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15/02/2024

Língua de Menorca

Passámos a última semana de 2023 em Menorca; exactamente um ano antes, tínhamos estado em Maiorca. Ficámos assim habilitados a emitir juízos comparativos sobre as ensaimadas de uma e de outra ilha. Gostámos mais das de Menorca, talvez por as termos comido mais vezes e com diferentes recheios: todos os dias ao pequeno-almoço havia novas variedades para experimentar. Mas nem este blogue se chama Dias com Doces, nem os agrados de boca são a motivação principal (ou secundária) das viagens que fazemos. Fomos a Menorca para ver um feto, o mesmo que procuráramos em vão em Maiorca no ano anterior. Desta vez a busca foi coroada de êxito, e é natural que tenhamos ficado mais agradados com a ilha que nos mostrou os seus tesouros do que com aquela que os escondeu. É possível que Maiorca não o tenha feito por avareza: por culpa das cabras devoradoras que assolam a ilha, se calhar já lá não existem o tal feto nem outras preciosi­dades botânicas. Não é por acaso que a caça às cabras assilvestradas em Maiorca está aberta o ano inteiro; em Menorca o problema parece não existir, e essa caça nem está prevista.

É cada vez mais difícil encontrar a língua-cervina (Asplenium scolopendrium) em Portu­gal continental. Há 13 anos, no primeiro e até hoje único concurso Dias com Árvores, desafiá­mos os leitores a descobrir populações desse feto em certos concelhos do Grande Porto. Rui Soares, único participante do concurso, reportou-nos várias localizações em Ovar, concelho que não fazia parte da lista; ainda assim, foi com gosto que o declarámos vencedor e lhe atribuímos o prémio anunciado. Desde então, nós próprios encontrámos a língua-cervina, sempre com poucos exemplares, em Gaia, Espinho e Paredes. No século XIX, pelo testemunho de Augusto Luso no seu Herbaryum Cryptogamicum do Porto e seus arredores (1872-73), a espécie era frequente em Gaia, Fânzeres (Gondomar) e Paranhos (Porto). E não foi apenas a destruição de habitats causada pela expansão urbana que fez o feto rarear: ele também desapareceu de lugares aparente­mente bem conservados onde outros fetos se mantiveram sem problemas. É de suspeitar que, com a subida gradual da temperatura, o nosso clima esteja menos propício à sobrevi­vência da língua-cervina. No norte da Europa, a espécie continua a ser frequente e abundante — e, para não termos motivos de inveja, nos Açores também.

O feto que procurávamos nas Baleares era também uma língua-cervina. Se o povo fosse dado a erudições, chamar-lhe-ia língua-cer­vina-sagitada; o seu nome científico é Asple­nium sagittatum. Tal como o Asplenium scolo­pendrium, tem folhas inteiras e os soros apre­sentam-se geminados: no verso das frondes, cada risca que aparenta ser um único soro é na verdade formada por dois, cada qual com o seu indúsio. Essa característica diferencia estas duas espécies das restantes do género Asplenium (mesmo do A. hemionitis, igualmente com folhas inteiras), e explica que elas tivessem sido tradicionalmente segregadas no género autónomo Phyllitis.

Asplenium sagittatum (DC.) Bange [= Phyllitis sagittata (DC.) Guinea & Heywood]


Como o nome indica, a língua-cervina-sagitada difere da normal pelas folhas... sagitadas — ou seja, pela presença de lobos triangulares na base das folhas. Contudo, essa forma das folhas só é evidente em plantas adultas bem desenvolvidas, e as folhas jovens do A. sagittatum confundem-se facilmente com as do A. scolopendrium. De resto, o A. sagittatum tem folhas de menor tamanho (com 15 a 20 cm de comprimento máximo, enquanto que as do A. scolopendrium podem chegar aos 40 cm) mas com um pecíolo proporcionalmente mais longo, amiúde excedendo em comprimento a lâmina da folha.

Com uma distribuição circum-mediterrânica, e vivendo exclusivamente em fendas de rochas calcárias, o A. sagittatum prefere lugares muito sombrios e húmidos. Em Menorca encontrámo-lo em vários barrancos, mas onde o vimos mais feliz foi em Pas d'en Revull, num caminho estreitíssimo entre grandes paredes rochosas onde a penumbra era permanente. Talvez as peculiares exigências de habitat expliquem a sua raridade em toda a área de distribuição: se no entorno do Mediterrâneo não escasseiam afloramentos calcários, parecem ser poucos os lugares com o grau de frescura que ele exige.

05/05/2023

Fentilho de Maiorca



O barranco de Biniaraix, em Maiorca, ascende desde o vale de Sóller e proporciona um íngreme acesso à serra de Tramuntana, a cordilheira que se estende por todo o limite norte da ilha e atinge os 1445 metros de altitude no seu ponto culminante. Nos primeiros 400 metros da subida, e com excepção de alguns pontos de passagem mais estreitos, as encostas que ladeiam o barranco estão talhadas em socalcos ainda mais vertiginosos que os do Douro. Só que, em vez de vinhas, os patamares estão ocupados por olivais; e, em vez do avermelhado do xisto, os muros exibem a brancura do calcário de que a ilha é feita. A olhos portugueses parece uma paisagem híbrida, um cenário duriense feito de materiais arrancados ao maciço calcário estremenho. É bem apropriado que alguma da vida vegetal refugiada nesses muros seja também ela de origem híbrida.

