Mostrar mensagens com a etiqueta Cemitério. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cemitério. Mostrar todas as mensagens

09/04/2012

Cabrinhas no Prado

Davallia canariensis (L.) Sm. epífita em Melia azedarach L. no cemitério do Prado do Repouso (Porto)
Cabrinhas & caracóis
Evocação do poeta e naturalista Augusto Luso (1827-1902) 
— texto originalmente publicado no Casal das Letras

Na freguesia de Cedofeita, no Porto, há dois liceus que distam 400 metros um do outro: o Rodrigues de Freitas, que noutros tempos era só para rapazes, e o Carolina Michaëlis, que era só para meninas. É uma distância para fazer toda em linha recta, não fossem as pequenas correcções de trajectória a que obrigam os seis lanços de escadaria no final. A rua que possibilita o rápido trânsito do masculino ao feminino tem o nome de Augusto Luso: poeta e professor 1827-1902, é o que diz a placa. Nada mais apropriado do que homenagear um professor com uma rua que liga duas escolas.

A imortalidade toponímica é algo ingrata, pois uma rua não é um compêndio de história e não guarda memória de feitos nem de obras publicadas. Custa a crer que certos nomes petrificados em placas de ruas tenham pertencido a gente de carne e osso. Mas de Augusto Luso – de seu nome completo Augusto Luso da Silva, e que também se assinou A. Luso, A. Luso da Silva ou simplesmente Luso – é possível, graças à Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a outras obras de referência, conhecer o essencial da vida e obra. Podemos até, nas páginas do portal TriploV, ler uma boa amostra do que escreveu em prosa e e em verso sobre, por exemplo, caracóis e ornitorrincos. Se a isto juntarmos que Augusto Luso foi professor de geografia e autor de compêndios para o ensino, compreendemos que ele não foi um literato convencional. O seu estudo pioneiro sobre moluscos terrestres e fluviais de Portugal, publicado em fascículos entre 1868 e 1872, é ainda hoje citado por malacologistas.

Outra prova de que Augusto Luso foi um naturalista sério e minucioso está no Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores, aparecido em 1872 e 1873 (volumes III e IV) no Jornal de Horticultura Prática, influente revista mensal sobre jardinagem e agricultura que se publicou no Porto entre 1870 e 1892 (e que está disponível on-line neste endereço). Confessa o autor no preâmbulo que a sua ambição era fazer um levantamento do país inteiro, mas, por lhe faltarem apoios, vê-se limitado aos arrabaldes da sua cidade. Ainda assim, a lista de fetos, musgos, hepáticas, líquenes e algas por ele herborizados ultrapassa a centena de espécies – e, pelo menos nos fetos (dos outros nada sei dizer), inclui quase todos aqueles que são hoje conhecidos, alguns sob outros nomes, como espontâneos na região do Porto. De cada planta, o autor faz uma breve descrição e indica alguns locais de ocorrência. É talvez o primeiro texto em língua portuguesa que torna acessível a leigos aquilo que estava confinado a tratados científicos como a Flora Lusitanica (1804) de Brotero e a Flore Portugaise (1809-1840) de Hoffmannsegg & Link.

Se o fascínio por lírios, narcisos e outras plantas vistosas é facilmente contagiante, já o mesmo não se pode dizer de fetos, musgos e afins; e, ao contrário do que sucede com pássaros, observar lesmas ou caracóis nunca foi uma ocupação com muitos adeptos (comê-los já será outra história). Valorizar a natureza para além de uma concepção estreita do que é «belo» ou «útil» para nós, humanos, é um passo que ainda hoje muitos são incapazes de dar. Eis o que escrevia Augusto Luso em 1872: Assim como, entre os animais do nosso país, os moluscos e, principalmente, os terrestres e fluviais, são ignorados de quase todas as pessoas, da mesma sorte as Criptogâmicas não são mais conhecidas entre os vegetais, que enriquecem e adornam o nosso Portugal. Desejando eu conhecê-las e dá-las a conhecer, forçoso me era uma exploração e uma classificação.

