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23/09/2024

Genciana fina



Hoje mostramo-vos uma herbácea anual, com não mais do que um palmo de altura, que é quase só flor. Frequente nas regiões mais frias do hemisfério norte, ocorre na serra Nevada em prados de montanha ou rochedos húmidos acima dos 2000 metros de altityde. Da roseta de folhas basais, diminutas mas pecioladas, nascem talos erectos no topo de cada um dos quais surge, entre Julho e Agosto, uma só flor. E o que se nota desde logo é quão longe ficam as flores da base de folhas, como se quisessem evitar a humidade do solo depois do degelo, e esticassem o pescoço para não passarem despercebidas.

Comastoma tenellum (Rottb.) Toyok.


E, abrindo bem os olhos porque há que focar algo muito pequenino rodeado por vegetação rasteira densa, o que vemos? Flores de construção simples, tubulares e muito bem agasalhadas por um casaco de sépalas longas e resistentes. O cálice da flor está recortado no topo em 4 lóbulos azulados, quase roxos, que fazem lembrar as gencianas mas são desiguais (2 deles ligeiramente maiores). E, na base dos lóbulos, a tapar a garganta do cálice, uma cúpula de fímbrias brancas, abaixo da qual se situam protegidos os estames e o estigma da flor. É como um tapete à porta de casa, onde os polinizadores têm de limpar bem as patinhas antes de entrar para aceder aos 8 nectários disponíveis. É a essa crina que o nome do género alude, e que revemos em espécies alpinas ou pirenaicas que habitam habitats turfosos. O epíteto tenella indica que as plantas desta espécie são de pequeno porte.

Talvez noutras eras, quando a serra da Estrela tinha neve todo o ano e em abundância, esta planta também ocorresse por cá. Agora, a sua distribuição ibérica reduz-se aos Pirenéus e à serra Nevada. Ocorre noutras paragens frias da Europa, América do Norte, Ásia e Marrocos.

04/04/2021

Dona Genciana revisitada




Portugal, talvez por falta de cadeias montanhosas elevadas, foi muito desfavorecido face a Espanha na partilha de espécies de Gentiana: só temos duas (G. pneumonanthe e G. lutea, esta só na serra da Estrela) e os nossos vizinhos têm 13; se lhes acrescentarmos os géneros aparentados Gentianopsis e Gentianella, o saldo final é de 16-2 a favor de Espanha. Que, com toda esta prodigalidade, ainda pôde assegurar que duas dessas espécies (G. boryi e G. sierrae) fossem exclusivas do seu território.

Os Pirenéus, que visitámos uma única vez, é um local de eleição, mesmo nos meses mais quentes, para quem queira familiarizar-se com a diversidade de gencianas e aparentadas, acolhendo algumas espécies amplamente distribuídas na Europa. Duas delas são hoje aqui apresentadas, e servem de pretexto para averiguar das diferenças entre uma Gentianella e uma genuína Gentiana.

Gentianella campestris (L.) Börner
Na Gentianella campestris (fotos em cima) as flores têm quatro pétalas, o mesmo valendo para a Gentianella amarella, a outra espécie ibérica do género. Poderá ser esta uma característica diferenciadora? Parece que não. É que, embora a maioria das espécies de Gentiana tenha cinco pétalas, há pelo menos uma excepção, a Gentiana cruciata, que apresentamos abaixo. Outra possível divergência estaria no ciclo de vida: as duas espécies ibéricas de Gentianella são bienais, enquanto quase todas as de Gentiana são perenes. Mais uma vez uma excepção vem boicotar a teoria: a Gentiana nivalis, especialista em alta montanha, é uma planta anual.

Uma diferença promissora é que, na Gentianella, os lóbulos da corola (é algo incorrecto falar em «pétalas» quando elas não estão claramente autonomizadas) têm a base fimbriada, formando uma franja na abertura do tubo floral. Essa franja está ausente de todas as espécies de Gentiana, mas surge também, e de modo ainda mais visível, na Gentianopsis ciliata, uma falsa genciana em que todo o bordo da corola está guarnecido de cílios. Assim, quando o leitor, nas suas andanças pós-pandémicas pelas montanhas europeias, deparar com uma planta que lhe pareça ser uma Gentiana mas apresente flores mais ou menos franjadas (não se esqueça da lupa, tão indispensável ao seu kit de sobrevivência como o aparelho de gps, a garrafa de água e o bastão de caminhada), já poderá declarar confiante que se trata afinal de uma Gentianella ou Gentianopsis (ou simplesmente Gentianella, pois a opinião mais recente é que os dois géneros são um só).