Asplenium majoricum Litard.


Inicialmente descrito em 1911 pelo francês René Verriet de Litardière (1888–1957) com base em exemplares colhidos nos muros da cidade de Sóller, o Asplenium majoricum foi tido, durante muito anos, como endémico da ilha de Maiorca — ou até endémico do município de Sóller. É que esse feto não frequenta altitudes elevadas e a sua área de distribuição na ilha é bastante restrita. Contudo, sabe-se hoje que o mesmo feto ocorre na Espanha continental, tanto em Valência como no sul da Catalunha, embora se suspeite, pelo estudo de marcadores genéticos, que as duas linhagens da espécie, a peninsular e a maiorquina, tenham surgido de forma independente. De facto, o Asplenium majoricum é um tetraplóide que resultou, por hibridação e duplicação do genoma, do cruzamento de dois fetos diplóides, ambos de apetências calcícolas, o Asplenium fontanum e uma forma ancestral do Asplenium petrarchae. Não é impossível que idêntico cruzamento de espécies, seguido de igual duplicação do genoma, se tenha dado em dois locais distintos: um caso desse tipo foi reportado na Escócia, há 11 anos, com a Erythranthe peregrina (= Mimulus peregrinus), produto da hibridação, ocorrida em pelo menos duas localidades bem afastadas uma da outra, de duas espécies exóticas naturalizadas, uma norte-americana e outra sul-americana.

Com folhas curtas, de 6 a 12 cm de comprimento, o Asplenium majoricum combina o porte miniatural do A. petrarchae com o carácter glabro e o desenho das frondes do A. fontanum. Ter optado pelo tamanho do mais humilde dos seus progenitores valeu-lhe a sobrevivência numa ilha em que as cabras assilvestradas vêm provocando grande destruição da flora espontânea. Encolhido nas fendas dos muros, sem deixar sobressair a ponta de uma folha, não há cabra que lhe ferre o dente. O A. fontanum, com frondes que ultrapassam os 20 cm, pagou cara a imprudência de se mostrar a descoberto: os últimos exemplares conhecidos na ilha foram, há poucos anos, protegidos com redes para não serem devorados por cabras (história completa aqui).

16/09/2022

Vida apomítica



Calcula-se que pelo menos 10% das espécies de fetos actualmente existentes no planeta sejam apomíticas, e portanto dispensem a reprodução sexual. Não significa isso, porém, que a reprodução seja vegetativa (como acontece com as plantas que produzem bolbilhos) ou que os descendentes assim gerados sejam geneticamente idênticos aos progenitores. O ciclo de vida dos fetos alterna entre dois estádios principais: os esporófitos (que apresentam o aspecto que consideramos normal num feto, com raízes e folhas) produzem esporos, e os esporos germinam para dar origem aos gametófitos (que parecem musgos gelatinosos e quase nunca conseguimos observar). São estes que, produzindo espermatozóides e dispondo ainda de orgãos femininos receptivos, se encarregam da tarefa reprodutiva de que resultam novos esporófitos. Os fetos apomíticos alternam igualmente entre estes dois estádios: os esporos que produzem são viáveis, e também se transformam naquela gelatina que são os gametófitos, mas estes estão aptos a gerar novas plantas (ou, para sermos rigorosos, novos esporófitos) sem que haja qualquer fecundação. Assim, a nova planta só tem informação genética de um progenitor: aquele que produziu o (único) esporo que intervém na sua criação. Sucede que, na maioria dos fetos apomíticos, a criação de esporos envolve prévia duplicação de cromossomas seguida por uma redução (meiose). O resultado é que, embora cada esporo tenha os mesmos cromossomas que o indivíduo que o produz, estes podem estar emparelhados de modo distinto (o processo é sumariamente explicado neste artigo); e, se for esse o caso, o descendente não será, geneticamente, uma cópia do seu progenitor.

Assim, ao contrário do que tradicionalmente se supunha, a apomixia pode não ser um beco sem saída no processo evolutivo dos seres vivos. E também não é verdade que o afunilamento genético daí resultante produza sempre linhagens frágeis e pouco competitivas. Um desmentido eloquente é dado pelo vigoroso (e apomítico) falso-feto-macho (Dryopteris affinis subsp. affinis), que está largamente difundido na Europa, e é dos fetos mais comuns em bosques e lugares frescos tanto em Portugal continental como nos Açores e Madeira.

Asplenium filare subsp. canariense (Willd.) Ormonde [= Asplenium canariense Willd.]


Nos arquipélagos da Madeira, Canárias e Cabo Verde existem duas linhagens do Asplenium aethiopicum. Como várias vezes acontece em grupos taxonomicamente intrincados e ainda não inteiramente compreendidos, este nome não designa propriamente uma espécie mas sim um agregado de espécies próximas, com distintos números cromossómicos e diferentes modos de reprodução — o que nem sempre se reflecte em diferenças morfológicas claras ou em preferências ecológicas distintivas. Uma dessas linhagens está ilustrada nas fotos acima, obtidas nos pinhais de Arafo, em Tenerife; recebe o nome de Asplenium filare subsp. canariense, e é exclusiva de três das ilhas Canárias: Tenerife, La Palma e El Hierro. A outra, de que já aqui falámos, corresponde ao Asplenium aethiopicum subsp. braithwaitii, e está presente na Madeira, em La Palma, e em cinco ilhas de Cabo Verde: Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Santiago e Fogo. Segundo José Ormonde, autor de ambas as combinações, estes dois fetos não se distinguem pela ecologia (ambos buscam lugares mais ou menos sombrios em substrato rochoso), mas morfologicamente são suficientemente díspares para serem reconhecidos à vista desarmada: o primeiro tem frondes mais estreitas, nitidamente caudadas. Geneticamente, as diferenças entre eles são importantes: A. filare subsp. canariense é hexaplóide e apomítico, enquanto que A. aethiopicum subsp. braithwaitii é dodecaplóide e de reprodução sexuada.

