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28/09/2022

Cárice levitante

Carex leviosa Míguez, Jim.-Mejías, H. Schaef. & Martín-Bravo


Há coisas grandes que nos habituamos a não ver, ou que vemos apenas pelo canto do olho, sem lhes darmos atenção. Parecem-nos já conhecidas, um capítulo já encerrado, e agora apetece-nos ver e apender coisas novas. Até que alguém olha melhor e conclui que houve confusão, que aquilo que está diante de nós é diferente e merece observação atenta. Fica a lição de humildade: sabemos menos do que julgamos saber, e devemos estar sempre disponíveis para testar os limites do nosso conhecimento, mesmo que com isso a nossa vaidade fique machucada.

Existe em Portugal continental e em quase toda a Europa um cárice gigante, de seu nome Carex pendula, morador de bosques ribeirinhos (amiais e salgueirais) e de outros lugares alagadiços. Destaca-se pela envergadura (pode ultrapassar os dois metros de altura) e pelas espigas longas e curvadas, algumas com uns 20 cm de comprimento, todas penduradas do mesmo lado da haste. Considerava-se que essa espécie ocorria também na Madeira e nos Açores — e, pelo menos no segundo arquipélago, ela (ou algo que se fazia passar por ela) não era difícil de observar na generalidade das ilhas. Na Madeira a situação era outra: a espécie (ou alguma sua sósia) sempre foi tida como rara; e o reverendo Richard T. Lowe (1802–1874), primeiro grande estudioso da flora madeirense, achou-a diferente da C. pendula usual e, em artigo de 1833, chamou-lhe C. myosuroides. Contudo, à luz das regras da nomenclatura botânica, esse nome era inválido por já ter sido usado uns bons antes (em 1779) para designar uma espécie totalmente diferente. Ainda assim, alguns autores adoptaram o nome Carex pendula var. myosuroides para as plantas das ilhas, presumindo que a mesma variedade, distinta da versão continental, ocorria nos dois arquipélagos.

E assim decorreram quase dois séculos, até que em 2021 foi publicado o artigo Systematics of the Giant Sedges of Carex Sect. Rhynchocystis (Cyperaceae) in Macaronesia with Description of Two New Species. Apoiados por estudos genéticos exaustivos, os autores concluem que, na Madeira e nos Açores, o que existem são plantas aparentadas com Carex pendula, mas suficientemente distintivas para constituírem espécies próprias, endémicas de cada um dos arquipélagos. A dos Açores ficou a chamar-se Carex leviosa — o epíteto, que talvez signifique levitante, vem do universo de Harry Potter. Assim se reforça a tendência recente de se reconhecerem novos endemismos açorianos: pelo menos uma dúzia nas últimas duas décadas, e há mais a caminho. A flora açoriana, embora menos rica do que a madeirense (o que se explica pela juventude do arquipélago e pela maior distância a que está dos continentes), não é tão pouco diversa como se supunha — estava era mal estudada.

Como ainda não dispomos de leitores de DNA portáteis, é conveniente que, além da divergência genética, haja diferenças morfológicas visíveis. É esse, felizmente, o caso do levitante cárice açoriano, que se distingue do seu primo continental por ter invariavelmente, no ápice das hastes, uma espiga masculina acompanhada por uma feminina (enquanto que o outro só aí tem uma ou duas espigas masculinas), e por as brácteas (os especialistas dizem glumas) serem mais compridas do que os frutos (utrículos para os entendidos), quando na C. pendula são distintamente mais curtas (ver foto).

Também nas preferências ecológicas a Carex leviosa se diferencia da sua congénere continental, já que os lugares por ela frequentados podem não ser especialmente húmidos: qualquer clareira de bosque, seja de faias, urzes ou incensos, lhe pode servir de casa. É uma adaptação ditada pelas circunstâncias, já que em várias ilhas açorianas não existem ribeiras permanentes. No Faial, onde a espécie é abundante em vários locais (por exemplo, numa das vertentes do Cabeço do Fogo), não a vimos em margens de ribeiras torrenciais (o único tipo de ribeiras que há na ilha), mas apenas em bosques comparativamente secos.

08/11/2021

Cárice na sombra

Carex lowei Bech.