Gentiana cruciata L.


Para terminar, uma palavra de apreço pela Gentiana cruciata, uma planta de prados de montanha e clareiras de bosques em altitudes não demasiado elevadas (até 2000 m), com preferência por substratos calcários. As flores tubulares azuis, mais ou menos pigmentadas na garganta, são traços de família que saltam à vista. No entanto, as folhas grandes e os caules robustos, e a disposição das flores em verticilos axilares (ver 1.ª foto), diferenciam-na claramente de outras gencianas azuis de flores semelhantes (como a G. pneumonanthe e a G. angustifolia). Dir-se-ia que a G. cruciata se situa na transição entre esse grupo de espécies, formado por herbáceas tendencialmente rasteiras, e as avantajadas G. lutea e G. burseri.

25/04/2020

Rainha do monte verde

Em algumas obras de literatura é possível reconhecer as pessoas reais que inspiraram as personagens, ainda que os grandes romancistas fabriquem criaturas de complexidade, e relevância para a nossa memória, que em geral superam as figuras que lhes servem de modelo. Foi assim em Alice's adventures in wonderland, de Lewis Carroll, em que a Alice da narrativa parece muito mais graciosa, criativa, bem-falante e bafejada pela sorte do que a pálida Alice real. E é também o caso das histórias que são autobiografias ficcionadas, em que o escritor é a verdadeira fonte do relato, como em A escola do paraíso, de José Rodrigues Miguéis, Ernestina, de J. Rentes de Carvalho, ou Nó cego, de Carlos Vale Ferraz. E, a propósito, decerto o leitor sabe a quem aludia a frase "E diz o inteligente que acabaram as canções", de um poema de Ary dos Santos musicado antes do 25 de Abril. A planta que vos mostramos hoje pareceu-nos, quando a encontrámos na laurissilva de Anaga, em Tenerife, uma versão ficcionada das herbáceas do género Blackstonia.


Ixanthus viscosus (Sm.) Griseb.


Altaneira, de flores exageradamente grandes (como as da B. grandiflora) agrupadas em inflorescências terminais que parecem enxertadas no caule de outra planta, exibia brácteas soldadas duas a duas a abraçar o caule como é característico das Blackstonias. Seria uma caricatura perfeita destas não fossem as folhas de genciana, que sugeriam ser outro o género em causa, embora da mesma família botânica.

O género Ixanthus é endémico do arquipélago das Canárias e mono-específico: a única espécie conhecida é I. viscosus, que ocorre também na Grã-Canária, La Gomera, El Hierro e La Palma. Trata-se de uma herbácea perene, de base algo lenhosa, com cerca de 1 metro de altura e folhas muito pegajosas; e que, dizem, é conhecida como reina del monte. O monte a que aqui se alude é em geral denso, húmido e sombrio, por isso com menor competição entre herbáceas, mas ideal para plantas exclusivas destas ilhas como a Canarina canariensis, o Geranium reuteri, o Isoplexis canariensis e este Ixanthus de fantasia.

21/12/2019

Genciana de meio palmo



Durante as duas ondas de calor que no fim da Primavera atingiram o centro de Espanha, a serra de Gredos penou de aridez. Com algumas excepções, os prados tipicamente verdes e floridos nas montanhas lembravam pastos de palha seca. A juntar a este cenário desolador, as margens dos riachos mais promissores estavam completamente pisoteadas pelo gado que, sequioso, derrubou cercas e foi beber onde ainda havia alguma água. A vegetação, com uma sabedoria não surpreendente, tratou de despachar a floração, e no incício de Agosto eram poucas as turfeiras com algo que merecesse uma visita. Foi preciso subir mais, até às gigantescas pistas de esqui a mais de 2000 metros de altura, desactivadas no Verão, para encontrar o que procurávamos.


Gentiana boryi Boiss.