Que o segundo surja num maior número de ilhas do que o primeiro pode ser apenas um acaso, pois ambos são relativamente raros na generalidade das ilhas onde ocorrem. E não há dúvida de que estes dois nomes correspondem a entidades taxonómicas distintas. Mas serão esses nomes apropriados? Afinal, a generalidade das floras considera que Asplenium filare é ele próprio uma subespécie do A aethiopicum. E estarão essas duas linhagens realmente restritas aos arquipélagos da Macaronésia? Ou existirão também no continente africano ou até em paragens mais longínquas? Ormonde não parece ter chegado a compará-las com plantas de outras proveniências, e o grupo do Asplenium aethiopicum tem uma distribuição vastíssima, que inclui a América tropical, a África, a Austrália e o sudeste da Ásia. Morfológica e geneticamente é um grupo muito variado, e dentro dessa variabilidade não é difícil encontrar, no continente africano (e, em particular, na África do Sul), plantas muito semelhantes às das ilhas. Só um estudo exaustivo, ainda por realizar, poderá esclarecer estas questões.

22/01/2020

Fonte seca


Asplenium fontanum (L.) Bernh.


Os erros em nomes botânicos têm uma história ilustre que remonta pelo menos a Lineu. O pai da taxonomia botânica baptizou plantas de todo o mundo, originárias de lugares que, nesse tempo de viagens demoradas, nunca pôde visitar. Recebidas as amostras, tratava de lhes dar nome tendo em conta as indicações de quem as enviava. Uma troca de etiquetas, a tresleitura de algum apontamento menos legível, o equívoco de se tomarem por nativas plantas cultivadas — tudo isso, em diferentes ocasiões, levou por exemplo a que plantas europeias assumissem identidade sul-americana ou vice-versa. São muito conhecidos os casos da Scilla peruviana, que não é do Peru mas sim de Portugal e Espanha, e do Cupressus lusitanica, de origem mexicana mas descrito (pelo inglês Philip Miller) a partir de exemplares cultivados em Portugal na mata do Buçaco.

Menos conhecidos são os nomes que dão uma ideia errada do hábito ou ecologia da planta. Um exemplo do primeiro tipo é dado pela Genista florida, que anda longe de ser a espécie do seu género com floração mais abundante. Para ilustrar o segundo tipo de erro, convocámos um feto a que Lineu chamou Polypodium fontanum e que, como mandam as regras da nomenclatura botânica, manteve o epíteto específico ao ser transferido para o género Asplenium. Uma tradução possível do nome seria feto-das-fontes; mas, embora haja muitos fetos que gostam de fontes ou de paredes ressumantes, o Asplenium fontanum decididamente não é um deles.

Com frondes estreitas de 10 a 15 cm de comprimento, dotadas de pecíolo curto e dispostas em tufos por vezes densos, e facilmente reconhecível pelo recorte das pínulas e pelo encurtamento muito acentuado das pinas inferiores, o Asplenium fontanum vive em fendas de rochas calcárias, por regra em sítios frescos onde a luz solar não incide directamente. Distribui-se por zonas montanhosas da Europa (Alpes, Pirenéus, maciço do Jura) e do norte de África (cordilheira do Atlas em Marrocos), a altitudes moderadas, maioritariamente entre os 500 e os 1500 metros, revelando especial predilecção pelos grandes vales cársicos. Fotografámo-lo no fabuloso vale de Añisclo, nos Pirenéus aragoneses, no talude de uma estrada que seria pecado não percorrer a pé.

18/09/2018

Douradinha dourada



Ceterach aureum (Cav.) Buch [sinónimo: Asplenium aureum Cav.]


Apesar de ele ser mais prateado do que dourado, douradinha é o nome que em Portugal se dá ao Ceterach officinarum, um feto que aparece de norte a sul do país e é particularmente abundante em rochas e paredes calcárias. A Madeira tem a sua própria versão do feto em formato avantajado: leva o nome de Ceterach lolegnamense e vive na vertente sul da ilha, sobre velhos muros ladeando as íngremes estradas em redor do Funchal. Já aqui lhe dedicámos desenvolvida reportagem; demos então conta de que ele vivia separado dos seus presumíveis pais, Ceterach aureum e Ceterach octoploideum, ambos endémicos das Canárias. De uma espécie gerada por hibridação e poliploidia, espera-se que reúna os cromossomas dos dois progenitores. Sendo o C. aureum um tetraplóide e o C. octoploideum um octoplóide, deveria o Ceterach lolegnamense ser dodecaplóide, mas afinal fez a coisa por metade e ficou-se como hexaplóide. As leis da genética condenavam-no à esterilidade, mas os seus gametófitos praticam a apomixia — ou seja, dispensam a fecundação para produzir novas plantas — e desse modo a espécie logrou perpetuar-se.