Está bom de ver, portanto, que Augusto Luso não demandou Áfricas. De facto, não foi além de Aguiar de Sousa e de Avintes: o seu âmbito de exploração cabe num raio de 13 quilómetros em redor do Porto. Mas, além de a observação e recolha de plantas exigirem tempo e paciência, viajar no terceiro quartel do século XIX não era o mesmo que fazê-lo hoje. Augusto Luso fala do vale do rio Ferreira, em Valongo, como se reportasse as maravilhas de um lugar longínquo: Se não fora outro o meu fim e o temer abusar da paciência dos leitores, descreveria, como pudesse, alguns destes sítios, magníficos e surpreendentes quadros, escondidos à maior parte das pessoas, convidando-as ao passeio, aonde o belo horrível do despenhadeiro, às vezes se apresenta, trazendo sempre o sublime. Sendo ele porém um poeta, não pede licença aos leitores para encabeçar a sua listagem com um intróito de 14 quadras em verso decassilábico. Eis uma delas:

Cresce a alegre Davallia nos rochedos
Sobre os rios pendentes, e fendidos
Pela força do gelo. Eis reunidos
Gratos Aspídios e Asplénios ledos.

Não podíamos estar mais longe da aridez impessoal que hoje é de lei em artigos científicos. E impõe-se a pergunta: que é feito da alegre Davallia, dos Asplénios ledos, dos gratos Aspídios? Em geral estão bem e recomendam-se. Os fetos do género Asplenium são dos mais comuns em muros e fendas de rochas de norte a sul do país. Os Aspídios também se vêem muito, mas mudaram de nome: um deles, vulgarmente conhecido por fentanha, chama-se agora Polystichum setiferum; outros, como o feto-macho, integram o género Dryopteris. São fetos que lançam tufos de longas folhas arqueadas, às vezes com mais de um metro de comprido, e que vivem em bosques sombrios e junto a linhas de água. Quem perdeu grande parte da alegria foi a Davallia canariensis, que Augusto Luso considerava, numa apreciação ainda hoje consensual, como «o mais formoso feto do nosso país». Conhecido por feto-dos-carvalhos (por gostar de se empoleirar nessas árvores) ou cabrinha (por causa do rizoma lenhoso revestido de escamas bronzeadas), as suas folhas lembram os naperons de renda com que as nossas avós enfeitavam cristaleiras. A cabrinha é espontânea na Península Ibérica, Marrocos, Madeira e Canárias; e, ainda que no continente português seja escassa e esteja confinada ao litoral, chega a ser abundante na serra de Sintra e em alguns velhos carvalhais do Alto Minho. Nos rochedos pendentes sobre o rio Sousa ou o seu afluente Ferreira é que ela já pouco salta. As serras em volta converteram-se em eucaliptais, o bucolismo foi ferido de morte por postes de alta tensão e viadutos de auto-estrada. Mas o desfiladeiro da Senhora do Salto, em Aguiar de Sousa, ainda é capaz de provocar arrepios; e, se varrermos as medonhas escarpas com um par de binóculos, encontramos aqui e ali o inconfundível recorte das folhas da Davallia, cabrinha feita águia no seu último e inacessível refúgio.

Um reencontro difícil que remata esta evocação de Augusto Luso, nome de rua, naturalista, poeta romântico e professor de geografia. Talvez ele gostasse de saber que a cabrinha, se quase desapareceu de Valongo nos 140 anos decorridos desde a publicação do seu Herbaryum Cryptogamicum, teve contudo artes de se instalar – resultado provável do seu uso em arranjos florais – em meia dúzia de árvores em Agramonte e no Prado de Repouso, os dois maiores cemitérios do Porto.

Porto, 2 de Abril de 2012

25/01/2010

A companhia dos mortos


Cemitério de Brompton — Londres


.....Mas se paro um momento, se consigo
.....Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
.....De novo, esses que amei vivem comigo
.........Antero de Quental, Com os Mortos


Em Earl's Court e Chelsea, dois bairros londrinos perto do Tamisa, abundam as praças ajardinadas, mas quase todas elas, por serem privadas, estão interditas ao público em geral. Há contudo, no limite dos dois bairros, um espaço de 16 hectares fartamente arborizado em que toda a gente pode entrar. Vêem-se lá pais e mães com crianças em carrinhos ou pela mão, gente que vem passear os cães, outros em trajes desportivos que correm disciplinadamente a sua quota diária de milhas, uns tantos menos enérgicos que se deixam ficar sentados a ler (não há falta de bancos nem de sombras). No intervalo do almoço muitos aqui vêm engolir a refeição ligeira comprada no take-away da esquina; esquilos, pombas e gralhas ficam à espreita para devorar os restos de comida. Excepcionalmente, lá aparece algum turista de máquina a tiracolo fotografando árvores e monumentos funerários.