Tal como as gencianas que ocorrem em Portugal (G. pneumonanthes, com mais populações no norte do país, e G. lutea, na serra da Estrela), esta espécie aprecia cervunais frescos de alta montanha, permanentemente húmidos e com solo ácido e rico. Por depender de um habitat ameaçado e ter uma distribuição restrita, está incluída, com o estatuto de vulnerável, na lista vermelha da flora de Espanha. De caules prostrados, não ultrapassa em geral os 10 cm de altura, mas forma, entre Julho e Setembro, vastos tapetes de flores minúsculas (a corola plissada tem pouco mais do que 1 cm de diâmetro) que nascem frequentemente aos pares, com um lindo tom de azul a contrastar com um atraente centro amarelo pintalgado.

Esta genciana é um endemismo espanhol cuja presença está registada na serra Nevada, na serra de Gredos e na Cantábria. O seu nome é mais uma homenagem ao naturalista francês Jean Baptiste Bory de Saint-Vincent (1778-1846).

15/11/2017

Dona Genciana & C.ª

A ideia generalizada de que as abelhas estão apenas interessadas no néctar das flores, que recebem como pagamento pelo serviço de levar o pólen de umas plantas para outras, deve-se por certo a alguma desatenção quanto ao comportamento destes insectos. Tanto as flores como as abelhas precisam de pólen. O néctar, feito essencialmente de açúcar e água, dá energia às abelhas na sua lide diária; mas elas, e sobretudo as crias, precisam também de proteínas, e o pólen é a melhor fonte desse alimento que conhecem. Isto significa que, embora para a reprodução das plantas convenha que a abelha deposite noutras flores o pólen que leva, ela desdobra-se em mil cuidados para levar todo o pólen que puder para casa. Surpreende-nos que este paradoxal acordo entre espécies se venha mantendo com sucesso.

Este conflito de interesses quanto ao uso do pólen levou naturalmente a adaptações tanto nas flores como nos insectos. Nas flores há inúmeros mecanismos que reduzem o desperdício de pólen, seja pelo formato dos grãos de pólen que nem todos os insectos conseguem agarrar, ou pela posição da corola onde o insecto aterra de modo a que o pólen se deposite numa parte mais segura da abelha, ou ainda pela presença de zonas translúcidas nos tubos florais que guiam alguns visitantes até aos nectários enquanto passam despercebidos a outros. Tudo afinado para não se comprometer a capacidade de atrair os insectos adequados, enquanto se repelem os meros ladrões de guloseimas. Por seu lado, as abelhas tornaram-se mais eficientes na colheita e transporte do pólen, e a evolução deu-lhes a possibilidade de aprenderem depressa e bem quais as flores mais recompensadoras, em comunidades em que se copiam livremente as abelhas mais espertas.


Gentiana angustifolia Vill.



Gentiana verna L.


As plantas do género Gentiana são em geral polinizadas por abelhas, embora em algumas espécies haja também borboletas a ajudar no processo de fecundação. A morfologia e o ciclo destas espécies fornecem amplos exemplos das adaptações que mencionámos. O caso da G. pneumonanthe, de corolas pintalgadas de dourado, é especial: em alguns habitats, estabeleceu uma interacção peculiar com duas outras espécies, uma borboleta azul (Maculinea alcon), que desposita os seus ovos nos tubos da flor, e uma formiga vermelha (Myrmica scabrinodis), em cujas colónias as larvas da borboleta caem, se alimentam e crescem, libertando assim a planta dessas criaturas vorazes.

A Península Ibérica abriga várias espécies do género Gentiana, algumas anuais, outras bianuais ou perenes, que parecem preferir regiões frias — as que, neste canto sudoeste da Europa, vão rareando. É na Ásia, sobretudo nas montanhas chinesas, que se concentra a maioria das cerca de 360 espécies conhecidas. Nas fotos acima, as primeiras flores, vistas em afloramentos calcários da Cantábria, são versões gigantes da G. pneumonanthe; as outras, do pico Tres Mares, com corolas de bordos largos e quase planos, são muito mais pequenas e rasteiras, mas nascem em tapetes vistosos de um azul intenso (com os centros assinalados a branco) onde as abelhas se banqueteiam felizes.