Descrita originalmente em 1939 sob o nome de Carex lowei, e dedicada ao reverendo Richard Thomas Lowe, que viveu de 1802 a 1874 e foi autor de A Manual Flora of Madeira, esta cárice endémica é moradora dos vales húmidos e sombrios do norte da ilha da Madeira. É uma planta rizomatosa de porte considerável, com hastes que podem atingir metro e meio de altura, e que exibe folhas longas, finas e planas, com margens ásperas. No aspecto geral, e mesmo na ecologia, faz lembrar a endémica açoriana Carex hochstetterana: são os mesmos tufos de folhagem fina e lustrosa, as mesmas hastes arqueadas enfeitadas por espigas mais ou menos pendentes. Além disso, em ambas as espécies, os frutos (ou, mais propriamente, as utrículas) são protegidos por brácteas (ou glumas) rematadas por longas aristas (veja a 4.º foto acima e também esta), o que permite distingui-las da C. pendula ou de espécies aparentadas como a recém-descrita C. leviosa.

O que singulariza a C. lowei face a quase todas as suas congéneres, e torna a sua identificação inequívoca no período em que está em flor (de Maio a Junho), é que as espigas femininas parecem muitas vezes agrupar-se aos molhos, dando à planta um aspecto desgrenhado. Avisam os sempre picuinhas botânicos que não se trata de espigas agrupadas, mas sim de uma só espiga várias vezes ramificada. Mas, indepentemente de dominarmos ou não os detalhes, ou de usarmos ou não a terminologia correcta, é sempre bom travarmos conhecimento com uma planta de um género taxonomicamente problemático que se deixa reconhecer à primeira vista.

Quem se inicia na observação de plantas tem tendência a ignorar gramíneas, ciperáceas, juncos, fetos — todas aquelas herbáceas que, não se destacando pela floração vistosa (ou, no caso dos fetos, nem sequer tendo flores), se perdem num verde anonimato. Mas são essas plantas que ainda não aprendemos a nomear que dão vida e encanto a muitos bosques.

15/11/2020

Bunho triangular



Em 2020, nos meses agora longínquos em que gozámos de uma breve liberdade condicional, visitámos duas vezes o rio Minho. Da primeira vez, ainda em Maio, não vimos caiaques a deslizar nas águas e só nos cruzámos com duas pessoas. Do lado de lá havia quem nos acenasse numa espécie de desespero por não poder chegar mais perto. Quando voltámos, em meados de Julho, já portugueses e galegos se misturavam na ânsia de esquecer os meses em que foram impedidos de atravessar o rio. Caminhar junto ao rio, ou testar a medo a temperatura da água com os pés descalços, dificilmente poderiam ser, dessa vez, experiências solitárias. Ainda assim, são muitos os quilómetros de rio entre Valença, Monção e Melgaço, e pouca gente se dá ao incómodo de fazer centenas de metros a pé para chegar aos pontos mais esconsos. E é nesses lugares de relativo sossego que se refugiam as raridades botânicas.

Schoenoplectus triqueter (L.) Palla


A raridade que hoje mostramos dá pelo nome de Schoenoplectus triqueter; chamamos-lhe bunho-triangular por causa do caule esquinado com três faces bem marcadas. Trata-se de uma ciperácea robusta, com hastes de mais de um metro de altura, que aprecia substratos lodosos em remansos de rios ou estuários, e que, em Portugal, tendo desaparecido do litoral centro, apenas se encontra algures no Guadiana e, em muito maior número, no troço do rio Minho entre Caminha e Monção. Só há poucos anos se soube da sua presença no extremo noroeste de Portugal; mas, tirando essa boa novidade, a perda ou degradação do habitat da planta têm sido generalizados, tanto assim que ela foi incluída na Lista Vermelha da Flora de Portugal com o estatuto de vulnerável. Da mesma lista constam três outras plantas ameaçadas que também têm no rio Minho as suas principais (ou únicas) populações nacionais: a cravina-das-pesqueiras. o golfão-pequeno e a espiga-de-água.

A vida em Portugal não está fácil para os bunhos: duas outras espécies de Schoenoplectus, S. erectus e S. litoralis, figuram em destaque na Lista Vermelha. Ambas estão em perigo crítico de extinção, e é provável que a primeira, com última morada conhecida no baixo Mondego, já não exista em território nacional. Dentro do género, o S. lacustris, que se distingue por ter caules mais altos e de secção perfeitamente circular, é o único que tem dado mostras de pujança, com muitos núcleos populacionais tanto no litoral como no interior do país.