Na nossa visita a Tenerife apenas se nos mostrou um dos progenitores do feto madeirense, precisamente o Ceterach aureum, que é o maior dos dois e em tamanho excede claramente o C. lolegnamense. A ecologia do feto canarino é assaz diferente da dos seus congéneres, procurando ele lugares abrigados e húmidos, muitas vezes em ambiente florestal. É um tipo de habitat que é bem menos frequente nas Canárias do que na Madeira ou nos Açores, e daí que o Ceterach aureum, ou douradinha dourada, não seja fácil de encontrar. Vimo-lo apenas no barranco de Añavingo, vicejando na frescura possível de um fim de ano cálido.

O tamanho não nos deixou dúvidas quanto à identidade do feto, mas o caso mudaria de figura se tivéssemos deparado com um feto mais débil. Estando nós mal equipados para contar cromossomas, e de um modo geral para executar tarefas microscópicas, ver-nos-íamos em maus lençóis para distinguir o C. officinarum do C. octoploideum, sendo certo que ambos ocorrem nas Canárias. De facto, e como se conta no artigo (de 2006) Asplenium ceterach and A. octoploideum on the Canary Islands (Aspleniaceae, Pteridophyta), já há muito se haviam detectado nas Canárias duas formas do Caterach, tidas as duas como variedades do C. aureum, e sendo a forma mais pequena chamada de C. aureum var. parvifolium. Essa variedade parvifolium seria octoplóide, e a variedade nominal tetraplóide. O estudo dos autores do artigo revelou porém que muitos dos exemplares atribuíveis à variedade parvifolium eram na verdade tetraplóides, e correspondiam, tanto morfológica como geneticamente, ao exacto Ceterach officinarum do continente europeu. Pior ainda: verificou-se que o holótipo da variedade parvifolium era um exemplar de Ceterach officinarum, o que automaticamente fazia com que C. aureum var. parvifolium e C. officinarum fossem sinónimos. Assim, esse estudo, além de estabelecer a existência de três formas de Ceterach nas Canárias, revelou que uma delas (a forma pequena octoplóide) não dispunha ainda de nome válido, e daí terem-na os autores baptizado como C. octoploideum.


25/04/2017

Madeira Fern Fest (8)


Asplenium hemionitis (à esquerda), Asplenium anceps (à direita), Adiantum reniforme (em baixo)


As ilhas do mesmo mar sempre arranjam modo de se contaminarem uma às outras, e alguns dos fetos peculiares que vimos na Madeira, por muito entusiasmantes que fossem, não eram para nós novidade, tendo-os já encontrado nos Açores ou no Porto Santo. O que é na verdade injusto, pois a flora pteridófita madeirense, singularizando-se pela sua indisfarçável africanidade, não é inferior à açoriana. Como compensação, e quebrando a nossas regra de mostrar cada espécie uma só vez, recuperamos dois fetos macaronésios de vincada personalidade, desta vez fotografados na Madeira, e condimentamo-los com um terceiro que vale pela raridade, embora seja fácil de confundir com outros muito comuns.

Tanto o Asplenium hemionitis (1.ª foto) como o Adiantum reniforme (3.ª foto) se recusam a obedecer ao figurino habitual dos fetos: cada fronde é constituída por uma peça só, em vez de estar dividida em inúmeros pequenos segmentos. O nome vernáculo feto-folha-de-hera atribuído ao primeiro exprime não só uma óbvia semelhança como também uma real possibilidade de confusão, já que o Asplenium hemionitis pode, tal como a hera, agarrar-se aos muros ou atapetar o chão de um bosque com as suas folhas. Tapete curto, claro está, já que as populações deste feto costumam ser pequenas. E a confusão desfaz-se quando lhe espreitamos as pinturas de guerra no verso das frondes. Presente nos Açores, Madeira e Canárias, o feto-felho-de-hera tem também populações reliquiais na Argélia, em Marrocos e... em Sintra, único local do continente europeu onde a sua presença está assinalada.

O Adiantum reniforme, a que gostamos de chamar avenca-redonda, é fácil de encontrar na Madeira, sobretudo na parte norte da ilha, em muros e fendas de rochas, nem sempre em lugares sombrios. Tendo-o visto e fotografado no Porto Santo, já sobre ele aqui escrevemos.

O terceiro feto do nosso ramalhete, Asplenium anceps (2.ª foto), tem óbvios laços de seiva com o avencão (Asplenium trichomanes subsp. quadrivalens), que encontramos de norte a sul de Portugal continental, tanto em calcários como em xistos ou granitos. Um terceiro feto que só com dificuldade se distingue destes dois é o Asplenium azoricum. Sabe-se, aliás, que o A. anceps é um dos progenitores do A. azoricum, que por sua vez terá dado origem a outras espécies ou subespécies do grupo do A. trichomanes. Muitas vezes podemos separar as diferentes espécies usando um simples critério geográfico: em Portugal continental só existe, que se saiba, o A. trichomanes subsp. quadrivalens. Contudo, se estivermos nos Açores, convém fazermos uma análise menos preguiçosa, já que aí coexistem o A. azoricum e o A. trichomanes, e o problema repete-se na Madeira, onde convivem o A. trichomanes e o A. anceps. (Em ambos os arquipélagos ocorre ainda o A. monanthes, mas nenhum amador de fetos minimamente atento o confunde com qualquer um dos outros três.)