Pois esse parque tão popular é afinal um dos históricos cemitérios de Londres, inagurado no mesmo ano (1840) em que foi aberto o cemitério de Highgate. Com um plano rigorosamente rectangular e entradas pelas duas extremidades, em Old Bromptom Road e em Fulham Road, o cemitério de Brompton, é esse o seu nome, não tem o encanto de Kensal Green, mas é de mais fácil acesso e, tal como o seu colega, tem muitas árvores (nas fotos vemos, por esta ordem, um castanheiro-da-Índia, um choupo e um plátano, mas também há tílias, áceres, carvalhos e azinheiras) e muitas flores silvestres. E, beneficiando dessa gestão inteligente que não elimina o que é espontâneo na natureza, são inúmeros os pássaros que fazem deste espaço a sua casa.

Seria sinal de sobranceiro desprezo pela actualidade desportiva não assinalar que o estádio aí em cima, mesmo encostado ao cemitério, é Stamford Bridge, morada do Chelsea Football Club. A verdade é que tal proximidade não ajuda à beleza da envolvente, mas regista a história que os dois, estádio e cemitério, separados apenas por uma linha férrea, são vizinhos um do outro há mais de cento e trinta anos. Ao longo desse período, o primeiro foi-se modernizando, enquanto o segundo regredia para um estado semi-natural. Para quem vem do norte da cidade, a necrópole serve de atalho para chegar à única entrada de Stamford Bridge, em Fulham Road. Ou pelo menos é isso que sugere o filme Eastern Promises (2007) de David Cronenberg, em que um adepto de gorro, cachecol e bandeira é lá esfaqueado quando segue num magote ululante em dia de jogo.

Uma palavra sobre o «malmequer» ou «margarida» que se vê numa das fotos. Trata-se do Leucanthemum vulgare (Vaill.) Lam., planta ruderal muito frequente em toda a Europa e também em Portugal. Antes de o leitor se regozijar por finalmente saber o nome de uma planta tão ubíqua nos nossos campos, é melhor acautelar-se. São muitas as asteráceas, pertencentes por exemplo aos géneros Bellis, Anthemis, Anacyclus, Chamaemelum e Matricaria, que dão inflorescências brancas com centro amarelo, e algumas delas estão ainda mais disseminadas do que o Leucanthemum vulgare. Então como se distinguem os «malmequeres» uns dos outros? Não existe uma regra geral simples, mas, no caso do Leucanthemum vulgare, além do formato e disposição das folhas (alternadas, com margens dentadas — clique na foto para ver melhor), há a peculiaridade de cada haste ser encimada por uma única inflorescência.

26/12/2009

O jardim que foi cemitério



St George's Gardens - Londres

A meio caminho entre Russell Square e King's Cross encontra-se, escondido entre prédios, um cemitério morto que é uma apoteose de vida. Cemitério morto porque desde há mais de século e meio ninguém lá é enterrado; e vivo por causa das árvores e de toda a fauna de insectos, pássaros e esquilos que lhe está associada. Não ultrapassa um hectare de área, mas é bem mais valioso do que aqueles jardins e parques, mesmo que amplos, onde as árvores nunca são autorizadas a crescer.

Conta a placa no local que o cemitério, um dos primeiros na Grã-Bretanha a não ficarem anexos a uma igreja, foi aberto em 1713 num terreno descampado. Em 1855, quando o cemitério teve de encerrar por sobrelotação, a cidade tinha crescido desmesuradamente a toda à volta. Rebaptizado como St George's Gardens, reabriu em 1885 como jardim público ao gosto vitoriano, mantendo-se os já então seculares plátanos a pontuar os meandros dos caminhos.

De formato rectangular truncado, alongando-se por 200 m no sentido este-oeste, com um acesso no extremo oeste e mais dois no extremo oposto, o jardim, além de nos induzir ao descanso com os bancos bem servidos de sombra, funciona como atalho aprazível, surpreendente ao primeiro encontro, para quem se desloque a pé.

02/06/2008

Necroturismo (2.ª parte)


Laburnum anagyroides

Sete anos mais novo do que Kensal Green, Highgate foi a segunda necrópole londrina que visitei em princípios de Maio. Estendendo-se por uma colina a leste de Hampstead Heath e confinando a norte com o Parque de Waterlow, é bissectado por Swains Lane, uma alameda íngreme onde desembocam perpendicularmente três ou quatro ruas residenciais de acesso reservado. Nem nessas ruas, nem mais acima, em Highgate Village, parece morar gente pobre. Mas em 1975, quando a companhia (privada) que geria o cemitério decidiu encerrar a metade oeste, a venda de sepulturas já não era lucrativa. Talvez por a cremação se ter já então vulgarizado, nem tão rica vizinhança de potenciais clientes salvou o negócio. Desde 1981, Highgate está a cargo de uma associação de amigos que recuperou o cemitério, organiza visitas guiadas à parte oeste, e mantém a parte leste em funcionamento normal.

