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18/09/2023

Alfazema do mar

Lavandula dentata L.


É com o perfume de alfazema à beira-mar que largamos Maiorca e nos aprestamos a embarcar para nova ilha, igualmente espanhola e já aqui anunciada duas vezes. Maiorca é uma ilha grande, a dois passos da Espanha continental, e a condição insular não determina de modo decisivo — como sucede nos Açores ou na Madeira — as opções de vida dos seus habitantes. Para quem não dependa do turismo ou não viva na costa, é fácil esquecer-se de que está numa ilha: são várias as povoações maiorquinas de onde não se avista o mar; a oferta de tranportes públicos inclui uma linha de comboio (ligando Palma de Maiorca a Sollér) e uma rede de metro; e existem na ilha fábricas dos mais diversos artigos (por exemplo, o nosso calçado de montanha é lá produzido). Mesmo os turistas não obcecados pelos banhos de sol podem em Maiorca passar dias sem ver o mar, escalando a serra de Tramuntana ou deambulando nos extensos azinhais. Contudo, seria estúpido, para qualquer turista na ilha, obrigado que foi a abrir largamente os cordões à bolsa, não se demorar em passeios pelo litoral. Maiorca é uma ilha calcária, e uma das características dessa rocha é que se deixa moldar pelas forças erosivas de muito mais bom grado do que o granito ou o xisto. Um litoral de rochas calcárias há-de sempre exibir um recorte mais caprichoso e dramático do que um litoral granítico. Maiorca soube aproveitar-se bem dessa sua condição — e, apesar do volume exagerado de construções, não receia disputar um concurso de beleza com qualquer zona costeira deste nosso planeta, seja ela de que hemisfério for.

Não desvalorizando a beleza das rochas, é nossa crença que só com uma guarnição vegetal apropriada podem as formações rochosas atingir o ápice da beleza. Por isso esta alfazema a que Lineu chamou Lavandula dentata era necessária no sítio exacto onde a encontrámos. Há ainda a feliz circunstância de ela, dando flor quase o ano inteiro, raramente descurar as suas obrigações ornamentais: em Dezembro lá estava no seu posto, florindo incansavelmente.

Em português temos uma profusão de nomes para as plantas do género Lavandula: lavanda, rosmaninho, alfazema. Apesar de serem plantas comuns de norte a sul do país, por cá a variedade não é grande: há duas espécies quase iguais, L. stoechas e L. pedunculata, que entre si fazem quase o pleno do território continental, a elas se juntando, no extremo sul do país, a L. viridis. As duas restantes espécies por cá reportadas, L. multifida e L. latifolia, têm distribuições muito restritas. A Lavandula dentata, que não ocorre em Portugal e que se distingue, como sugere o epíteto específico, pelas folhas dentadas, apresenta algumas semelhanças com as espécies portuguesas mais vulgares: as inflorescências são todas terminais e compactas, em hastes não ramificadas, e são rematadas por um penacho de brácteas. Essa brácteas têm, presume-se, a função de atrair insectos, já que as flores propriamente ditas são pequenas e pouco chamativas — retintamente negras na L. stoechas e na L. pedunculata, rosadas e algo maiores na L. dentata.

O que as lavandas têm todas em comum é o agradável perfume (mais intenso na L. angustifolia, amplamente cultivada em França para perfumaria) e a generosa produção de néctar para recompensar polinizadores. É sempre para nós um bom encontro conhecer uma nova lavanda. E, não saindo da Europa, só em Espanha (Península Ibérica e Baleares) poderíamos ter encontrado a L. dentata no estado natural. Fora da Europa, a planta também ocorre no norte de África (Marrocos e Argélia), no médio Oriente (Israel e Palestina), na Península Arábica e na Etiópia; e em todos estes lugares mostra acentuadas preferências calcícolas, procurando invariavelmente substratos secos e pedregosos.