15/10/2016

Pequenos remédios

Propomos-lhe hoje que comece por desenhar um pequeno traço fininho e vertical ao fundo de uma folha de papel, e que na ponta de cima do traço coloque dois outros traços um pouco menores a formar um V. Tem agora à sua frente um Y. A cada uma das duas pontas superiores deste Y, junte agora um novo par de segmentos em forma de V. Repita esta operação umas dez vezes. Obterá uma figura que, apesar do curto talo inicial e dos minúsculos tracinhos que foi acrescentando, ocupa uma boa porção do papel. Se em cada nó assentar duas pequenas folhas opostas e sésseis, e no topo do desenho algumas flores cor-de-centáurea de quatro ou cinco pétalas enfeitadas com um dentinho no ápice, terá um esquema fiel da planta que hoje aqui mostramos.


Exaculum pusillum (Lam.) Caruel


Esta estratégia de ramificação nota-se em plantas que, por habitarem prados temporariamente encharcados, precisam de evitar demasiada exposição à humidade das folhas e das flores; ou naquelas plantas com flores diminutas a quem convém aumentar a visibilidade das cimeiras de flores, como acontece no género Euphorbia. É um estratagema eficiente e barato pois, sem crescer demasiado, o que gastaria tempo (que falta a plantas anuais) e muita energia e nutrientes (que não abundam em solos arenosos), basta à planta organizar algumas poucas folhas e ramos de tamanho reduzido (pusillum) num arranjo mais favorável.

Há uns anos procurámos na serra do Açor esta única espécie de Exaculum, mas sem sucesso. Se reparar, a distribuição conhecida desta espécie em Portugal, embora se afirme na Flora Ibérica que vai do Algarve ao Minho, parece evitar o norte do país, mais próxima de nós. Por puro acaso, vimos no fim do ano passado uma população numerosa nas margens da lagoa da Pipa, mas já sem flores. Este ano voltámos ao Ribatejo em Julho e em Setembro e, além da Pipa, foram várias as lagoas em cujas margens detectámos este emaranhado típico dos raminhos de Exaculum.

O Exaculum pusillum é uma espécie anual que ocorre no sul e no oeste da Europa e no norte de África, mas, por ocupar uma área global restrita e muito fragmentada, em habitats vulneráveis ou em declínio, foi incluída com o estatuto de "quase ameaçada" na lista vermelha da IUCN para a flora em risco.

15/12/2015

Cura amarela


Gentiana lutea L.


O género Gentiana é famoso pelas flores tubulares de um magnífico azul arroxeado, pintalgadas de branco ou dourado, que conhecemos da Gentiana pneumonanthe. É esse o padrão da maioria das espécies alpinas deste género, herbáceas perenes ou anuais de estatura baixa, com folhas opostas e flores terminais, que se aninham em fendas de rochas graníticas, urzais, prados húmidos, turfeiras e pastagens de montanha. Mas há uma espécie de Gentiana do centro e sul da Europa (que também ocorre na serra da Estrela, embora vários guias de campo garantam que não, como o de Oleg Polunin e B.E. Smythies, Flowers of South-West Europe, 1997, da Oxford University Press) que não segue a moda. As plantas dessa espécie são robustas e altas (podem atingir um metro e meio de altura), de folhas glaucas, largas e de nervação vincada; na floração, enfeitam-se com uma haste erecta dividida em patamares recheados de flores amarelas (por vezes avermelhadas) protegidas por duas brácteas em concha, havendo, curiosamente, no topo da haste, uma flor solitária adicional (veja-a nas duas primeiras fotos); e as flores não são nem tubulares nem sarapintadas.

Tentámos vê-la em flor em verões sucessivos na serra da Estrela, sempre sem sucesso: ou era cedo de mais; ou a planta ainda era jovem e não floriria nesse ano; ou já tinha florido mas um cabrito tinha-lhe comido a haste; ou havia hastes mas sem as flores, cortadas por gente que as usa em tónicos ou licores, embora as virtudes medicinais estejam de facto nas raízes e rizomas. Restou-nos a solução de que há muito se servem alguns dos azarados e infelizes candidatos ao curso de Medicina nas universidades portuguesas que falham o acesso por umas poucas décimas: virámo-nos para Espanha e tivemos finalmente acesso a muitas Gentiana lutea em flor. No Pico Tres Mares, a população que encontrámos tinha tantas centenas de indivíduos que se puderam observar plantas ainda imaturas, outras completamente floridas e várias já com os frutos.