Diz quem viu, e há muitos testemunhos na internet a confirmá-lo, que, das duas partes que compõem o cemitério, Highgate West é aquela que mais vale a pena visitar, por ser a mais monumental e misteriosa. Highgate East é uma extensão que só foi inaugurada em 1854, 15 anos depois do cemitério original, e é de presumir que não tenha sido planeada com requinte comparável. Acontece que já visitei Highgate East três vezes - e, por não querer esperar pelas visitas guiadas, nunca entrei em Highgate West. Com a ligeireza que só a ignorância permite, atrevo-me a dizer, contudo, que quem prefira a companhia das árvores à dos monumentos em pedra pouco perde em trocar o oeste pelo leste.


Karl Marx

Na verdade, mesmo entre os que prezam mais o granito esculpido do que a vida vegetal há quem se fique pelo leste, por ser lá o túmulo de um barbudo que moldou a história do século XX já depois de morto - e que, ainda hoje, perante uma audiência de defuntos onde é escassa ou nula a representação proletária, não se cansa de exortar os trabalhadores de todo o mundo a unirem-se.


Fraxinus excelsior

A ruína de muitas das esculturas e mausoléus não foi o único resultado da falta de manutenção de Highgate durante a segunda metade de novecentos: ela permitiu também o desenvolvimento de um autêntico bosque natural onde a discreta presença das pedras tumulares mal chega a recordar-nos que estamos num cemitério. Os freixos que se perfilam nas costas de Karl Marx formam uma mata espontânea tão cerrada como os nossos eucaliptais, com a diferença de abrigarem, a seus pés, uma grande diversidade de plantas herbáceas.


Anthriscus sylvestris

Por altura da minha visita, os caminhos eram marginados pelo branco de uma umbelífera (Anthriscus sylvestris) a que nós chamamos erva-cicutária ou cicuta-dos-bosques (embora ela não seja venenosa nem deva ser confundida com a verdadeira cicuta, Conium maculatum), mas a que os ingleses preferem chamar cow parsley. Combatendo a hegemonia branca da salsa-das-vacas, via-se o azul dos miosótis e dos omnipresentes bluebells. Outra árvore que em Highgate tirou partido da falta de vigilância para se multiplicar livremente foi o Acer pseudoplatanus. Encontram-se ainda cerejeiras (Prunus sp.), carvalhos e, nas partes mais compostas, bonitas árvores ornamentais como laburnos, cedros e tílias. A riqueza e importância deste habitat semi-natural levaram-no a ser declarado, em 1988, pelas autoridades londrinas, como sítio de importância metropolitana para a conservação da natureza.

26/05/2008

As portas do Paraíso



Kensal Green - Londres

......My friends, we will not go again or ape an ancient rage,
......Or stretch the folly of our youth to be the shame of age,
......But walk with clearer eyes and ears this path that wandereth,
......And see undrugged in evening light the decent inn of death;
......For there is good news yet to hear and fine things to be seen,
......Before we go to Paradise by way of Kensal Green.

......
G. K. Chesterton, The Rolling English Road (1914)


No passado mês de Abril, a junta de Baguim do Monte, em Gondomar, comunicou a todos os habitantes da freguesia e demais possíveis interessados que, até final da semana, seriam cortados os eucaliptos que tinham crescido junto ao muro do cemitério «e cujas copas invadiam e sujavam as campas». A remoção de tais empecilhos era desejo antigo do povo local, finalmente consumado graças ao tacto e elevação com que a junta tratou do assunto e à atitude colaborante dos proprietários das árvores. (Comunicado completo n'A Sombra Verde.)

Se, por artes do Maligno, se desse tal reviravolta no espaço-tempo que a mesma junta de freguesia se visse com o cemitério de Kensal Green à sua guarda, é de crer que os nossos autarcas desfalecessem de horror ainda antes de porem mãos à obra: árvores grandes e muitas, alimentado-se dos mortos e lançando ao chão cascatas de imundíssimas folhas; vegetação rompendo por entre pedras tumulares quebradas, abraçando lápides caídas ou em desequilíbrio; relvados há muito por aparar; e, por todo o lado, a exuberância indecorosa das flores silvestres. Mas em pouco tempo o brio arboricida luso faria o seu trabalho; e Kensal Green ficaria tão despido e asséptico como o cemitério de Baguim do Monte - ou, para ficarmos por Londres, como o cemitério católico de St. Mary, que com ele confina a poente.