04/09/2023

Urze de Inverno



Longe de serem despreocupadas, as férias de Verão são a época do ano em que, suspensos os afazeres profissionais, nos deixamos absorver pelo desconcerto do mundo. É o calor sufocante que nem à sombra nos dá tréguas, são os incêndios descontrolados dentro ou fora de portas (estes últimos com ampla cobertura mediática caso os incêndios domésticos não preencham adequadamente a quota de pânico reservada ao tema), são a inflação e os vários oportunismos à conta dela que tornam proibitivo frequentar hotéis e restaurantes, são as greves que se preparam para a rentrée e as que já vão fazendo mossa nos serviços públicos a meio-gás. Sobressaltados por um fluxo noticioso apocalíptico, com os níveis de ansiedade a subir perigosamente, é com alívio que regressamos à rotina do emprego e às comezinhas tarefas do dia-a-dia.

É inevitável que a dúvida se insinue: será Agosto um mês adequado para férias? Devemos todos fazer férias na mesma altura do ano? Quem goste do calor e dos escaldões que continue a reservar Agosto para a sua pausa laboral, mas cada um deveria poder gozar as férias prolongadas a que tem direito na estação do ano que mais lhe agradasse. Assim, sem nada (para lá do calor) que distinguisse Agosto dos demais meses, a comunicação social não teria pretexto para entrar no registo silly season — ou panic season, como deveríamos chamar-lhe.

Para quem tem a botânica como passatempo, é sabido que, no hemisfério norte e no clima mediterrânico que em grande parte é o nosso, Agosto é pouco compensador para passeios de campo. Vivemos num período de suspensão: depois da explosão primaveril, as plantas retraem-se com o calor e as de floração outonal aguardam as chuvas de Setembro. Nas terras frescas a maior altitude, em que a humidade no solo persiste todo o ano, é altura de observar gencianas, serrátulas e poucas coisas mais. De resto, vale a pena, em alguns rios ou lagos, espreitar as plantas que aproveitam a descida das águas para florir. Tudo somado, não é coisa que nos ocupe um mês inteiro de férias — daí a nossa pulsão de fugir para os Açores, onde o clima húmido esbate diferenças entre estações do ano e Agosto é dos meses mais primaveris.

Erica multiflora L.


E que tal férias de Inverno para observações botânicas? A lista de plantas que florescem em Dezembro no nosso território não é vazia (ver aqui), e — como mostram os casos do medronheiro e da urze-lusitana — não se retringe à metade sul do país, embora as plantas com essa distribuição estejam em maioria. Também de floração hibernal e também presente no nosso país é a urze-dos-brejos. Para completar um trio de urzes que gostam de florir no Inverno, só temos que ir a Espanha e travar conhecimento com a Erica multiflora (ilustrada acima). É um arbusto que atinge mais de 2 metros de altura e vive na bacia mediterrânica, em clareiras de bosques ou matos secos, sobre substratos calcários. Em Maiorca, onde o fotografámos, é frequente em pinhais de Pinus halepensis a baixa altitude; na Península Ibérica, aparece sobretudo na faixa mais oriental, entre Alicante e a fronteira com França. As flores com estames proeminentes, rematados por anteras escuras, acentuam a semelhança desta urze com a urze-dos-brejos (Erica erigena). No entanto, e como o próprio nome comum denuncia, esta última tem uma ecologia muito diferente, habitando lugares húmidos ou encharcados próximos do litoral. E entre as duas espécies há ainda visíveis diferenças no formato das flores e no comprimento dos pedúnculos: a E. multiflora tem-nos muito mais compridos.

Assim, e ainda que com algum enviesamento sulista, o Inverno acaba por ser botanicamente tão compensador como o Verão. E, sem o calor nem as correlativas ameaças de fim do mundo, umas férias em Dezembro são muito mais tranquilas do que em Agosto.

28/07/2023

Morganheira das Baleares



Quando encontramos uma planta que nunca vimos, podemos ainda assim situá-la numa linhagem de plantas conhecidas se dispusermos de um catálogo (nem que seja mental) suficientemente abrangente. É uma boa ajuda se estivermos num território que, pela proximidade geográfica, se assemelhe a outros que habitualmente frequentamos. Se, de repente, nos víssemos perdidos na Amazónia ou em alguma ilha da Polinésia, de pouco nos valeria o nosso convívio anterior com o reino vegetal, exclusivamente eurocêntrico, não fossem a Madeira e as Canárias terem-lhe acrescentado um cheirinho de África. Estaríamos embrenhados no desconhecido, e o nosso vocabulário para falar de plantas regrediria ao estádio infantil: árvore grande ou pequena, arbusto com ou sem espinhos, flor amarela ou vermelha.