24/10/2017

Cárice peluda


Fuirena pubescens (Poir.) Kunth


Porque o deserto não é uma praia esticada até ao infinito, os beduínos preferem envergar grossos capotes em vez de optarem pelo traje sumário dos banhistas. O mesmo princípio leva certas plantas adaptadas à secura extrema (como este cacto) a cobrirem-se de pêlos para se protegerem do sol e minimizarem as perdas de água. Inversamente, as plantas que vivem em ambientes alagados pouca necessidade têm de tal resguardo, esperando nós, por essa razão, que elas sejam glabras ou a caminho disso. Esta ciperácea, amante de charcos como tantas outras da sua família, não parece estar de acordo com tal dedução, embora também não seja dos contra-exemplos mais eloquentes. A parte hirsuta da planta, a que se refere o epíteto pubescens, concentra-se na bainha das folhas, nos pedúnculos e nas inflorescências, enquanto que a parte por vezes submersa, que é a base do caule, fraca pilosidade apresenta.

O nome Fuirena homenageia o médico e botânico dinamarquês Jorgen Fuiren (1581-1628), ainda que esse género, englobando umas 60 espécies, seja predominantemente tropical e do hemisfério sul. Dessa lista, a F. pubescens é a única espécie (tangencialmente) europeia, por surgir na Península Ibéria, Itália e algumas ilhas do Mediterrâneo (Córsega, Sardenha, Baleares, Chipre, etc.), mas de resto tem uma distribuição vastíssima, abrangendo quase toda a África, o Médio Oriente, a Ásia tropical, a Austrália, a Papua Nova Guiné e muitas outras ilhas do Pacífico. Em Portugal aparece sobretudo nos charcos e represas que pontuam as grandes extensões arenosas do Ribatejo e do Alto Alentejo.

Se o habitat não ajuda a diferenciar a F. pubescens de outras espécies semelhantes (Bolboschoenus glaucus e Schoenoplectus lacustris, por exemplo), podemos notar que ela, além de ser peluda como as outras não são, é uma planta de menor envergadura, não ultrapassando, em regra, os 75 cm de altura (o Bolboschoenus atinge facilmente 1 metro de altura, e o Schoenoplectus lacustris mais que duplica essa marca).

22/08/2017

Águas entubadas



Bolboschoenus glaucus (Lam.) S. G. Sm.



Desde os humildes regatos aos grandes rios, os cursos de água assumem os mais variados tamanhos, mas todos eles porfiam por alcançar o mar. Alguns fazem-no directamente, outros entregam-se como afluentes aos que já romperam caminho para a costa. Com o crescimento das cidades, as ribeiras de pequeno caudal que as atravessavam foram sendo entubadas, por serem incompatíveis com o cimento e o asfalto ininterruptos sobre os quais nos habituámos a fazer a nossa vida. Uma vez escondidas dos nossos olhos, podiam ainda, ignominiosamente, ser convertidas em esgotos. Os lugares onde as águas, finalmente a descoberto, chegavam ao mar (ou a um rio que, pela sua dimensão, não pudesse ser ocultado) tornavam-se então focos de sujidade e de cheiros pestilentos. Porque a espécie humana sente uma repugnância paradoxal pela porcaria que ela própria produz, não é essa a vizinhança preferida de quem vai à praia para banhos de sol ou de mar. A solução era prolongar o entubamento pelo mar fora, fazendo com que a água choca saísse a umas centenas de metros da praia.

Felizmente muito mudou nas últimas décadas, e essa é uma conquista civilizacional que merece ser celebrada. Em Gaia e em Matosinhos, muitas ribeiras foram despoluídas e (parcialmente) desentubadas, desaguando agora no areal sem incómodo para os veraneantes e sem lhes pôr a saúde em risco. É até didáctico: às crianças que se entretêm a fazer castelos de areia podem agora os pais mostrar um rio em miniatura chegando à foz. Entre a flora dunar beneficiada por esta melhoria conta-se a Honckenya peploides, que vive em areias de beira-mar mas precisa de molhar as raízes em água doce. Em Matosinhos não é invulgar encontrá-la debruçada nestes ribeiritos que meandram preguiçosamente pelo areal. A sul do Douro ela rareia, e há dois ou três anos que não conseguimos detectá-la nos pontos do litoral gaiense onde costumava existir. Oxalá reapareça. Em compensação, na Aguda, onde um curso de água recém-libertado forma um pequeno charco na areia, surgiu uma população, concentrada mas numerosa, de uma das ciperáceas mais raras do país, o Bolboschoenus glaucus. Trata-se de uma planta com caules com cerca de 1 m de altura, de secção triangular, encimados por espiguetas dispostas em fascículos longamente pedunculados; no seu congénere B. maritimus, bastante mais comum em Portugal, todas ou quase todas as espiguetas são sésseis. As duas espécies vivem sempre com um pé na água, mas o Bolboschoenus glaucus é exclusivo de águas doces e o B. maritimus (que existe com abundância, por exemplo, na lagoa de Paramos) dá-se bem em águas salobras.

