaloso que, antes de fragilizar ainda mais os trabalhadores por conta de outrem ou de os condenar ao desemprego (e lá se vai a teoria do «trabalhar mais e melhor»), se procure que novos impostos recaiam sobre quem, ficando um pouco menos rico, não ficará certamente pobre? O que há nisto de imoral?

Nem todos acreditamos que «em Portugal há muitos pobres porque há poucos ricos», já não acreditamos na pirâmide de champanhe, por gira que seja a ilustração, e parece haver um bom número de estatísticas e estudos a dizer o mesmo, incluindo um apoiado pela pouco plebeia Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Embora aborde assuntos económicos, o artigo de Maria de Fátima Bonifácio não se dá muito ao trabalho de atacar Mortágua por propor um imposto que afastará investidores, como outros fazem, talvez com mais pudor em exibir o seu orgulho de classe. Não está no artigo encenado, como é mais habitual, um confronto entre a solução dos impostos e, por exemplo, a solução do emagrecimento do Estado. É mais franco o artigo de Maria de Fátima e por isso mais esclarecedor. A sua é simplesmente ou sobretudo uma reacção alérgica, uma repulsa snob, uma mais aristocrática do que burguesa indignação de classe.

P.S. E agora, como o amigo de Rui Bebiano, vou ali aprender russo para ver se leio Marx no original.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Sanções e Sansões

Ninguém verdadeiramente franco absolve Portugal e os portugueses da soma de erros de gestão que nos expuseram ao pós crise de 2008. Era voz comum do povo nas décadas de 80 e 90 do século XX que «ainda havemos de amargar isto». «Isto», como todos o que não viveram em Marte nesse tempo se lembram, eram os subsídios da CEE e as políticas com eles relacionadas. Portugal não foi apenas desprevenido e crédulo — foi em parte mandrião e, fraco elogio, bastamente chico-esperto.
Acontece que a União Europeia — e, por isso, os países que determinaram, condicionaram ou avalizaram as políticas — , não ignorava o que se passava e, pelo contrário, em muitos aspectos o estimulou ou mesmo concebeu. Fazia parte do «acordo» europeu Portugal ser assim: pouco produtor e sobretudo consumidor. Passivo.
Ora, as manigâncias que fizeram de 2008 uma data a reter nos anais da História, e que na verdade tiveram pouco que ver com os tugas, levaram a um rearranjo apressado da coisa europeia. De repente, o ecossistema já não era estável e solidário ou subsidiário, cada parte dele tinha de se valer a si mesma. Portugal fora portanto duplamente estúpido: pela maneira frequentemente estroina como fez a vidinha e pela postura imprevidente que escolheu no seio do clube europeu.
Dito isto, o actual jogo das sanções é tristemente previsível. A União que deixou sair a Inglaterra por ser incapaz de se reformar ou de se assumir, a mesma compungida União que no dia seguinte reuniu ressabiadamente a seis, a União que desenhou programas de austeridade fracassados, anda agora a ameaçar as suas partes fracas, como de resto tem feito desde 2008. Isso fá-la sentir-se forte, rigorosa e eficaz. É um fetiche, claro. E qualquer um que tenha visto «‘Allo, ‘Allo!» sabe como os teutónicos são fetichistas.
Também fetiche é, internamente, a prosa dos nossos jornais de direita (quase todos, actualmente) e dos respectivos escribas. O Observador e João Miguel Tavares precisam das ameaças de sanções para continuarem a parecer argutos e responsáveis. Cada adiamento é uma bolsa de oxigénio. Porque para o Observador e JMT mais importante do que o país, a sobrevivência do país na sequência deste rol de culpas internas e externas, é terem razão — terem razão à direita, que quase sempre significa ter razão contra os mais fracos. Todos sabem que a aplicação ou não aplicação de sanções tem mais que ver com os apetites e os ânimos em Bruxelas ou em Berlim do que com qualquer racionalidade intrínseca da coisa europeia, mas Tavares & Companhia insistirão, teimosamente — porque, uma vez vestida a fardamenta da moralidade unívoca, os tecidos agarram-se à pele.  