Visitar Maiorca, onde fomos pela primeira vez em Dezembro do ano passado, foi em grande parte uma confortável experiência de reencontro com conhecidas de longa data, à mistura com ingredientes novos para despertar o interesse pela descoberta. Os bosques de azinheiras que cobrem as encostas da serra de Tramuntana são os mais extensos e bem conservados que alguma vez vimos — mas não deixam de ser azinheiras, e sentimo-nos em casa por estarmos rodeados de árvores a que sabemos dar nome. É neste aconchego doméstico que acolhemos novidades como quem muda a decoração do lar: são enfeites novos, mas não muito diferentes dos antigos e adaptados ao mesmo gosto.

Euphorbia pithyusa L.


Neste jogo de inovar dentro da tradição realça-se o comportamento exemplar das eufórbias. Vimos em Maiorca muita Euphorbia characias, que no nosso país conhecemos bem da Terra Quente transmontana e dos calcários do centro-oeste; por ser Inverno, não estava em flor, mas foi agradável reencontrá-la. Ao lado dela, uma outra elegante eufórbia arbustiva, para nós desconhecida, dava discretamente o toque de diferença; e, ainda que fora de época, insistiu em mostrar-nos algumas das suas flores para que pudéssemos identificá-la. Cumprida com diligência essa tarefa logo que pudemos consultar bibliografia apropriada, concluímos que se tratava da Euphorbia pithyusa. Bastante parecida com a morganheira-das-praias, mas com diferenças nas inflorescências (comparem-se os nectários na quarta foto acima com os desta foto), no porte arbustivo (atinge os 80 cm de altura), no formato mais alongado das folhas e na ecologia, a Euphorbia pithyusa distribui-se pelo Mediterrêneo ocidental: ilhas Baleares (mas não Península Ibérica), Sardenha, Córsega, litoral de França, Argélia e Marrocos. Em Maiorca, onde é relativamente abundante, vive sobretudo em clareiras de bosques no norte da ilha, mas em Menorca prefere o litoral e aí as plantas apresentam um hábito mais rasteiro. O epíteto pithyusa, atribuído por Lineu, dever-se-á a uma algo forçada semelhança com certos pinheiros (pithys em grego), circunstância a que também alude o nome da planta em francês, Euphorbe sapinette.

20/06/2023

Oliveirinha de bagas vermelhas

Tournefort, o botânico francês a quem se atribui o mérito de uma definição rigorosa de género para as plantas, chamou-lhe Chamaelea — que é como quem diz de pequeno porte. Anos depois, Lineu mudou-lhe o nome para Cneorum tricoccon. Sem dar explicações sobre esta decisão (pelo menos não se conhece registo de nenhuma, diz a Flora Ibérica), é plausível que Lineu tenha notado que estas plantas podem afinal atingir 1,8 metros de altura (digamos, o tamanho de uma pessoa alta), e que entendesse ser mais relevante que a designação aludisse a dois outros pormenores da morfologia nesta espécie: a parecença da folhagem com a da oliveira (daí o Cneorum) e o facto de os frutos se agruparem em três lóculos, cada um com uma ou duas sementes (tri + coccon, claro). Nome algo enganador, porém, já que esta espécie pertence à família Rutaceae, a mesma das laranjeiras e dos limoeiros.

Cneorum tricoccon L.


Originária da região mediterrânica, é frequente nas ilhas Baleares, em matos e pinhais próximos do litoral e com solo calcário. Mas é, ou sempre foi, rara no resto da Península Ibérica, e dela não há registo em Portugal.