A boa notícia é que o A. anceps até é fácil de destrinçar do A. trichomanes por quem for munido de lupa e levar a lição bem estudada. As pinas médias do primeiro são em geral mais estreitas e compridas do que as do segundo; e, no A. anceps, os soros são rectilíneos, afastados do eixo da pínula de modo que as duas fiadas fiquem bem separadas (foto ao lado ou, em melhores condições, nesta página), enquanto que no A. trichomanes os dois soros basais de cada pínula (pelo menos esses) são claramente curvados, e as duas fiadas de soros estão muito próximas uma da outra (fotos nesta página ou nesta).

Como patriarca de uma linhagem de fetos bem disseminada na Macaronésia e na região mediterrânica, o A. anceps acusa o peso da velhice e mostra-se menos adaptável às mudanças do mundo do que os seus descendentes. Embora tenha sido reportado nos Açores, receia-se que esteja extinto no arquipélago. Presente em quatro das ilhas Canárias, em três delas (Tenerife, La Gomera e El Hierro) só se conhece uma população em cada ilha, sendo um pouco melhor a situação na ilha de La Palma. Na Madeira, por contraste, está amplamente distribuído no norte da ilha em lugares húmidos e ensombrados, mas não parece ser tão abundante como afirmam J. R. Press & M. J. Short no livro Flora of Madeira (National History Museum, London, 1994).

14/03/2017

Madeira Fern Fest (5)



Ceterach lolegnamense Gibby & Lovis [= Asplenium lolegnamense (Gibby & Lovis) Viane]


Passeando pelas íngremes estradas em redor do Funchal, o naturalista amador encontra aqui e ali, aninhado nas fendas dos muros, um feto que lembra irresistivelmente um seu velho conhecido. Pergunta-se então se a douradinha, que no continente enfeita calcários e xistos, também terá cruzado o oceano para se instalar no basalto das ilhas. Só se o tiver feito na Madeira, pois, se bem se lembra, nos Açores ela nunca foi vista. Mas a verdade é que nem na Madeira ela conseguiu poiso. A douradinha-da-Madeira (nas fotos) é aparentada com a continental (é neta desta), mas não é a mesma coisa, distinguindo-se tanto pelo número cromossómico (hexaplóide a primeira, tetraplóide a segunda), como, à vista desarmada, pela maior envergandura das frondes e pelas pinas mais compridas, amiúde quase triangulares. Se os soros estiverem maduros, podemos notar, revirando as folhas, que no Ceterach lolegnamense (a espécie madeirense) eles se dispõem ordenadamente em duas fiadas paralelas, uma em cada metade da pina (3.ª foto em cima e última foto nesta página), enquanto que no Ceterach officinarum a arrumação é menos simétrica (fotos aqui).

Pouca necessidade haverá, no terreno, de pôr em prática estes ensinamentos: na Madeira só ocorre o Ceterach lolegnamense, que aliás é endémico da ilha, no continente só há Ceterach officinarum, e assim nenhuma confusão é possível. Mas se um descende do outro, não terão eles, há uns tantos milhões de anos, coexistido em algum lugar do planeta? Provavelmente sim, e a resposta passa pelo arquipélago das Canárias. Essas ilhas espanholas 450 Km a sul da Madeira dispõem de várias versões da douradinha, entre elas as duas espécies, Ceterach aureum e Ceterach octoploideum, cujo cruzamento terá dado origem ao Ceterach lolegnamense.

O Ceterach aureum, como aqui se pode ver, apresenta, quando bem desenvolvido, frondes bastante mais largas do que as do Ceterach officinarum. Já o também canarino Ceterach octoploideum é, na prática, indistinguível a olho nu do C. officinarum. A combinação dos dois levou a que o Ceterach lolegnamense assumisse características intermédias. Depois de gerado, não logrou sobreviver na sua ilha natal, migrando contudo para norte através de esporos trazidos pelo vento ou agarrados às patas de alguma ave. Fintou a esterilidade que persegue todos os híbridos recorrendo à apomixia, o que significa que os gametófitos do C. lolegnamense não precisam de ser fecundados para originarem um novo indivíduo.

Até 1989, ano em que os botânicos Mary Gibby e J.D. Lovis publicaram no n.º 13 da Fern Gazette um artigo sobre o Ceterach madeirense, pensou-se que ele era idêntico ao C. aureum, tido então como o único do seu género nas ilhas Canárias. Sabe-se hoje que afinal existem lá três: aos endémicos canarinos C. aureum e C. octoploideum soma-se, para ajudar à confusão, o verdadeiro C. officinarum. A história, cheia de reviravoltas, suspense e algum sexo, é contada num artigo de 2006 com o título Asplenium ceterach and A. octoploideum on the Canary Islands (Aspleniaceae, Pteridophyta).

31/01/2017

Madeira Fern Fest (2)

Asplenium aethiopicum subsp. braithwaitii Ormonde
A Madeira tem uma invejável rede de vias rápidas, servida por uma profusão de pequenos, médios e grandes túneis — que, se nos permitem chegar mais rapidamente à almejada natureza, têm o inconveniente de dificultar o uso de GPS. A receita é conduzir a velocidade moderada, dando tempo ao aparelho para captar os satélites nos breves intervalos entre dois túneis. Quando tomamos as estradas secundárias, é uma outra ilha que se descobre, inalterada durante as décadas em que a Madeira Nova progredia a toda a brida. Em redor do Funchal, as vias labirínticas, estreitíssimas e quase a pique são um susto para o condutor desprevenido. Subindo para o interior da ilha e deixando para trás a malha urbana, as estradas normalizam-se e a condução faz-se sem dificuldades. Podemos estar atentos à vegetação das bermas, parando sempre que nos convenha, pois não foi para outra coisa que viemos. Três dos fetos que vão desfilar no Madeira Fern Fest, incluindo o de hoje, são estradeiros. Que os tenhamos encontrado nos mesmos locais das mesmas estradas onde foram assinalados há 30 ou 40 anos, apesar da modernização, dos incêndios e de outras catástrofes, é forte motivo para optimismo.