Não há que os defenestrar, estes nossos Vasconcelos, tanto porque a espaços é preciso ouvi-los (conceda-se-lhes isso) como porque não se prevê que cair de costas no lajedo os ajude no desfardamento. Só caindo-lhes o lajedo em cima. 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Existencialismo automóvel

Estou a envelhecer. Antes acordava a meio da noite a questionar-me se chegara a estacionar o carro ou se simplesmente o parara no meio da rua e subira assobiando as escadas de casa. Hoje espreito frequentes noites da varanda se o carro ficou estacionado numa perpendicular perfeita ao lancil e com distâncias cívicas aos automóveis dos vizinhos.

Pensando bem, talvez isto não seja envelhecer, talvez seja o legado merkeliano a frutificar em mim. Se um destes dias acordar com o ímpeto irrevogável de trocar o meu ineficiente veículo meridional por um produtivo BMW é porque a doutrinação germano-passista surtiu efeito. E se tiver dinheiro para o fazer é porque afinal a troika foi uma boa ideia.

Mas se, como é mais certo, amanhã acordar a rir-me por ter vãs preocupações nocturnas com o parqueamento de uma viatura que o banco levou, fico feliz. É sinal de que no meio da desgraça não perdi o humor.
Embora esteja a envelhecer.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Um café no Agueiros

Juro que queria ter ido a Felgueiras esta semana. Nem toda a gente ali tem culpa do culto fatimida que durante anos vigorou no concelho, e de resto essa é uma religião partilhada pela maioria dos compatriotas, com uma ou outra variante regional no que ao orago diz respeito. A cidade tem um teatro bonito restaurado com franco optimismo há poucos anos e há nas redondezas uns cafés simpáticos. Não tanto pela decoração, mas pelo serviço. O Agueiros, por exemplo. Ah, um cimbalino, uma água das Pedras e um boletim do Euromilhões no Agueiros, em Felgueiras. Fica-se tão bem disposto que apetece ir logo pagar 20 milhões de impostos e desaparecer por uma década ou duas no sigilo bancário. Isso e substituir a foto de perfil no Facebook por um boneco das caldas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Uma semana de férias

Sempre gostei de gente encurralada. Assim de repente lembro-me de um pelotão americano no Estreito de Bering à espera dos russos num filme sobre a terceira guerra mundial, Tex Willer numa colina à espera dos índios, uma multidão sozinha em casa à espera de zombies em ene variações cinemáticas sobre o mesmo tema e um escritor de asa ferida atolado numa cabana setentrional à espera do degelo da Primavera. Fascina-me a tensão da espera. Ou talvez me fascine a sensação de isolamento, de solidão extrema, tipo último homem na terra face ao seu destino. Eis porque gostei de Eu Sou a Lenda (até aparecerem outros humanos).
A neve é um bom contexto para histórias de encurralados e/ou solitários. Eu, que me vejo com frequência masoquista na posição de encurralado, odeio que não neve neste país de brando clima. Abasteci a despensa de conservas para o dia em que nevasse para uma semana e de cada vez que recorro a elas é apenas porque há uma crise económica, forma pífia de encurralamento.
Um dos males de se ser adulto fora da ficção é estar-se encurralado e não se poder simplesmente ficar em casa à espera dos zombies, como Penélope à espera de Ulisses mas com menos carinho e mais zagalotes. Quando se é adulto e não se é personagem de um filme ou de um livro, como é minha triste condição, um tipo tem de sair para conviver com os zombies, fingir-se um deles, agir como eles, com o mesmo tipo de prazeres e ambições.
Por isso quando, a propósito de férias, me perguntaram qual o meu local de sonho para uma semana em Portugal eu respondi sem hesitar: «a Herdade da Coitadinha, Barrancos».
Que era um fim-de-mundo, disseram com pasmo depois de eu explicar onde ficava. Exactamente. Se o limite é o território nacional, não vejo onde possa desejar mais estar do que naquele belíssimo cu de judas.
Não falo de cor. Já lá estive e sei bem o quão isolado e desejavelmente pouco frequentado é o sítio. Estudei-lhe a geologia e parece-me solo pouco consistente. O castelo de Noudar ali perto já viu algumas das suas fundações cederem com inveja da Torre de Pisa. Tenho esperança de que quando lá me conseguir hospedar por uma semana se abram entre mim e a civilização barrancos como fossos de profundidade Senhor dos Anéis (não aquelas valazitas que hoje dão nome ao sítio) e que a assim a minha semana se torne residência definitiva. Confio na bondade humana para me fazer descer víveres em pára-quedas, mas estou disposto a enganar-me nesse item e a viver de raízes.
Ah, ir uma semana para a Herdade da Coitadinha e já não sair. Livros e uma carabina, eis a minha bagagem. Livros para as necessidades básicas da vida e a carabina para a eventualidade de apodrecidas visitas indesejadas. Isso e uma nevada canadiana em Barrancos. Mas canadiana de Grise Fiord, não de Toronto. Nos terraços da Herdade da Coitadinha, que já experimentei, está-se como nos terraços de Davos (e o tempo é igualmente relativo).