Kensal Green - Londres

Inaugurado em 1833, Kensal Green foi o primeiro cemitério de Londres a ser concebido como jardim. [Essa mesma ideia, importada de França, inspirou os cemitérios portuenses do Prado do Repouso (1839) e de Agramonte (1855) - os quais, apesar de menos frondosos do que deveriam ser, contrastam vivamente, pela muita vegetação que acolhem, com o típico cemitério português.] Desenvolvendo-se simetricamente, com caminhos de terra batida, ao longo de um eixo longitudinal pontuado por uma rotunda arborizada, ocupa um terreno de 29 hectares na zona postal NW10, entalado entre Harrow Road e o braço do Grand Union Canal que segue até Paddington. Entre sepultados e cremados, foi a última morada de mais de 250 mil pessoas, e continua até hoje em funcionamento. Não é um cemitério para elites, embora muita gente famosa lá tenha sido enterrada (não foi esse, porém, o caso de Chesterton). Harrow Road e os bairros contíguos são pobres e pouco atraentes: a mistura étnica que potenciou o sucesso de Notting Hill não fez aqui brotar lojas trendy nem despoletou qualquer boom turístico.

Tudo somado, Kensal Green é dos sítios mais bonitos de Londres. É um lugar de morte mas também de esperança; um lugar onde a vida se perpetua na folhagem nova das árvores, no canto insistente das aves, na azáfama miúda dos insectos. Encontrei lá borboletas, pássaros e flores como em nenhum outro parque londrino. Pude admirar árvores soberbas: tílias (1.ª foto), carvalhos, áceres, azinheiras, castanheiros-da-Índia (2.ª foto), faias, carpas e até um sobreiro, coisa rara nestas latitudes. A nível do solo, o amarelo dos ranúnculos disputava a primazia a uns bluebells miscigenados, hesitantes entre o azul, o branco e o rosa (3.ª foto). E não havia campa que a natureza se houvesse descurado de enfeitar com flores frescas.

03/01/2008

Camélias e gatos em Agramonte




Há duas actividades que nada têm de ofensivo mas são proibidas no cemitério municipal de Agramonte, no Porto. São elas tirar fotos e alimentar gatos. Se cometermos a ingenuidade de lá entrar com a máquina a tiracolo, somos de imediato alertados para a primeira proibição; quanto à segunda, ela está inscrita, de forma bem visível, numa tabuleta junto ao portão. Contudo, estas interdições trazem a marca do país de brandos costumes em que vivíamos antes da chegada da ASAE e da lei antitabagista: como comprovam as fotos, nenhuma delas é (felizmente) para tomar à letra. Quanto a mim, só desrespeitei, sem compunções, a proibição de fotografar; mas pude inferir, pelo ar próspero da população felina, que há também quem tenha a caridade de a alimentar. E é consolador, no Inverno, ver como os gatos realizam a sua peculiar fotossíntese de transformar o mais débil raio de sol em bem-estar absoluto.

Pode parecer de um gosto mórbido passear no cemitério quando existe, ali a dois passos, o jardim da rotunda da Boavista. Em comparação com uma ilha no meio do trânsito, o cemitério tem a óbvia vantagem do sossego, mas não se trata apenas disso: ele é mais rico do que a rotunda em variedade de plantas, cores e perspectivas; em tudo aquilo, afinal, que faz a qualidade de um jardim. Há nele uma exuberância vegetal que está ausente do jardim em má hora requalificado. De Agramonte, já aqui mostrámos as magnólias, um cedro-do-atlas e os liquidâmbares; há também teixos, sequóias, hibiscos, extremosas, arbustos diversos e uma alameda de palmeiras (Butia eriospatha). E há, em especial, um grande número de japoneiras mais-que-centenárias que estão agora em flor e recompensam amplamente a atenção do visitante.