Este Asplenium aethiopicum prefere a vertente norte da ilha, mais arborizada e húmida, menos povoada. O muro alto de pedra solta onde o vimos empoleirado fica à face da estrada. Antigos campos de cultivo, invadidos por Pteridium, Arundo donax e outras plantas infestantes, pontuados por pinheiros e eucaliptos, dispõem-se em socalcos acima e abaixo da estrada. Do lado de lá de um vale, o casario branco trepa pela encosta. É uma paisagem rural, mas de uma ruralidade ferida de abandono, igualzinha à que conhecemos no continente.

Igualzinha nos traços gerais, mas não nos detalhes. Os muros são de basalto, em vez de xisto ou granito. Algumas plantas indígenas, lideradas pelos ensaiões (Aeonium glandulosum, Aeonium glutinosum), disputam cada palmo do muro às invasoras. Nessa comunidade de resistentes integra-se o Asplenium aethiopicum, um feto de tamanho médio (folhas até 40 cm de comprimento) que fornece uma prova adicional da africanidade desta ilha povoada por europeus. Os soros lineares no verso das pinas (2.ª foto), fazendo lembrar pinturas de guerra dos povos indígenas norte-americanos, não deixam dúvidas quanto à sua filiação no género Asplenium, um dos mais variados e populosos (cerca de 700 espécies no mundo inteiro) desta classe do reino vegetal. Mas nenhum outro Asplenium em território português (seja nas ilhas ou no continente) se confunde com este. As frondes registam alguma variação, sendo as jovens (3.ª foto) menos recortadas do que as maduras, mas em geral são bipinatífidas, enquanto que as do A. onopteris, por exemplo, são bipinatissectas (ou tripinatissectas). Isso significa que neste os segmentos (pínulas) que compõem as pinas estão bem separados uns dos outros (foto), enquanto que naquele eles o estão apenas por uma fenda que não atinge o eixo da pina.

O epíteto aethiopicum não significa que, em África, a planta apenas exista na Etiópia. Aethiopia, na antiguidade clássica, era o nome para toda a África não mediterrânica, aquela que fica a sul do Egipto, Líbia, Argélia e Marrocos; na taxonomia botânica, o nome aethiopicum é mais usado para plantas sul-africanas. De facto, o Asplenium aethiopicum foi primeiramente descrito a partir de exemplares colhidos na África do Sul; e, apesar de estar muito espalhado por África (ver nesta página), talvez nem exista no país a que hoje chamamos Etiópia (antiga Abissínia). Em compensação, a sua distribuição global é vastíssima, pois é tido como nativo da América tropical (incluído Caraíbas), de África (incluindo Madagáscar), da Austrália e do sudeste da Ásia. Num feto tão viajado, não é surpresa que a variabilidade seja grande, e só na África do Sul estão registadas umas quatro subespécies, diferindo umas das outras no tamanho e no grau de divisão das frondes, e também, mais subtilmente, no número cromossómico e no modo de reprodução (sexuada ou apomíctica). Algumas variantes (exemplos: 1, 2) parecem-se pouco com a versão madeirense, mas outras já se assemelham bastante (exemplo). As plantas madeirenses foram emancipadas em 1991, por José Ormonde (no artigo The Macaronesian representatives of the Asplenium aethiopicum complex, publicado no n.º 43 do Boletim do Museu Municipal do Funchal), numa nova subespécie a que ele chamou braithwaitii, endémica da Macaronésia (Madeira, Canárias e Cabo Verde), mas a aceitação deste taxon não é unânime.

11/07/2015

Feto orelhudo

Asplenium auritum Sw.

O estudo da flora açoriana atravessa um período de grande animação: há endemismos que deixam de o ser (um exemplo é a "Marsilea azorica" — que, sabe-se hoje, é na verdade a M. hirsuta e tem origem australiana), outros que não o eram mas passam a sê-lo (como o Centaurium scilloides e o Solidago azorica, antes chamado Solidago sempervirens), e outros ainda que, mantendo-se como endemismos do arquipélago, vêem a sua posição taxonómica alterada (como o Polypodium azoricum, cujo nome correcto é agora P. macaronesicum subsp. azoricum). Das recentes novidades taxonómicas, a que mais nos entusiasmou é a que vem proposta no artigo A revision of the genus Leontodon (Asteraceae) in the Azores based on morphological and molecular evidence, da autoria, entre outros, de Mónica Moura & Luís Silva, publicado em Maio de 2015 na revista Phytotaxa. Concluem os autores que são três e não duas as espécies de patalugo (como são popularmente conhecidos os Leontodon açorianos) endémicas dos Açores, e que elas se distribuem com uma lógica inatacável pelos três grupos do arquipélago: o patalugo-maior (Leontodon filii) é exclusivo do grupo central, mas o patalugo-menor, que se diferencia por ter uma inflorescência em umbela com um número muito grande de capítulos, teve de ser desdobrado em duas espécies, já que as plantas de São Miguel são morfológica e geneticamente distintas das do grupo ocidental (Flores & Corvo). Estas últimas pertencem agora à espécie Leontodon hochstetteri M. Moura & L. Silva, ficando o Leontodon rigens a constituir um endemismo de uma única ilha, a de São Miguel.