Não peço muito mais para as minhas férias. Talvez uma mantinha a cobrir as pernas, se realmente nevar.

domingo, 6 de julho de 2014

É caro e ineficiente manter o interior: encerra-o e deita fora a chave

Vasco Pulido Valente costuma dizer que este Governo não é neoliberal, e de facto talvez Passos Coelho não tenha conseguido ir tão longe quanto a casta desejaria em algumas áreas. Mas em várias medidas já concretizadas e em muitas outras planeadas o menino-cantor, com a sua melena beta e ar de sacripanta, é merecidamente o orgulho dos thatcherianos meridionais e setentrionais. É, por exemplo, um empenhado darwinista social (sector privado contra função pública, professores contra professores, jovens contra velhos, tudo tem promovido) e só não encerrará definitivamente o interior se o interior, por vezes tão irritantemente tradicionalista e atávico, não recuperar por um dia velhos hábitos e não se munir de varapaus e chuços para o correr daqui para fora da sua zona de conforto.

A propósito disto: 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Problemas de habitação, no centenário de Sarajevo

No Verão de 2012, o jornalista Tim Butcher foi às profundezas da Bósnia-Herzegovina procurar a casa de Gravilo Princip, o assassino do arquiduque Francisco Fernando da Áustria. Quando encontra o que resta dela, pensa:

«Aquilo era uma casa europeia habitada por uma família inteira no início do século XX, mas fazia-me lembrar as choupanas com que me deparava frequentemente na África rural. O princípio era exactamente o mesmo: um chão de terra batida numa habitação construída com paredes de pedra, sob um telhado feito de madeira, colmo ou ramos apanhados localmente. Uma taxa de mortalidade infantil que podia matar seis dos nove filhos da família Princip soava mais a África do que a Europa. O mundo desenvolvido podia desesperar perante os problemas sistémicos da África moderna, mas estar ali, naquele jardim de Obljaj, ensinou-me como grande parte da Europa estivera recentemente em situação similar.»*

Duas décadas depois da morte de Gravilo, a minha mãe crescia numa casa similar à do sérvio-bósnio que serviu de gatilho à Primeira Guerra Mundial. Um compartimento de terra batida para a família, um compartimento adjacente com chão de carquejas para o gado. Como Gravilo, a minha mãe cuidou dos animais em criança, afastou lobos com paus e pedras. Não abateu nenhum arquiduque no final da adolescência, mas um dos seus filhos escreveu um romance onde se fala de «terrorismo inteligente».

Descontada a boutade pateta, há decerto uma maldição sobre domicílios impróprios. Resolver problemas de habitação é talvez um bom exorcismo para casas-assombradas. A Europa devia lembrar-se.  