Se as plantas se conformassem com o que os estudiosos escrevem sobre elas, o Bolboschoenus glaucus nunca apareceria em Gaia, pois a Flora Iberica apenas reporta a sua ocorrência no centro e sul do país. Mas, para uma espécie cuja área de distribuição natural vai da Europa até à Índia, não custará muito transpor as curtas distâncias dentro deste nosso ocidental rectângulo.

09/05/2017

Praias de pouco andar



Cyperus capitatus Vand.


O regresso da chuva — amaldiçoada por aqueles que desejam que ela só caia de noite ou, se tiver mesmo de cair a horas menos amigáveis, apenas onde faça falta (campos, albufeiras) — obriga os portugueses a interromper temporariamente os ensaios para as férias de Verão. Com estas tépidas Primaveras a que nos vamos afeiçoando, a época balnear ocupa no mínimo metade do ano, e os areais que costumavam encher-se apenas em Agosto acolhem agora banhistas de Abril a Setembro. Talvez se deva lamentar o fraco empenho dos portugueses em diversificar as suas (in)actividades de lazer, mas quem mais sofre com o assalto contínuo às praias são as plantas dunares. Embora o problema seja atenuado pela instalação de passadiços nas praias mais concorridas, há plantas que se fizeram raras e poucas oportunidades terão de se reinstalar nos lugares de onde foram (involuntariamente) extirpadas.

A junça-da-praia (Cyperus capitatus), que é nativa de toda a região mediterrânica e, em Portugal, deveria aparecer do Minho ao Algarve, fez-se entre nós bastante esporádica. A crer no portal Flora-On, praticamente desapareceu a norte do Douro. As praias do litoral centro onde ainda persistem bons contingentes da espécie são aquelas que, pelos maus acessos e pela ausência de rede de telemóvel, são evitadas pelos veraneantes comuns. Planta de proporções modestas, com hastes que não ultrapassam os 40 cm, a junça-da-praia destaca-se da família a que pertence, em grande parte formada por espécies pouco vistosas, pela atraente folhagem glauca, semelhante à do narciso-das-areias (Pancratium maritimum). Tal como outras espécies que vivem em areias móveis, é dotada de um rizoma comprido, às vezes com vários metros de comprimento, podendo uma mesma planta lançar hastes bem afastadas umas das outras.

O nome junça pode ser dado a qualquer uma das dez espécies de Cyperus na flora portuguesa, das quais nove são tidas como autóctones e uma (Cyperus eragrostis) é exótica e assaz invasora. As três brácteas muito compridas onde se aninha a inflorescência são um distintivo traço comum a todas elas. Com a notória excepção da junça-da-praia, são plantas de terrenos húmidos, amiúde encharcados. A mais famosa espécie do género, que não pertence à flora portuguesa mas é cultivada em jardins aquáticos, é o Cyperus papyrus, originária de África e usada no antigo Egipto para produzir o papiro, suporte de escrita que foi um dos primeiros antepassados do papel.

13/09/2016

Lagoas de Cantanhede

Que resta de natureza num concelho como Cantanhede, onde todos os metros quadrados de terreno parecem ter sido avaramente aproveitados para algum fim? Entre pinhais, eucaliptais, vinhas, campos de cultivo, fábricas, armazéns, povoações desordenadas e vivendas avulsas, numa paisagem plana, sem maciços rochosos e sem recantos, haverá ainda lugar para o que é espontâneo? A resposta, já se adivinha, é enfaticamente positiva. Basta lembrar que os pinhais da Tocha, embora infestados por acácias, dão abrigo a camarinhas, samoucos, giestas variadas, sargaços amarelos e brancos, salgueiros-anões, meia dúzia de espécies de orquídeas, e até a um verbasco endémico da costa portuguesa. Beneficiando das estradas em estado calamitoso, da ausência de redes de telemóvel e de outros inconvenientes que afugentam os veraneantes, certos pontos do cordão dunar apresentam uma flora em muito bom estado. Avançando para o interior, e já perto da sede de concelho, o Horst de Cantanhede é uma pequena ilha calcária que, a somar a uma invejável colecção de orquídeas, logrou reunir uma mão-cheia de raridades (como esta, esta ou esta), algumas delas no limite norte da sua distribuição em Portugal.