Da outra espécie do género Cneorum actualmente aceite pelos botânicos, Cneorum pulverulentum, endémica do arquipélago das Canárias, já aqui vos demos alguma informação. Num curioso retorno ao passado pré-Lineu, algumas Floras designam a espécie das Canárias como Neochamaelea pulverulenta. Note-se como na mudança de género, de Cneorum para Neochamaelea, houve simultaneamente uma fuga ao nome antigo, rejeitado por Lineu, e uma mudança da categoria morfossintática do epíteto específico. Como disse?, perguntará o leitor, franzindo o sobrolho. É uma expressão sofisticada e obscura do dicionário, tem razão, até porque quer apenas informar que do masculino pulverulentum se passou ao feminino pulverulenta. Não sabemos por que razão botânica esta distinção de sexo nas palavras é essencial. Lineu, contudo, cuja obra foi quase toda escrita em latim e para quem o binómio género/espécie, se bem escolhido, era a chave do sucesso da taxonomia, decerto aplaudiria este desvelo gramatical.

09/06/2023

Vulnerária arbustiva



Como todos o paraísos insulares acessíveis a famílias de posses moderadas, Maiorca tem farta dose de empreendimentos turísticos com vista para o mar, cenicamente enquadrados pelo arvoredo incumbido de representar a natureza em estado puro. Que, como é sabido, se aprecia muito melhor se for tomada em pequenas doses, com intervalos à hora certa para preguiçosas refeições em esplanadas soalheiras. Não estamos propriamente na selva amazónica, nem essa comunhão com a natureza é para levar tão a sério que nos obrigue a prescindir das comodidades da civilização. Contudo, acaba por ser surpreendente que essa natureza utilitária, retalhada por urbanizações, não seja apenas bonita como é sua obrigação profissional, mas se revele extensa, genuína, e recheada de atractivos para amadores de botânica.

Junto ao aldeamento turístico Sol de Maiorca, na costa sudoeste da ilha, os pinhais de Pinus halepensis estendem-se por 7 ou 8 quilómetros quadrados, cruzados por estradões e trilhos que dão acesso a falésias, a praias recatadas e a um farol solitário. Mesmo em Dezembro há aqui flores para admirar: açafrão, urzes, globulária-arbustiva, fradinhos, uma ou outra orquídea temporã. E ainda um arbusto de flores amarelas e folhagem acetinada que faz lembrar uma giesta, mas difere de todas as giestas que conhecemos em Portugal.

Anthyllis cytisoides L.


No nosso rectângulo continental, as leguminosas do género Anthyllis estão representadas por uma única espécie, a vulnerária, herbácea rasteira que, sob diversas formas, aparece em areais costeiros, em afloramentos rochosos cálcarios ou ultra-básicos, e em clareiras de bosques. Apesar de as suas flores variarem entre o vermelho, o rosa, o amarelo e o creme, a vulnerária é facilmente reconhecida pela folhas compostas imparipinadas e pelos glomérulos florais longamente pedunculados, aconchegados por um colarinho de brácteas, formados por flores de cálices insuflados; e igual figurino é adoptado pela endémica madeirense Anthyllis lemanniana. Assim, nada na nossa experiência prévia de curiosos da botânica nos permitia adivinhar que um arbusto com mais de um metro de altura, com flores axilares dispostas aos pares, era afinal um Anthyllis. Serve de alguma consolação que Lineu lhe tenha chamado Anthyllis cytisoides — denunciando o epíteto a semelhança deste arbusto com as giestas do género Cytisus. Mais uma vez a culpa da nossa ignorância cabe à repartição desequilibrada entre Portugal e Espanha do património natural ibérico. O caso dos Anthyllis é gritante: das doze espécies ibéricas (e metade delas são lenhosas), onze couberam em exclusivo aos nossos vizinhos.

Além de frequentar os pinhais de Maiorca e das demais ilhas Baleares, a Anthyllis cytisoides vive em boa parte da região mediterrânica ocidental: França, Espanha, Argélia e Marrocos. Tem preferência por substratos calcários e, sendo intolerante a geadas, busca climas cálidos e áridos próximos da costa. É boa fornecedora de néctar e uma reputada planta melífera.

02/06/2023

Alhos no chão

Allium chamaemoly L.