Os fetos, que são parte tão importante da flora açoriana, trazem-nos aquela que é de todas a melhor notícia, ilustrada pelas fotos que encabeçam o texto. Não se trata de uma mudança de estatuto ou de dar novo nome a algo já conhecido, mas sim de uma descoberta genuína. O Asplenium auritum existe numa única localidade da ilha das Flores e, assim o defendem os autores do artigo em que a novidade é reportada [Asplenium auritum Sw. sensu lato (Aspleniaceae: Pteridophyta) — an overlooked neotropical fern native to the Azores, F.J. Rumsey, H. Schaefer & M. Carine, Fern Gazette 19(7), 2014], é nativo do arquipélago. Ainda que até 2008 ninguém tenha dado por ele ou notado a sua peculiaridade, o herbário do Museu de História Natural, em Londres, guarda exemplares deste feto colhidos nas Flores em duas ocasiões (em 1857 por Henri Drouet, e em 1967 por C. M. Ward) mas erradamente identificados. A parte menos boa da história é que a população do Asplenium auritum nas Flores é muito reduzida, não excedendo os 50 indivíduos. Vive sobre velhos muros ladeando caminhos rurais por entre antigos campos de cultivo, hoje em dia completamente invadidos pela árvore-do-incenso (Pittosporum undulatum). Não o incomoda a densíssima sombra fornecida por esse bosque adulterado, mas a sua condenação parece certa se alguém se lembrar de recuperar os caminhos ou de desbastar a vegetação.

Para quem se habituou a observar fetos, o Asplenium auritum é bastante distintivo, embora seja inegável a sua semelhança geral com o A. bilottii e o A. onopteris, ambos presentes e relativamente comuns no arquipélago. No entanto, as frondes do Asplenium auritum são menos divididas e, ao contrário das do A. bilottii, têm um formato distintamente triangular; além disso, as pinas inferiores exibem aurículas que estão ausentes nas outras duas espécies.

O Asplenium auritum apresenta duas grandes áreas de distribuição: a América tropical (incluindo Caraíbas) e parte da costa leste do continente africano (incluindo Zimbabwe, Moçambique, Congo e Madagáscar). Contudo, a sua variabilidade é muito grande e a taxonomia está mal resolvida: é provável que várias espécies diferentes tenham sido agrupadas sob esse nome, com as plantas açorianas a assemelharem-se mais às americanas do que às africanas. Não é porém de descartar, segundo os autores do artigo, que o (chamemos-lhe assim à falta de melhor nome) Asplenium auritum dos Açores seja uma espécie nova, resultando então num novo acrescento à cada vez mais numerosa lista de endemismos insulares. Em todo o caso, e isso reforça a importância da descoberta, é a primeira vez que o Asplenium auritum ou um seu parente próximo são detectados nos Açores, na Macaronésia ou até na Europa.


Fajã Grande, ilha das Flores

28/09/2013

Jardim vertical

Asplenium monanthes L.


A flora das ilhas açorianas, especialmente rica em fetos e aparentados, conta no seu elenco com algumas variações muito interessantes do avencão (Asplenium trichomanes), planta que no continente é muito comum em fendas de rochas e muros com alguma humidade. Nos Açores, o avencão não é nada comum e terá mesmo desaparecido de algumas ilhas; segundo Schäfer (Flora of the Azores — a field Guide, 2.ª edição, 2005), a sua presença no arquipélago quase se restringe a habitats construídos pelo homem. Daí que quem julgar vê-lo por lá deverá inspeccionar o achado com alguma cautela, pois poderá tratar-se do A. azoricum, do raríssimo A. anceps (só no Pico) ou do não assim tão raro feto-de-escoumas, assunto do texto de hoje.

O Asplenium monanthes, que ostenta a distinção de ter sido nomeado por Lineu em 1767 e não ter mudado de nome desde essa data, não é um endemismo açoriano; sem deixar de ser nativo do arquipélago, é das plantas mais viajadas que lá se encontram. Já Lineu, na descrição original, dava conta do seu vasto território de ocorrência: América desde o estado do Arizona até ao Chile; ilhas do Havai; África meridional incluindo ilhas atlânticas (Tristão da Cunha, Ilha Inacessível). A que se pode acrescentar Açores, Madeira, Madagáscar e a ilha da Reunião. Este pequeno feto, com folhas de uns 20 cm de comprimento, é um bilhete para a nossa imaginação discorrer por lugares que nunca visitaremos.

O formato peculiar das pinas (confira na segunda e terceira fotos) garante que o observador atento não irá confundir o Asplenium monanthes com algum dos seus primos. O epíteto monanthes, que significa "uma só flor", explica-se por cada pina ter em regra um único soro (agrupamento de esporângios) na página inferior. Enigmático é o nome vernáculo feto-de-escoumas, usado tanto na Madeira como nos Açores.