A Flora Ibérica regista a presença em Espanha de duas subespécies, G. lutea subesp. lutea e G. lutea subsp. montserratii, além de híbridos da G. lutea com a G. burseri. O leitor interessado poderá ver no portal Anthos imagens destas subespécies, bastando que procure na galeria fotográfica o género Gentiana, e observar como dão flores claramente diferentes.

29/07/2013

Endemismos: achados & perdidos

Santa Maria, Açores
É consensual que a flora vascular dos Açores contém escasso número de endemismos, entre 70 e 80. É esse o total de plantas que são espontâneas no arquipélago e em nenhum outro lugar do mundo. Talvez algum leitor estranhe que não se forneça o número exacto: são 72, 75, 79? Serão os botânicos tão pouco dotados para a aritmética que, mesmo com números tão pequenos, não conseguem acertar na contagem? O problema são as diferenças de opinião, ou o modo como certos autores valorizam ou não certas características diferenciadoras. Um caso paradigmático é o do Centaurium scilloides: até um leigo sem bagagem técnica ou teórica reconhece que as plantas açorianas, por terem flores invariavelmente brancas, são diferentes das continentais, com flores cor-de-rosa. Mesmo tendo em conta outras pequenas diferenças morfológicas, a tese que prevaleceu até há pouco, e que foi acolhida pelo recente volume da Flora Ibérica dedicado à família Gentianaceae, é que se tratava de uma só espécie, e que a variante insular não era merecedora de qualquer reconhecimento taxonómico. Eis senão quando entram em cena os estudos genéticos, por uma vez em defesa do senso comum, estabelecendo que aquilo que é diferente a olho nu também o é a um nível mais profundo. Em Dezembro de 2012, saiu na revista científica Plant Systematics and Evolution um artigo com o título A new endemism for the Azores: the case of Centaurium scilloides (L. f.) Samp., da autoria dos botânicos espanhóis José Antonio Fernández Prieto, Eduardo Cires, René Pérez e Álvaro Bueno. Nele se conclui que o C. scilloides é exclusivo dos Açores, e que as plantas continentais, pertencendo a uma espécie diferente, devem ser designadas por Centaurum portense (Brot.) Buchner. Como prenda de Natal de 2012, o arquipélago ganhou um novo endemismo, o que é adequada compensação pela queda em desgraça da suposta Marsilea azorica, ocorrida no ano anterior.

Há assim plantas desde sempre conhecidas no arquipélago que, de um momento para o outro, ganham o selo de tesouro natural de primeiro quilate. Devemos chamar-lhes endémicas arrivistas? Porque há as endémicas clássicas, cuja singularidade nunca esteve em dúvida, como a Azorina vidalii, a Euphorbia stygiana, a Scabiosa nitens, a Bellis azorica e o Vaccinium cyilindraceum. E, finalmente, há aquelas endémicas de estatuto incerto que alguém, com pouco fundamento, proclamou como tal vai para muitos anos, mas em que na verdade já pouca gente acredita. São as endémicas cadentes, à espera do golpe de misericórdia de um estudo moderno para serem apeadas da fama espúria. Talvez este fluxo permanente entre entradas e saídas não permita que o número de endemismos açorianos alguma vez ultrapasse os 80.

Asplenium azoricum (Milde) Lovis, Rasbach & Reichst.



O Asplenium azoricum é um endemismo açoriano de indiscutível mérito que só foi entronizado em 1977, em artigo de J. D. Lovis et al. no American Fern Journal. A sua longa permanência no anonimato deve-se em boa parte à semelhança com duas espécies também presentes no arquipélago: o avencão (Asplenium trichomanes subsp. quadrivalens) e o feto-de-escoumas (A. monanthes). Que se trata de três espécies distintas prova-o a contagem dos cromossomas, em perfeita progressão aritmética: o A. azoricum é diplóide (72 cromossomas), o A. monanthes triplóide (108 cromossomas), e o A. trichomanes subsp. quadrivalens tetraplóide (144 cromossomas). A condição de triploidia do A. monanthes indica que a espécie tem origem híbrida, mas que, ao contrário do habitual nestes casos, não se deu duplicação de cromossomas; o resultado é que o feto só se reproduz por apomixia (os gametófitos dispensam a fecundação para darem origem a nova planta).