Este alho, do sul da Europa e norte de África, parece não ter pescoço. Na verdade, apesar de tão rasteiro, não é assim tão pequeno. O que acontece é que o talo, de onde brotam as folhas, tem cerca de 10 cm mas é subterrâneo, e a haste floral é praticamente inexistente. As folhas largas e longas encarregam-se de gerar energia que o caule, adaptado qual raiz à vida sem acesso directo à luz, armazena. É desta combinação de acções que esta planta beneficia, permitindo-lhe manter um regime perene. Em vez de um caule onde pendurar gaiatamente folhas e flores, parece ser-lhe mais vantajoso ter uma despensa de nutrientes, que mantém fresca e salvaguardada debaixo do solo. Supomos que é arriscado ser pequeno e morar tão rente ao chão, mas o aroma a alho afugenta predadores tão bem, dizem, como o diabo. É de se lhe invejar a prudência.



Mesmo sendo diminuto, este alho é fácil de avistar pois tem 4 a 8 folhas num tom de verde que se destaca do castanho-cinza dos prados ralos, em solos pedregosos, que ele aprecia. Em locais onde é abundante (na região mediterrânica), podem ver-se dezenas de exemplares juntos, formando na época de floração (entre Dezembro e Fevereiro) um emaranhado de folhas com margens peludinhas onde se aninham as umbelas de flores brancas com um caprichoso veio verde no meio de cada tépala. As fotos são de exemplares em Maiorca, no arquipélago das Baleares, onde se tropeça neste alho a cada passo se se passear por pinhais (de Pinus halepensis) e rochedos calcários à beira mar.

O cenário em Portugal, limite leste da distribuição desta espécie, é distinto. Talvez este alho já tenha sido abundante no sul do país, mas actualmente são apenas conhecidos três núcleos escassos, na Estremadura e no Baixo Alentejo. Segundo a Flora-on, a maior população registada é a do Baixo Alentejo, com cerca de 1000 indivíduos que vivem perto de uma ribeira. Decerto desaparecerão se o plano de construção de reservatórios de água ou barragens naquela região for implementado descuidadamente. Fica o alerta: é preciso manter a vigilância pois, no que se refere a desleixos destes e à destruição de habitats a eito, somos mestres.

23/05/2023

Hipericão amargoso



Há milénios que as ilhas do Mediterrâneo são habitadas, e estima-se que a colonização de Maiorca se tenha iniciado há uns 4500 anos. Haverá assim poucos espaços dessa ilha que não tenham sido alterados pela presença humana. As extensas florestas de azinheiras e pinheiros-do-Alepo que cobrem as íngremes vertentes da serra de Tramuntana, embora densas e verdejantes, não são exactamente território virgem. Além dos caminhos e estradões que as cruzam, e das muitas cercas que vedam a passagem a forasteiros, o coberto vegetal também sofreu alterações, mesmo que, em contraste com o que é regra em espaços naturais portugueses, as espécies exóticas invasoras sejam pouco ou nada visíveis. Isto se nos cingirmos às espécies vegetais, porque de facto o maior problema para a conservação da natureza em Maiorca é uma invasora de quatro patas: a cabra. As populações de cabras assilvestradas, descendentes das que foram introduzidas na ilha logo nos primeiros séculos do povoamento, têm vindo a pôr em risco plantas endémicas raras como o Senecio rodriguezii — e, em certos lugares da ilha, têm extirpado arbustos nativos outrora comuns (como a Euphorbia dendroides) ou travado a renovação natural do coberto arbóreo (leia-se esta notícia).

Hypericum balearicum L.