Terceira: estrada Angra-Biscoitos junto ao Pico da Bagacina
Na Terceira, o A. monanthes encontra-se esporadicamente sob coberto de urze e outros matos, em muros húmidos e bem assombrados, por vezes mesmo em taludes de estradas. O talude com maior biodiversidade em toda a ilha é por certo este junto ao Pico da Bagacina: um jardim autóctone mortalmente perigoso para quem o contemple sem prestar atenção aos bólides que correm disparados pela estrada. Os altos paredões, rasgados para fazer passar a via, são refúgio para plantas que já não existem nos montes adjacentes, convertidos em pastagens. Uma lista incompleta inclui, além do A. monanthes, da urze e da torga, as seguintes especialidades: Huperzia dentata, Platanthera micrantha, Vaccinium cylindraceum, Leontodon filii, Lysimachia azorica, Asplenium scolopendrium, Centaurium scilloides, Hypericum foliosum, Polypodium azoricum, Myrsine retusa, Laurus azorica e Woodwardia radicans.

29/07/2013

Endemismos: achados & perdidos

Santa Maria, Açores
É consensual que a flora vascular dos Açores contém escasso número de endemismos, entre 70 e 80. É esse o total de plantas que são espontâneas no arquipélago e em nenhum outro lugar do mundo. Talvez algum leitor estranhe que não se forneça o número exacto: são 72, 75, 79? Serão os botânicos tão pouco dotados para a aritmética que, mesmo com números tão pequenos, não conseguem acertar na contagem? O problema são as diferenças de opinião, ou o modo como certos autores valorizam ou não certas características diferenciadoras. Um caso paradigmático é o do Centaurium scilloides: até um leigo sem bagagem técnica ou teórica reconhece que as plantas açorianas, por terem flores invariavelmente brancas, são diferentes das continentais, com flores cor-de-rosa. Mesmo tendo em conta outras pequenas diferenças morfológicas, a tese que prevaleceu até há pouco, e que foi acolhida pelo recente volume da Flora Ibérica dedicado à família Gentianaceae, é que se tratava de uma só espécie, e que a variante insular não era merecedora de qualquer reconhecimento taxonómico. Eis senão quando entram em cena os estudos genéticos, por uma vez em defesa do senso comum, estabelecendo que aquilo que é diferente a olho nu também o é a um nível mais profundo. Em Dezembro de 2012, saiu na revista científica Plant Systematics and Evolution um artigo com o título A new endemism for the Azores: the case of Centaurium scilloides (L. f.) Samp., da autoria dos botânicos espanhóis José Antonio Fernández Prieto, Eduardo Cires, René Pérez e Álvaro Bueno. Nele se conclui que o C. scilloides é exclusivo dos Açores, e que as plantas continentais, pertencendo a uma espécie diferente, devem ser designadas por Centaurum portense (Brot.) Buchner. Como prenda de Natal de 2012, o arquipélago ganhou um novo endemismo, o que é adequada compensação pela queda em desgraça da suposta Marsilea azorica, ocorrida no ano anterior.

Há assim plantas desde sempre conhecidas no arquipélago que, de um momento para o outro, ganham o selo de tesouro natural de primeiro quilate. Devemos chamar-lhes endémicas arrivistas? Porque há as endémicas clássicas, cuja singularidade nunca esteve em dúvida, como a Azorina vidalii, a Euphorbia stygiana, a Scabiosa nitens, a Bellis azorica e o Vaccinium cyilindraceum. E, finalmente, há aquelas endémicas de estatuto incerto que alguém, com pouco fundamento, proclamou como tal vai para muitos anos, mas em que na verdade já pouca gente acredita. São as endémicas cadentes, à espera do golpe de misericórdia de um estudo moderno para serem apeadas da fama espúria. Talvez este fluxo permanente entre entradas e saídas não permita que o número de endemismos açorianos alguma vez ultrapasse os 80.

Asplenium azoricum (Milde) Lovis, Rasbach & Reichst.



O Asplenium azoricum é um endemismo açoriano de indiscutível mérito que só foi entronizado em 1977, em artigo de J. D. Lovis et al. no American Fern Journal. A sua longa permanência no anonimato deve-se em boa parte à semelhança com duas espécies também presentes no arquipélago: o avencão (Asplenium trichomanes subsp. quadrivalens) e o feto-de-escoumas (A. monanthes). Que se trata de três espécies distintas prova-o a contagem dos cromossomas, em perfeita progressão aritmética: o A. azoricum é diplóide (72 cromossomas), o A. monanthes triplóide (108 cromossomas), e o A. trichomanes subsp. quadrivalens tetraplóide (144 cromossomas). A condição de triploidia do A. monanthes indica que a espécie tem origem híbrida, mas que, ao contrário do habitual nestes casos, não se deu duplicação de cromossomas; o resultado é que o feto só se reproduz por apomixia (os gametófitos dispensam a fecundação para darem origem a nova planta).

Como ainda não se inventaram aparelhos para contar cromossomas in situ, é útil ao amador de botânica anotar os detalhes morfológicos que diferenciam o A. azoricum do A. trichomanes: assim, as frondes do primeiro têm pecíolo de um negro brilhante ou de um castanho muito escuro, e as pinas, que têm um formato quase triangular (as do A. trichomanes são mais curtas e rectangulares), apresentam um recorte bem mais pronunciado nas margens. Tais detalhes são porém mais evidentes nas plantas bem desenvolvidas que se encontram em sítios húmidos e abrigados, e haverá casos de determinação incerta. Finalmente, é uma grande ajuda saber que nas Flores e em Santa Maria o A. trichomanes quase não existe, e que na segunda dessas ilhas o A. azoricum é muito comum, tanto em muros e taludes como em bosques de faia e incenso.