Como ainda não se inventaram aparelhos para contar cromossomas in situ, é útil ao amador de botânica anotar os detalhes morfológicos que diferenciam o A. azoricum do A. trichomanes: assim, as frondes do primeiro têm pecíolo de um negro brilhante ou de um castanho muito escuro, e as pinas, que têm um formato quase triangular (as do A. trichomanes são mais curtas e rectangulares), apresentam um recorte bem mais pronunciado nas margens. Tais detalhes são porém mais evidentes nas plantas bem desenvolvidas que se encontram em sítios húmidos e abrigados, e haverá casos de determinação incerta. Finalmente, é uma grande ajuda saber que nas Flores e em Santa Maria o A. trichomanes quase não existe, e que na segunda dessas ilhas o A. azoricum é muito comum, tanto em muros e taludes como em bosques de faia e incenso.

23/08/2011

A cavalo branco não se olha a cor


Centaurium scilloides (L. fil.) Samp.


Escolhemos visitar a ilha das Flores no início do Verão para podermos ver a versão albina do Centaurium scilloides — uma forma que, sendo rara no continente, é a única que ocorre em todas as ilhas dos Açores. Também aqui esta planta perene prefere habitats húmidos, ravinas e rochas, não é exigente com a qualidade do substrato e é resistente ao sal e à maresia. Apreciando invernos e verões amenos, é mais frequente nas zonas costeiras e na floresta laurissilva entre os 400 e os 700 metros de altitude. As flores, em geral solitárias, medem cerca de 2 cm de diâmetro. Apesar de o período de floração ser longo e de este centauro constar da lista vermelha em França e Inglaterra, crê-se que só não está em regressão no norte de Espanha e nos Açores.

A cor das corolas e as folhas um pouco mais estreitas são as únicas diferenças detectadas entre os espécimes continentais e os insulares. Por isso, a proposta de considerar a variante branca como uma subespécie (C. scilloides subsp. massonii (Sweet) Palhinha) não vingou. E, naturalmente, houve quem questionasse o seu parentesco com as plantas do continente. Esta espécie é endémica da costa atlântica do oeste europeu, entre Portugal (onde se restringe ao norte) e as ilhas britânicas, e só nos Açores não dá flores cor-de-rosa. Ora a componente genética responsável pela cor branca (ou melhor, pela ausência do rosa) é, como em outros géneros, recessiva. E portanto, admitindo que a planta açoriana, cuja presença nas ilhas se crê ser anterior à ocupação humana, tem um antepassado europeu, como chegou ela às ilhas e por que é a versão recessiva, à partida com baixa probabilidade de dominar, a única que ali sobrevive?

Como em muitos capítulos da História, há boas conjecturas mas não ainda uma resposta conclusiva. Fizeram-se aturadas experiências, claro. Revelaram que uma só destas plantas pode produzir num ano mais de 11 mil sementes, um terço das quais mantém a viabilidade e a capacidade de flutuar no mar durante pelo menos quinze dias. Uma vez aportada a uma das ilhas (fosse trazida pelas marés ou por aves marinhas), o vento, o mar e os pássaros certamente ajudaram na colonização das outras, o que justificaria que todas as plantas açorianas sejam de flor branca. E há registos de plantas albinas na Galiza e outras com flores de um rosa esbatido na Cantábria e na Normandia. Mas estes estudos não chegam para decidir se a planta açoriana teve origem no continente — embora sugira que o sentido inverso é menos plausível — nem se a viagem, a ter existido, foi directa. E não explicam por que razão (evolutiva, por adaptação a novos polinizadores, ou outra) só há a versão albina nas ilhas; nem por que não consta da flora da ilha da Madeira.

A abreviatura (L. fil.) Samp. no nome desta espécie indica que foi primeiro descrita (em 1782, como Gentiana scilloides) por Carl von Linnaeus (1741-1783), botânico sueco com o mesmo nome do pai, que participou numa expedição botânica à Europa ocidental entre 1781 e 1783; e que essa designação foi corrigida mais tarde (1913) por Gonçalo Sampaio.

26/07/2011

A cavalo nas dunas

Centaurium chloodes (Brot.) Samp.