* A partir do muito interessante excerto de O Gatilho, de Tim Butcher, publicado na LER de Junho.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Profissão de (pouca) fé

Há quem ponha águias, gnomos, leões, sereias, querubins, senhoras-de-fátima ou cristos-redentores. O kitsch na estatuária doméstica não tem limites e o jardim de uma vivenda é, para mal da vizinhança, propriedade privada.
Mas se o jardim se transforma em horta, por força do “ajustamento”, o que passa a ser um cristo de braços abertos ali plantado? Uma confissão de impotência ou um aggiornamento? Talvez uma resignação: na impossibilidade de expulsar os vendilhões do templo, o filho de deus gosta de se saber útil a espantar os pardais do quintal. É isso ou o desemprego.

[Visto mas não fotografado, ao contrário desta outra aparição, que teve direito a post e foto:]

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Mau augúrio

Não sou supersticioso nem iniciado em filosofias orientais como o Feng Shui, mas sempre que posso oriento as camas onde durmo para sul. O tempo cinzento afecta-me o humor, quebra-me o ânimo, e a sul há uma expectativa de sol, de bom tempo. Já aconteceu deitar-me com os pés para a cabeceira numa cama norteada apenas porque queria acordar bem-disposto. Saber-me de cara virada ao sol, ou orientado para latitudes onde a probabilidade de sol é maior, fornece-me a réstia de conforto que estar vivo exige. Por isso os quartos onde durmo, insensivelmente projectados sem orientação solar, têm por vezes aquele ar desacertado, de coisa fora do lugar (a cama).

Talvez esta fuga à mobilação prevista exerça a sua influência sobre as minhas ideias, a minha psicologia. Mas como disse, não sou supersticioso. Mesmo que tenha ficado preventivamente maldisposto quando me disseram que amanhã iria acordar com um dia de chuva. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Revista de imprensa e blogosfera

Os conservadores, como aquelas pessoas que encaixam a realidade nas previsões do Zodíaco, discutem entre si de que forma a sua bibliografia muito culta e cool explica a actualidade. Para fingirem solidariedade social, concedem que se dê uma atençãozita ao trabalho de Thomas Piketty sobre a desigualdade económica. Vasco Pulido Valente, pelo seu lado, foi ler mais um livro de história da I Guerra Mundial que explica, claro, como o Estado Social e qualquer forma de socialismo são insustentáveis. Os comunistas à antiga andam excitados com as conquistas da Rússia e repetem para si mesmos que são direitos e benfeitorias. Putin, vê-se pelas fotos do fim-de-semana, anda literalmente inchado de orgulho com o sucesso das suas campanhas (há quem diga que é botox, mas são calúnias, macho russo não estica o rosto, é ilegal). Na Coreia do Norte, diz-nos um jornalista da Lusa, afinal não se deitam os tios aos cães e há liberdade de penteado (que é, como se sabe, um requisito mínimo para a liberdade de pensamento, que sob o couro cabeludo se abriga). Já só faltam 76 dias mas a Europa parece mais bem preparada para o centenário de Sarajevo do que o Brasil para o Mundial de Futebol.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Imprudência

Com os cada vez mais evidentes sinais de regresso dos fascismos à Europa (e ao poder; a originalidade da Hungria não durará), com um clima político a leste cada vez mais prussiano, a direita continua, com moral de inquisidor, obcecada em punir os países e as pessoas que, na opinião dela, viveram acima das suas posses. A direita é muito estúpida, conivente ou imprudente. E receio ter escrito imprudente apenas por cortesia ou fair play.

terça-feira, 25 de março de 2014

JRS x JS - 2.º round

Entretanto percebi melhor qual o formato do programa (não vejo televisão, não sabia) e porque o desvio de JRS causou indignação. Ora bem, o facto de se tratar de um programa que procura saber a opinião de José Socrates não dispensa os jornalistas de fazer o seu trabalho. Errados estão todos os outros jornalistas que fazem de naperon ou de figurantes nos programas de Marcelo e afins. Se a ideia é que os tipos falem sem contraditório, o correcto seria pô-los sozinhos em frente à câmara. Os separadores de temas poderiam ser quadros de legendas, como nos filmes mudos, ou mão-de-obra requisitada à Elite Models, não gente com carteira de jornalista. JRS pode ter mostrado um excesso de zelo direitista (uma agenda pró-governamental), mas antes isso do que um daqueles cães que antigamente se punham nos carros e se limitavam a acenar com a cabeça. O papel do jornalismo é perguntar, questionar, confrontar, e não só quando isso nos agrada.