08/11/2007

Quercus alba


Quercus alba - Cemitério Britânico do Porto

Eis um carvalho de boa índole, que não gosta de enganar ninguém: a sua semelhança com o nosso carvalho-alvarinho (Quercus robur) é notória e reconfortante - aliás pertencem os dois ao subgénero Leucobalanus (carvalhos-brancos) do género Quercus -, mas as folhas do primeiro são maiores, mais assimétricas e com lobos mais sulcados. O Q. alba reserva o seu momento de glória para o Outono, adquirindo então uma coloração alaranjada cheia de matizes, ao passo que o nosso impaciente conterrâneo brilha logo à entrada da Primavera com o verde-alface da folhagem nova. Em tamanho e longevidade é o Q. robur quem leva a palma, mas não por larga margem, pois o Q. alba também desenvolve uma copa ampla e pode viver centenas de anos. Ambos fornecem madeira valiosa, com lugar importante na história social dos seus continentes de origem.

O Q. alba é originário da costa leste da América do Norte, do sul do Canadá ao Golfo do México. Ao invés dos outros carvalhos americanos que aqui mostrámos, é raramente visto em solo europeu: em Portugal só sabemos deste exemplar no Cemitério Britânico, tão jovem que ainda não produz bolotas, plantado há pouco mais de 10 anos em memória de alguém que lá foi sepultado. Infelizmente a placa que nos dá tal informação erra ao identificar a árvore - que não é um Quercus velutina, pois as folhas dessa outra espécie americana têm os lobos pontiagudos e não arredondados.

20/02/2007

Branco branco branco




Para não mudarmos de cor, são brancas também as magnólias de hoje: as de cima são vizinhas do Mosteiro de Leça do Balio, vivem numa propriedade que pertenceu ao notável e multifacetado engenheiro Ezequiel de Campos (1874-1965), e terão sido plantadas por ele mesmo; as de baixo compõem uma alameda à entrada do cemitério de Agramonte. Servem de alerta aos mais distraídos para a urgência de revisitar algumas das nossas árvores favoritas: na rua de Aníbal Cunha, no largo Primeiro de Dezembro, na praça da Liberdade.

01/12/2006

Árvores do Cemitério Britânico


Liquidâmbar e carvalho-americano (à esquerda) e tílias (à direita)

O Cemitério Britânico do Porto, ao contrário dos seus congéneres de feição portuguesa, não é um lugar de ostentação: não se vêem mausoléus ou outros monumentos funerários, as campas são assinaladas por simples cruzes ou lápides, e os epitáfios, quando os há, são breves. A natureza, destino último a que todos regressaremos, encontra refúgio atrás destes muros: os caminhos são de terra e não calcetados; e as grandes árvores que sombreiam o recinto, resguardando-o da dissonante visão dos prédios circundantes, não tiveram o seu crescimento atalhado pelo zelo do podador.

Primeiro lugar de enterro ao ar livre estabelecido no Porto, foi inaugurado em 1788 (os cemitérios da Lapa, do Prado do Repouso e de Agramonte só o seriam em meados do século XIX), em local fora das muralhas e bem afastado da urbe. À sua volta só existiam quintas, mas o implacável crescimento da cidade, acelerado a partir da década de 1930 pela abertura da rua Júlio Dinis, extinguiu todo esse bucolismo. O golpe de misericórdia foi, muito a propósito, desferido recentemente pela Diocese do Porto, ao construir, em terrenos que uma versão provisória do PDM do Porto chegou a propor como área verde a preservar, uma esmagadora casa sacerdotal.

Só nos podemos regozijar por este rectângulo pacato e arborizado ter ficado, não na posse da católica Diocese, mas sim na de protestantes com a sensatez bastante para nunca o quererem modernizar.

(Mais informações sobre os cemitérios do Porto aqui e aqui.)

28/11/2006

Dedicatória

A todas as árvores que têm tombado com o mau tempo.


Alto-relevo numa lápide do Cemitério Britânico do Porto

22/11/2006

Outono agarrado ao muro



Trepadeira-da-Virgínia (à esquerda e em cima) e trepadeira-do-Japão

Irmãs-quase-gémeas separadas apenas pela geografia, estas duas trepadeiras sabem muito bem o que é o Outono, pois sobre essa matéria receberam lições nas melhores escolas do mundo: a Nova Inglaterra (costa nordeste dos EUA) e o Japão. De folha caduca, com um colorido outonal que explora todos os cambiantes entre o verde, o vermelho e o amarelo, pertencem ambas ao género Parthenocissus, da família das vitáceas (onde se inclui a videira); mas, enquanto a trepadeira-da-Virgínia (Parthenocissus quinquefolia) tem folha composta com cinco folíolos de margens dentadas, a sua irmã japonesa (Parthenocissus tricuspidata) tem folhas simples com três lóbulos, muito semelhantes às das videiras.