"If I eat one of these cakes", she thought, "it's sure to make some change in my size"... So she swallowed one... and was delighted to find that she began shrinking directly.
Lewis Carroll, Alice's Adventures in Wonderland (1865)

Este centauro é o mais pequenino que conhecemos. A razão está na fraca dieta, pois resigna-se ao que as areias em dunas ou depressões húmidas do litoral lhe fornecem, o que é quase nada temperado com sal e muito vento. Foi difícil encontrá-lo por ser tão diminuto (as folhas basais medem cerca de 5 mm) e, sobretudo, de floração tão efémera: numa semana, amareleceu o coxim de cor verde-relva (isto é, chloodes) formado pelas folhas sésseis, oblongas, carnudas e brilhantes (e que lhe valeu os madrigais confertum e caespitosa), e desapareceram as flores róseas que, apesar de medirem apenas um centímetro de diâmetro, nos permitiram detectar a planta. Uma vida apressada esta (como a da maioria das espécies do género Centaurium; uma excepção é o C. scilloides, que é uma planta vivaz), mas que basta para disseminar as sementes e garante o disfarce atempado no areal, antes que por ali circulem os veraneantes ou o tempo ameno se esgote.

É um endemismo do sudoeste europeu, que é como quem diz das dunas e falésias da costa atlântica francesa (onde, segundo o Guide de la flore des dunes littorales, coord. Jean Favennec, Office National des Forêts, de 1998, está praticamente extinta e é agora espécie protegida) e do litoral norte e noroeste da Península Ibérica. Todos os registos alertam para uma distribuição restrita e para as populações escassas, e por isso consta da lista de plantas vasculares com maior valor para a conservação. Por cá, ocorre da Beira Litoral ao Minho, mas a sua presença é pontual, palavra fiel ao indicar, por exemplo, os cerca de 12 metros quadrados com uns trinta exemplares desta planta no cordão dunar do Mindelo, um talhão destacado da Paisagem Protegida do Litoral de Vila do Conde. Em Espanha, são oito os registos no sistema Anthos, todos no litoral norte.

Esta planta foi primeiro descrita por Avelar Brotero (Fl. Lusit. 1: 276, 1804), que lhe chamou Gentiana chloodes. A inclusão dela no género Centaurium deve-se a Gonçalo Sampaio (Herb. Port.: 106, 1913). Por esta ligação a gente e terra lusas, em alguma bibliografia é referida como centauro menor português.

12/07/2011

Amarelo por um fio

Cicendia filiformis (L.) Delarbre
Tendo-se tornado independente do género Gentiana ainda no século XVIII, o género Cicendia conta hoje apenas com duas espécies: a C. filiformis, ex-Gentiana filiformis L., nativa do sul e oeste europeus, mas que também ocorre nas ilhas de S. Miguel e Terceira; e a C. quadrangularis Griseb., da América do Norte e do Sul, um pouco mais alta e com um cálice conspícuo. São ambas plantas anuais, raramente bienais, delicadas e minúsculas. As flores, em geral solitárias, são longamente pediceladas e têm um cálice tubular em cujo topo se forma uma corola de quatro pétalas amarelas que só abrem em pleno sol.

Os exemplares de Cicendia filiformis, com uns 5 cm de altura, que encontrámos numa encosta encharcada na serra do Açor, pareciam alfinetes de gravata. As folhas basais estreitas, um pouco carnudas, de 2-6 mm de comprimento, mal se distinguiam no meio das outras herbáceas, até porque murcham depressa; as poucas caulinares, opostas e de formato triangular, pela sua pequenez também quase não se viam. Os traços de família que ligam esta planta aos centauros (género Centaurium) são suficentemente vincados para que os ingleses, desconhecendo o C. maritimum, lhe chamem yellow centaury.

Diz-se aqui que o nome Cicendia teria origem em kikenda, usado em algumas regiões italianas para se referirem às gencianáceas; mas tal é improvável pois Antoine Delarbre (1724-1813), que o registou em 1795, era francês. Acredita-se mais na informação veiculada neste Botanical Dictionary: segundo ele, derivaria de Çyçen (ou Cicend), cidade da Albânia; ou de címbalo, em alusão à disposição da corola – a explicação mais plausível.