Contudo, e ao contrário do que sucede nos arquipélagos da Macaronésia, a vegetação endémica das Baleares dispõe de algumas defesas contra a depredação por herbívoros, já que coabitou durante a sua evolução com um herbívoro endémico da família dos caprinos. Esse animal terá sido rapidamente extinto (talvez em menos de cem anos) após o povoamento das ilhas e só foi (re)descoberto, sob a forma de ossadas, no início do séc. XX, sendo então nomeado Myotragus balearicus. É por certo graças a ele que existem plantas maiorquinas de hábito compacto dotadas de espinhos aguçados (como o Astragalus balearicus), que são obviamente desencorajadores do mais voraz dos apetites. Outro modo de uma planta evitar converter-se em refeição é ser peçonhenta ou de sabor desagradável. Tudo indica ser essa a estratégia usada pelo hipericão-das-Baleares (fotos em cima): não sendo nada espinhento, não há outro motivo plausível para as cabras recusarem alimentar-se da sua tenra folhagem. Ou talvez as folhas deste arbusto não sejam assim tão tenras: são pequenas, têm um aspecto rígido e crispado, e apresentam margens pontuadas por verrugas proeminentes — verrugas essas recheadas com uma resina que não é certamente um néctar dos deuses. Idênticas verrugas com idêntico recheio distribuem-se de alto a baixo nos ramos e raminhos da planta. O aviso é claro e todas as cabras o respeitam: nenhuma se dispõe a trincar o Hypericum balearicum, que vai fazendo a sua tranquila vida de sempre em Maiorca (onde é mais abundante, aparecendo desde a costa até aos cumes mais elevados) e nas demais ilhas baleares.

Nenhuma outra espécie do género Hypericum — que alberga espécies de porte muito variável, desde herbáceas a pequenas árvores — dispõe de igual mecanismo de dissuasão da herbivoria, e por isso é justo qualificar o Hypericum balearicum de inconfundível. Outro título de nobreza que ninguém lhe tira é ter sido descrito por Lineu em 1753 no seminal Species Plantarum. É de supor que já nessa época as ilhas mediterrânicas fossem assiduamente frequentadas por viajantes norte-europeus em busca de climas mais amenos.

15/05/2023

Trovisco peludo

O fascínio que quase todos sentimos pelos dinossauros deve-se, em parte, à diversidade notável de formas e hábitos nesta família de animais, mas é alimentado pelo terror que os fósseis denunciam e que os filmes sobre o tema muito bem exploram: de um tamanho medonho, com caudas, mandíbulas e dentes pavorosos, alguns dinossauros foram predadores tão poderosos que, se ainda existissem, muitos outros seres não teriam surgido na Terra. Curiosamente, a outra razão para o encanto dos dinossauros deve-se precisamente ao facto de, apesar de extintos, restarem da sua presença na Terra inúmeras provas. Ainda que tenham deixado de existir, a sua assinatura no passado pôde chegar até hoje e ser entendida pelos novos habitantes da Terra.

Vem este arrazoado a propósito da planta que hoje vos mostramos. Está extinta em Portugal: nunca terá sido abundante (havia apenas registo dela nas areias marítimas junto à foz do rio Guadiana, no Sotavento Algarvio), mas o certo é que, desde 1853, ninguém a avista nesse local, ou noutro qualquer do litoral português. Segundo os autores da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, o seu desaparecimento em solo nacional talvez se deva «às obras de regularização da foz do rio Guadiana e à expansão urbana da cidade de Faro, que poderão ter causado a destruição de indivíduos e profundas alterações no habitat». Por idêntica degradação do habitat, desapareceu também dos prados húmidos costeiros, entre o Minho e a Beira Litoral, a orquídea Epipactis palustris. No sudeste de Espanha, e mais geralmente na bacia do Mediterrâneo, a Thymelaea hirsuta é bastante frequente, e floresce no Inverno. Fomos, por isso, à procura dela em Dezembro na ilha de Maiorca.

Thymelaea hirsuta (L.) Endl.


O género Thymelaea abriga espécies arbustivas e subarbustivas, perenes (caso da T. hirsuta) ou anuais (como a T. passerina). As folhas são inteiras, por vezes densamente tomentosas. Segundo os botânicos, e ao contrário do que juraríamos ser verdade, as flores não têm pétalas. São apenas cálices tubulares amarelos (raramente rosados) com 4 lóbulos, protegidos por brácteas que parecem folhas, e que em algumas espécies se agrupam em espigas, noutras em cachos.