E, rodeadas por matas de produção ou por campos agrícolas, muitas são as lagoas e charcos que pontuam as imagens aéreas do concelho. Antes da invenção do Google Earth, só quem consultasse os mapas militares se aperceberia dessa fartura de águas paradas. Não havendo diferenças de altitude, ou sendo elas quase insignificantes, as águas não se esforçam por chegar ao mar a não ser nas épocas de muita chuva. Artificiais ou naturais, essas lagoas acabam por ser o refúgio de plantas que desapareceram das zonas do país onde os habitats palustres se fizeram raros. Em Cantanhede, as populações de Utricularia australis, uma planta carnívora aquática com flores amarelas que fazem lembrar as das linárias, devem ser as maiores do país.

A freguesia de Cantanhede com maior número de pequenas lagoas talvez seja a de Febres; um dos lugares da freguesia tem precisamente o nome de Lagoas. Será apenas coincidência que uma terra com tantas lagoas e charcos se chame Febres? O senso comum considera (ou considerava) tais lugares como viveiros de mosquitos transmissores de infecções — ou seja, causadores de febres. Mas, como o nosso clima não é tropical e a água faz falta, e como um ecossistema em equilíbrio raramente é fonte de pragas, é preferível deixar as lagoas em paz em vez de tentar secá-las. Além do mais, mesmo não se aconselhando mergulhos, as lagoas são bonitas, com margens agradavelmente providas de sombras para acolher famílias merendantes.



Schoenoplectus lacustris (L.) Palla


O Schoenoplectus lacustris, popularmente conhecido como bunho (embora o mesmo nome se dê a uma espécie de menor porte, Scirpoides holoschoenus, comum em todo o país), é uma ciperácea de quase três metros de altura que guarnece profusamente duas das mais recatadas lagoas de Febres. Como planta rizomatosa que é, forma densos aglomerados na borda das lagoas, suprindo a falta do caniço (Phragmites australis), que talvez prefira substatos mais arenosos. As hastes deste bunho, quase destituídas de folhas (que estão em regra reduzidas a bainhas), são grossas, com uns 2 cm de diâmetro, e têm secção perfeitamente circular. As inflorescências, formadas por várias dezenas de espiguetas cada uma com 1 ou 2 cm de comprimento, surgem como cabeleiras despenteadas no topo das hastes, e a floração, que começa na Primavera, prolonga-se pelo Verão dentro. De acordo com a Flora Ibérica, a espécie deveria estar presente em todas as províncias portuguesas, mas no portal Flora-On só se dá conta de ocorrências no centro e sul do país. A mesma Flora Ibérica considera, além da subespécie nominal (representada nas fotos), a subsp. glaucus, que vive em sapais e em estuários e tem dimensões menores.

O nome galego (e espanhol) do Schoenoplectus lacustris, que é antela, recorda um dos piores actos de destruição da natureza levados a cabo no país vizinho ao longo do século XX. A planta deu nome à lagoa de Antela, uma das mais extensas zonas húmidas da Península Ibérica: com 40 Km^2 de área, era várias vezes maior do que a nossa Pateira de Fermentelos. Situada na província de Ourense, a cerca de 600 m de altitude, a lagoa foi drenada em 1959 por ordem do governo de Franco, que justificou o ecocídio pelo aproveitamento agrícola dos terrenos e como medida para erradicação dos mosquitos.

02/02/2016

Segredos da Pipa (2)


Lamarosa, Coruche
Continuamos nas margens da represa da Pipa, cautelosos para não pisotear aquilo que as vacas, retidas pela cerca de arame, não tiveram oportunidade de estragar. A mesma cerca deveria ter-nos impedido a aproximação, mas já se sabe que isto de botanizar é um regresso aos livros de aventuras juvenis, em que uma porta fechada é um convite a entrarmos pela janela.