Como forro vegetal para paredes e muros, as vantagens destas trepadeiras exóticas sobre a hera são inúmeras, e não apenas de ordem estética: por serem de folha caduca, deixam passar o sol nos meses frios; e, ao contrário da hera, não têm o mau hábito de invadir jardins e sufocar todas as plantas lá existentes.

As fotos em cima são dos muros do Cemitério Britânico do Porto.

11/01/2006

"Dressed to impress"


Bétulas em Vila Real (na Vila Velha ao pé do cemitério) - Dezembro 2003


Da minha "wish list":
...
bosque de bétulas
floresta de faias
...

09/01/2006

As pompónias são campeãs




Já aqui foi aqui sugerida uma explicação para a corpulência de algumas japoneiras no cemitério do Prado do Repouso. Embora plausível, essa explicação deixa de ser suficiente quando notamos que as campeãs em tamanho, tanto no cemitério como noutros locais que nunca serviram para essa função, são sempre, entre nós, japoneiras da mesma variedade. Na foto, vemos duas das campeãs: a primeira no Prado do Repouso, a segunda na Quinta da Aveleda. Sem uma medição rigorosa, é difícil estabelecer qual das duas é maior: a do Prado aparenta ser mais alta, mas a da Aveleda é mais entroncada e de copa mais ampla.

Esta variedade destaca-se pelas flores de cor variável, a maior parte em vários tons de rosa, mas também as tendo imaculadamente brancas. Por isso não temos a certeza de qual o seu nome: pode até tratar-se da pomponia alba, pois não é invulgar as japoneiras perderem, com a idade avançada, algumas das suas características identificadoras.



Seja como for, a versão bicolor da pompónia, além de ser entre nós das japoneiras mais antigas e de crescimento mais vigoroso, é também das mais comuns: tanto no Prado do Repouso como na Aveleda há alamedas formadas quase exclusivamente por elas; já as fotografámos nos jardins do Palácio de Cristal; e, também no Porto, quem desce a rua do Campo Alegre pode vê-las - grandes, pontilhadas de branco e rosa - atrás do muro do Colégio de Nossa Senhora de Lourdes, na esquina com a rua do Bom Sucesso.

Fotos: pva

12/12/2005

Na rota das japoneiras


Foto: pva 0512 - Camellia japonica no Prado do Repouso, Porto

Os cemitérios portugueses são, em regra, quase despidos de vegetação, e por isso talvez surpreenda saber que algumas das maiores japoneiras do Porto (e do país) estão no Prado do Repouso e em Agramonte; mas, inaugurados que foram estes cemitérios públicos do Porto em meados do século das camélias (o do Prado do Repouso em 1839, o de Agramonte em 1855), mais seria de espantar a sua ausência do que a sua afinal normalíssima presença; o que enche o olho é o tamanho que elas lograram atingir em século e meio. Dos dois cemitérios, é o do Prado do Repouso que tem as japoneiras de maior porte (como a da foto, que até nem é das maiores); em compensação, o de Agramonte tem-nas em maior número, formando extensas alamedas.

10/12/2005

Japoneira e plátano na Rota do Românico do Vale do Sousa

.

Japoneira em flor no adro da Igreja de S. Salvador de Paço de Sousa - Dezembro 2003

Há dois anos fui a Paço de Sousa com o objectivo de conhecer os carvalhos alvarinhos monumentais, considerados de interesse público, da Casa da Companhia, uma casa solarenga situada nas imediações do antigo mosteiro beneditino de Paço de Sousa. As fotografias que fiz dos carvalhos (o maior dos quais perdeu entretanto uma das suas mais imponentes pernadas) ficarão para uma outra ocasião, até porque o que mais chamava a atenção nessa tarde fosca de Dezembro, era a belíssima japoneira em flor ali logo à entrada do cemitério.
Destacava-se também entre outras árvores um imponente plátano com o tronco enclausurado numa espécie de quiosque que vende "comes e bebes".


As japoneiras em flor e outras árvores magníficas destas paragens são mais uma boa razão para se fazer a Rota do Românico do Vale do Sousa.
.

26/11/2005

Novembro

A respiração de Novembro verde e fria
Incha os cedros azuis e as trepadeiras
E o vento inquieta com longínquos desastres
A folhagem cerrada das roseiras

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia (1967)


Foto: pva 05 - Cedrus atlantica "Glauca" em Agramonte, Porto

06/09/2005

Árvores de Agramonte


Foto: pva 0509 - cemitério de Agramonte, Porto

Tal como o Prado do Repouso, também o cemitério de Agramonte tem uma grande colecção de japoneiras de porte arbóreo. Enquanto as do Prado do Repouso ganham em tamanho, as de Agramonte impõem-se pelo número. Em qualquer caso, fica prometido o regresso na época própria a ambos os locais para acompanharmos a floração das camélias.