A T. hirsuta é peculiar na preparação para a época de floração. Apesar de ser uma espécie monóica, com flores unisexuais ou hermafroditas num mesmo indivíduo, podem encontrar-se, numa mesma população, exemplares cujas flores são quase todas masculinas e outros em que são quase todas femininas — como se afinal se tratasse de uma espécie dióica. Mas este desempenho vai mais longe: de ano para ano, ou até numa mesma temporada de floração, um indivíduo de T. hirsuta pode mudar a sua tendência sexual maioritária se isso beneficiar a polinização e, portanto, a produção de sementes, ou outro factor ambiental o justificar. Como deduzimos do caso português, todo este prodigioso labor florístico pode ser insuficiente para impedir a sua extinção.

05/05/2023

Fentilho de Maiorca



O barranco de Biniaraix, em Maiorca, ascende desde o vale de Sóller e proporciona um íngreme acesso à serra de Tramuntana, a cordilheira que se estende por todo o limite norte da ilha e atinge os 1445 metros de altitude no seu ponto culminante. Nos primeiros 400 metros da subida, e com excepção de alguns pontos de passagem mais estreitos, as encostas que ladeiam o barranco estão talhadas em socalcos ainda mais vertiginosos que os do Douro. Só que, em vez de vinhas, os patamares estão ocupados por olivais; e, em vez do avermelhado do xisto, os muros exibem a brancura do calcário de que a ilha é feita. A olhos portugueses parece uma paisagem híbrida, um cenário duriense feito de materiais arrancados ao maciço calcário estremenho. É bem apropriado que alguma da vida vegetal refugiada nesses muros seja também ela de origem híbrida.

Asplenium majoricum Litard.


Inicialmente descrito em 1911 pelo francês René Verriet de Litardière (1888–1957) com base em exemplares colhidos nos muros da cidade de Sóller, o Asplenium majoricum foi tido, durante muito anos, como endémico da ilha de Maiorca — ou até endémico do município de Sóller. É que esse feto não frequenta altitudes elevadas e a sua área de distribuição na ilha é bastante restrita. Contudo, sabe-se hoje que o mesmo feto ocorre na Espanha continental, tanto em Valência como no sul da Catalunha, embora se suspeite, pelo estudo de marcadores genéticos, que as duas linhagens da espécie, a peninsular e a maiorquina, tenham surgido de forma independente. De facto, o Asplenium majoricum é um tetraplóide que resultou, por hibridação e duplicação do genoma, do cruzamento de dois fetos diplóides, ambos de apetências calcícolas, o Asplenium fontanum e uma forma ancestral do Asplenium petrarchae. Não é impossível que idêntico cruzamento de espécies, seguido de igual duplicação do genoma, se tenha dado em dois locais distintos: um caso desse tipo foi reportado na Escócia, há 11 anos, com a Erythranthe peregrina (= Mimulus peregrinus), produto da hibridação, ocorrida em pelo menos duas localidades bem afastadas uma da outra, de duas espécies exóticas naturalizadas, uma norte-americana e outra sul-americana.

Com folhas curtas, de 6 a 12 cm de comprimento, o Asplenium majoricum combina o porte miniatural do A. petrarchae com o carácter glabro e o desenho das frondes do A. fontanum. Ter optado pelo tamanho do mais humilde dos seus progenitores valeu-lhe a sobrevivência numa ilha em que as cabras assilvestradas vêm provocando grande destruição da flora espontânea. Encolhido nas fendas dos muros, sem deixar sobressair a ponta de uma folha, não há cabra que lhe ferre o dente. O A. fontanum, com frondes que ultrapassam os 20 cm, pagou cara a imprudência de se mostrar a descoberto: os últimos exemplares conhecidos na ilha foram, há poucos anos, protegidos com redes para não serem devorados por cabras (história completa aqui).

07/04/2023

Açafrão insular

Crocus cambessedesii J. Gay


A Natureza não seria ridícula ao ponto
de se resumir a qualquer fórmula literária
ou matemática.
Coloca o livro mais brilhante de Goethe
ao lado de uma pedra: volta no outro dia,
e no dia seguinte. E na semana seguinte.
Verás: nada aconteceu à pedra,
enquanto o livro, por todo o lado, por todas as partes,
começou a perder qualidades.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)