Cyperus flavescens L. [= Pycreus flavescens (L.) P. Beauv. ex Rchb.]
São duas as ciperáceas hoje na montra, ambas amareladas e a primeira denunciando isso mesmo no epíteto flavescens. Incluída por Lineu no género Cyperus, foi transferida pelo naturalista Palisot de Beauvois (1752-1820) para um novo género a que chamou Pycreus, mas a proposta não teve acolhimento unânime. Ambos os géneros são caracterizados por espiguetas achatadas, com os florículos organizados em duas fiadas opostas, mas no género Pycreus, tal como delimitado por Beauvois, os aquénios não são marcados por um sulco dorsal, ao contrário do que sucede no género Cyperus sensu strictu. É uma diferença imperceptível a olho nu e que, para ser confirmada, exige a colheita da espigueta e o uso de uma boa lupa. Em todo o caso, o Pycreus (ou Cyperus) flavescens, que tem uma ampla distribuição por três continentes (Europa, África e América) e em Portugal faz o pleno do continente, Madeira e Açores, é fácil de reconhecer pelo seu pequeno porte (7 a 30 cm de altura) e pelo molho de espiguetas amarelas. Muito parecido, mas com espiguetas de um castanho quase negro, é o Cyperus fuscus, que vive também em habitats temporariamente encharcados.

Pycreus é um óbvio anagrama de Cyperus. Outros exemplos do mesmo teor que mostram como os botânicos gostam de brincar com as palavras são Mantisalca (anagrama de salmantica) e Logfia (anagrama de Filago).


Fimbristylis bisumbellata (Forssk.) Bubani
Baptizada com o polissilábico nome de Fimbristylis bisumbellata, esta ciperácea fica, com os seus 15 cm de altura máxima, muito aquém da grandeza que o nome promete. Traduzido à letra, Fimbristylis significa estilete fimbriado ou franjado, enquanto que bisumbellata se refere, presumivelmente, à nada evidente disposição das espiguetas em dupla umbela (já que estamos em maré de anagramas, bilambuzata seria um bom adjectivo para uma criança com um chupa-chupa na boca). Ainda que tenha alguma semelhanças com os Cyperus / Pycreus, a Fimbristylis diferencia-se bem pelas espiguetas arredondadas (não achatadas) com os florículos dispostos em espiral.

Em Portugal, a Fimbristylis bisumbellata é muito pouco comum (veja aqui o mapa de distribuição) e só aparece em território continental. Trata-se porém de uma espécie quase cosmopolita, presente como nativa nos dois hemisférios e, a julgar por esta página, muito disseminada pelas regiões tropicais ou subtropicas da Ásia, África e Austrália.

04/08/2015

O charco na pedra


Isolepis setacea (L.) R.Br.



As ciperáceas, como as gramíneas, são feitas para não serem notadas. Mesmo quando cobrem vastas superfícies, a nossa ignorância e desatenção fazem delas uma esbatida imagem de fundo que designamos por nomes imprecisos como "ervas", "juncos" ou "canas". Além de serem pouco chamativas, algumas destas plantas anónimas, em especial os "juncos" (verdadeiros ou falsos), ocupam habitats aquáticos ou paludosos nos quais só com dificuldade conseguimos mover-nos. A planta de hoje até vegeta em lugares acessíveis, mas, pelo seu tamanho diminuto, faz da discrição um ponto de honra. As espiguetas florais, solitárias ou aglomeradas em grupos de duas ou três, têm uns 5 mm de comprimento, e surgem em hastes finas, não ramificadas, de 5 a 20 cm de altura; as folhas, que parecem ausentes, estão reduzidas a bainhas na base dos caules. De entre as três espécies do género que ocorrem nos Açores (todas de ampla distribuição europeia ou até mundial), a Isolepis setacea singulariza-se por as espiguetas parecerem emergir da parte lateral da haste em vez de saírem da extremidade. Contudo, aquilo que parece ser o prolongamento da haste é na verdade uma bráctea, que nesta espécie é muito comprida (pode chegar aos 3 cm) e, quando a planta já está bem desenvolvida (não é esse o caso dos exemplares fotografados), ultrapassa claramente as espiguetas.