segunda-feira, 24 de março de 2014

JRS x JS

Vai para aí celeuma por causa da entrevista de José Rodrigues dos Santos a Sócrates. Não gosto de nenhum dos dois. Vi a entrevista. Rodrigues dos Santos fez bem em confrontar Sócrates com afirmações suas do passado. É para isso que servem os jornalistas, não para pés de microfone. JRS fê-lo com particular prazer? Acho que sim, mas o que importa é a utilidade da coisa, e tinha-a. Em contrapartida, Sócrates fez o seu papel, alertando para os contextos. Não o achei particularmente irritado, ao contrário do que para aí também se diz. E acho que se saiu relativamente bem na sua argumentação. Há, de facto, contextos que convém não esquecer, embora a muitos desse jeito.

P.S. Já agora, um exercício hilariante seria confrontar Passos Coelho com as suas afirmações pré-Governo e ver que "contextos" invocaria ele.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Efemérides

Olhando o país e o mundo, as minhas indagações remontam a 1914 e 1939 e ao que sentiam os tipos de 45 anos que eram resgatados da reserva para um qualquer contingente activo. Ou talvez, na verdade, indague mais atrás na História, 1908 e um voluntariado na Carbonária.

sábado, 15 de março de 2014

«Os senhores professores», disse ele

Anteontem ouvi na rádio Passos Coelho acusar algumas universidades de manterem cursos sem procura e sem pertinência apenas para «os senhores professores» poderem dar aulas. Não é a questão da racionalidade da oferta universitária que aqui me interessa (sobre isso já discorri antes de haver crise). É o tom, a forma como Coelho expeliu aquele «senhores professores». Há expressões que dizem tudo, traem pensamentos e sentimentos. O Primeiro-Ministro naquela frase não acusou apenas as universidades de irrazoabilidade — achou também abusivo que os senhores professores quisessem dar aulas. Sem o dizer, achou absurdo que os senhores professores quisessem trabalhar.

Vinda de um Primeiro-Ministro que se opôs a qualquer medida capaz de criar emprego, vinda de um PM que favoreceu com a alegria e a jovialidade dos fanáticos a degradação do emprego (ou quando muito o emprego com salários de insulto), esta sua «racionalidade» na organização do Estado parece tão científica e altruísta quanto a «medicina» de Josef Mengele.

quarta-feira, 12 de março de 2014

A vitoriosa trimestralidade da LER (1)

O Correio da Manhã, esse pândego, considerou uma boa notícia a LER passar (ou regressar) a uma periocidade trimestral. Pelo menos a seta junto à informação apontava para cima (recebendo como troco uma farpa de Rui Zink no Facebook). Para mim, esta alteração pode de facto ser uma boa notícia: se a revista aumentar o conteúdo, como prometido, e mantiver o preço de 5 euros, talvez, bem contados os trocos, possa voltar a comprá-la.

Mas esta renovação da LER («sem lamentos nem desculpas») só é uma vitória ou uma boa notícia porque estamos demasiado habituados a más notícias. Podemos, nestes tempos de cinza, considerar uma vitória a LER conseguir manter-se, ainda que trimestralmente; podemos considerar uma boa notícia a LER simplesmente não acabar, como seria possível e de certo ponto de vista até provável. Mas estas são as vitórias simbólicas da Resistência, destinadas a manter o moral. Verdadeira vitória e boa notícia sem sombra de eufemismo seria a LER renovar-se e aparecer com «mais páginas, mais reportagens, mais profundidade e densidade» mantendo a edição mensal.

Assim, concluímos apenas que o país não tem dinheiro nem leitores suficientes (ou suficientes leitores com dinheiro, numa versão optimista) para uma revista mensal de livros.

Assim, a muito custo afastamos o motejo: de vitória em vitória até à derrota final.