Na foto avista-se uma das alamedas do cemitério paralelas à rua principal; além dos buxos quase rasteiros e das camélias, a alameda é sombreada em toda a sua extensão por grandes liquidâmbares (Liquidambar styraciflua). Esta espécie norte-americana ganhou nos últimos anos popularidade na arborização urbana: é de muito bom porte e crescimento vigoroso, resiste à poluição e aos maus tratos, e a cor da sua folhagem outonal é muito atraente. Na rotunda da Boavista, são liquidâmbares que formam o anel exterior do jardim; ao contrário de outras árvores, não parecem ter sofrido com as obras de reabilitação aí realizadas em 2004.

P.S. Com isto respondemos à leitora que nos pediu para identificarmos algumas árvores em Agramonte. Foi um gosto ajudá-la.

27/08/2005

Jerivá



Fotos: pva 0508 - Prado do Repouso: Syagrus sp. (em primeiro plano à esquerda; pormenor da coroa à direita) e Washingtonia filifera

A entrada norte do Prado do Repouso é pontuada por 7 palmeiras centenárias, de belo porte, que acentuam o carácter de cemitério-jardim deste espaço. Estão dispostas em fiadas distintas, duas de sentinela mesmo junto ao portão e as restantes mais atrás, a descrever meia lua.

Cinco destes exemplares são da espécie Washingtonia filifera, com folhas em leque, enfeitadas de filamentos que dão o nome à espécie, e uma saia na coroa formada pelas folhas secas que permanecem presas ao espique. É conhecida por palmeira-de-saia-da-Califórnia, nome que também alude à sua região de origem.

As outras duas são do género Syagrus e, julgamos, da espécie romanzoffiana; a ser assim, daqui a pouco tempo a inflorescência que se vislumbra numa das fotos - protegida por grossa bráctea em forma de colher, lenhosa e sulcada na parte externa - transformar-se-á numa espectacular «crina de cavalo» amarela, pendente e penteadinha. Esta espécie, de nome vulgar jerivá, é muito cultivada com fins paisagísticos no sul do Brasil e por isso temos esperança que algum amigo brasileiro nos confirme esta identificação. (Ao lado vê-se o fruto, que tem cerca de 2,5 cm de comprimento e 1,5 cm de espessura.)

Anterior na mesma série

22/08/2005

Paz aos vencidos


Foto: pva 0508 - Butia eriospatha junto ao mausoléu aos vencidos, Prado do Repouso, Porto

Os cemitérios portugueses cumprem fielmente as últimas (e primeiras) vontades de um povo dendrófobo, que nem na morte quer árvores por perto: são duras mortalhas de pedra sem o alívio de uma pincelada verde. Mas há excepções à regra: os primeiros cemitérios públicos do Porto, o do Prado de Repouso (1839) e o de Agramonte (1855), construídos na época dos grandes jardins privados e do entusiasmo generalizado pela horticultura, ainda receberam uma arborização comparativamente abundante. No cemitério do Prado do Repouso, por exemplo, há das maiores japoneiras do Porto (e do país) e uma alameda de grandes tulipeiros que se estende por centenas de metros.

Entrando no cemitério pelo largo do Padre Baltasar Guedes, encontramos o mausoléu aos revoltosos republicanos de 31 de Janeiro de 1891 com a legenda a paz aos vencidos inscrita na base; foi inaugurado em 1897, era ainda Portugal uma monarquia. À sua frente, formando esparsa cortina, plantou-se um alinhamento de magnólias-de-Soulange; a seu lado, servindo-lhe de sóbrio contraponto, ergue-se uma palmeira com cerca de cinco metros de altura. Embora pequena, é uma palmeira perfeitamente proporcionada, arrumadinha como as donas-de-casa nos anúncios antigos. A Manuela já antes aqui falou de uma palmeira presumivelmente da mesma espécie no Parque de S. Roque; concluiu-se então, com a ajuda de um amigo brasileiro, que se tratava de uma Butia eriospatha, endémica das regiões temperadas do sul do Brasil.

Também há, no Prado do Repouso, coisas bonitas em ponto grande. Lá voltaremos para as admirar.