As Flores, que são uma esponja em forma de ilha, proporcionam inúmeros recantos favoráveis à instalação da Isolepis setacea. Além do mais, o tamanho exíguo da planta permite-lhe vegetar onde quer que a água se acumule, nem que seja uma poça numa cavidade da rocha. Foi numa pia escavada na pedra, visível na 1.ª foto mas impossível de adivinhar para quem contempla da estrada o maciço erecto da rocha dos Frades, que tivemos ocasião de a observar. Por perto, e aproveitando o abrigo das escarpas para fugir à voracidade de vacas e cabras, havia algumas das especialidades da flora endémica açoriana: Cardamine caldeirarum, Centaurium scilloides, Leontodon hochstetteri, Platanthera micrantha, Ranunculus cortusifolius, Scabiosa nitens. Por muito gratificante que seja encontrar reunidas tantas preciosidades, a sua presença era perfeitamente normal. O que surpreende é o modo como as plantas certas conseguem colonizar micro-habitats isolados como este de dois ou três metros quadrados, em que a acumulação fortuita de água cria uma descontinuidade absoluta com o habitat envolvente. Quem lhes deu (às plantas) notícia de que o lugar lhes convinha, e como chegaram elas até lá?



FÉRIAS

Regessamos na última semana de Agosto. Até lá, sugerimos a quem habitualmente nos visita que vá espreitar o recente Wild Iberia.

20/06/2015

Encontro das águas (3.ª parte)


Schoenus nigricans L.


Ao contrário das espécies que figuraram nos capítulos anteriores da série, as ciperáceas de hoje são polivalentes, não vivendo exclusivamente à beira-mar nem tendo preferência declarada por águas salobras. A primeira delas nem sequer exige muita água: a sua presença pode simplesmente assinalar locais onde, na época das chuvas, se formam charcos que secam com a estiagem. Nos pinhais litorais do centro oeste, entre Mira e Figueira da Foz, é frequente vê-la ocupar depressões dunares e orlas de pequenas lagoas. De seu nome Schoenus nigricans (o que pode traduzir-se por junco-negro), é uma herbácea rizomatosa com caules até uns 80 cm de altura, folhas exclusivamente basais, quase cilíndricas por causa das margens enroladas, e inflorescências compactas formadas por cinco ou mais espiguetas de um castanho negrusco, envoltas por duas brácteas, uma delas muito comprida. Nas fotos acima, tiradas em meados de Março, as flores só deixam ver a sua faceta feminina, mas elas são bissexuais, contendo cada uma três estames e três estigmas. À semelhança do que acontece com outras ciperáceas, é uma planta muito viajada, cidadã de muitos países e continentes, desde a Austrália à América do Norte, passando pela Europa, Ásia e África.


Eleocharis palustris (L.) Roem. & Schult.
Não menos viajada é esta outra ciperácea, que compensa a falta de passaporte australiano por uma mais ampla cobertura do continente euro-asiático. O nome Eleocharis dá em português qualquer coisa como encanto-dos-pântanos e, não sendo o encanto visível aos olhos de todos, é um bom exemplo de como gostos não se discutem. Ou de como eles, discutindo-se (afinal que fazem os críticos de arte ou de literatura senão tentar moldá-los?), podem ser radicalmente intransmissíveis. O nosso povo, em qualquer caso, não se deixou seduzir pela planta, pois ao invés de lhe reconhecer o encanto resolveu castigá-la com o nome junco-marreco.

Não adianta explicar pela enésima vez ao dito povo que uma ciperácea não é um junco, pois é na língua comum, com as suas lacunas e os seus absurdos, que nos temos de entender. Seja, então. O junco-marreco, como todos os seus congéneres (são cinco as espécies de Eleocharis espontâneas em Portugal), não possui verdadeiras folhas, mas apenas umas bainhas que abraçam a base dos caules cilíndricos, cada um deles rematado por uma espigueta solitária. Distingue-se (com dificuldade) dos seus congéneres pelas hastes mais altas (em geral até 60 cm, mas podem atingir os 100 cm), pelas espiguetas mais compridas, com maior número de flores, e pelo carácter rizomatoso que lhe permite ocupar grandes extensões de terrenos alagados e justifica o nome creeping spike-rush que lhe foi dado pelos anglo-saxónicos. As flores são bissexuais, e a foto deixa já entrever as suas partes masculinas (estames com anteras) e femininas (estigmas).

A julgar pelo mapa de distribuição no portal Flora On, o junco-marreco faz o pleno do nosso território continental, e aliás estende-se com igual abundância pela Europa fora. Qualquer lagoa ou charco é para ele um habitat propício. Na foto em baixo, captada numa clareira do maior sobreiral de Trás-os-Montes, temos um exemplo (encantador?) dos lugares de que gosta.


charcos temporários em Romeu, Mirandela