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21/06/2022

Amarelos de Fuerteventura



A quem procura plantas à beira-mar, de olhar curioso e máquina fotográfica pronta, exige-se uma desatenção instruída. É que os veraneantes, em geral em trajes sumários, podem presumir que o fotógrafo está à procura de imagens suas, talvez para divulgar em poucos minutos nas redes sociais — e isso seria uma desgraça. Curiosamente, muitos deles ter-se-ão fotografado mal chegaram à praia, antes e depois do primeiro banho de mar, sem receio de expor a sua privacidade a olhares alheios. Mas fizeram-no em pose, como heróis felizardos, não como gente real que sacode a areia dos pés e a quem o vento desajeita o cabelo. Em fotos muito antigas, também adultos e crianças surgem com postura afectada, em formação quase militar. Mas não se vê um sorriso, tal é o receio de que a foto, incapaz de mentir, revele algum segredo. Uns chegaram ao futuro com ar ponderado e maduro, e a foto é um recado aos descendentes; os outros só querem fazer inveja aos demais. O improviso, que se diria garantia do que é genuíno em fotografia, parece ter perdido de vez a pertinência.



Na praia de La Pared, na costa oeste de Fuerteventura, o fotógrafo pode esquecer-se destes melindres, e até das pessoas. Depois de estacionarmos o carro junto às poucas casas, bem afastadas do mar, que servem pescadores e turistas, seguimos pela praia extensa de areia fina, com dunas tão altas e barrigudas que não nos cruzamos com ninguém em quilómetros de passeio. Pudemos, assim, apreciar calmamente os detalhes desta asterácea endémica de Fuerteventura e do sudoeste de Marrocos.

Pulicaria burchardii Hutch.


As plantas do género Pulicaria têm inflorescências muito elegantes: ao contrário das margaridas mais comuns, as lígulas (falsas pétalas) são fininhas e de cor amarelo-pálido; no centro do capítulo, onde se reúnem os florículos, o tom que domina é de um amarelo mais intenso e fácil de detectar. Como aqui lhe contámos, o arquipélago das Canárias foi bafejado com um endemismo excluivo no género Pulicaria, que só ocorre em Fuerteventura e Lanzarote. Difere bastante da P. buchardii, que é quase um arbusto, com folhas lineares e lanuginosas, de um tom prateado que não é raro em plantas à beira-mar. Forma coxins compactos, cujos talos laterais se enterram firmemente na areia — para ajudar à pose.

08/03/2022

Balancé das areias

Traganum moquinii Webb ex Moq.


Fuerteventura, a mais árida e mais africana das ilhas Canárias, parece ter sido concebida para estes tempos em que, para a maior parte da população ocidental, férias e lazer são sinónimos de praia. Até terá sido algo sobredimensionada, pois a ilha tem 100 km de uma ponta a outra e a costa é quase um areal ininterrupto. Nem no pico do Verão será preciso procurar muito para encontrar uma praia longe das multidões. Em alguns pontos as dunas penetram vários quilómetros pelo interior da ilha, mas talvez uma praia de onde o mar não se aviste seja insatisfatória mesmo para os veraneantes que só queiram tomar banhos de sol. Já não é praia, mas sim deserto — uma miniatura do Sara onde a solidão, em vez de convidar ao apaziguamento, nos enche de inquietude.

A vegetação das dunas, em Fuerteventura, não é uniforme, dependendo do grau de proximidade do mar e da maior ou menor consolidação do substrato arenoso. Há plantas que gostam de ser regularmente salpicadas pelas ondas e banhadas pelas marés (por exemplo, a Suaeda vera), outras que se mantêm distantes da linha de costa mas preferem as dunas fixas (como a Salsola vermiculata), e finalmente aquelas que vivem em dunas instáveis — às quais, na nossa latitude, chamaríamos dunas primárias, mas que em Fuerteventura podem estar a uma distância considerável do mar. Um exemplo desta última classe é o Traganum moquinii, que nas Canárias é conhecido como balancón, quem sabe se por viver sobre chão tão oscilante. Por sinal, as três plantas arbustivas que demos como exemplo pertencem todas à família Amaranthaceae (e integravam antes a família Chenopodiaceae), que é largamente dominante entre as comunidades vegetais de baixa altitude em Fuerteventura. As duas primeiras, porém, ocorrem também na Europa (e, em particular, em Portugal, sobretudo na metade sul), enquanto que o Traganum moquinii apenas está presente nas Canárias, em Cabo Verde e no litoral de Marrocos.

Arbusto rasteiro e muito ramificado, embora capaz, com a idade, de atingir 2 ou 3 metros de altura, o Traganum moquinii tem uma silhueta muito reconhecível quando se avista ao longe na crista das dunas. Mais ao perto, distingue-se pelas folhas suculentas, curtas, com ápice arredondado, dispostas em fascículos densos, e pelas flores diminutas, de cinco pétalas amarelas, que surgem aninhadas nas axilas das folhas.

01/08/2020

Linária sozinha


Linaria intricata Coincy
Na berma de um estradão florestal a norte de Bragança, num ponto onde o pinhal vai dando lugar às estevas em formação cerrada, uma tímida linária fazia abrir, no final de Junho, as primeiras flores da temporada. A canícula estival não tardaria a instalar-se e a temporada adivinhava-se curta. E ademais solitária, pois nenhuma outra planta da mesma espécie se descortinava nas redondezas. Exactamente um ano mais tarde, nem um exemplar foi possível encontrar nesse local. Contudo, a 1 ou 2 km de distância, em clareira de uma mata de carvalho-negral, por entre rosetas de Rhaponticum exaltatum que nunca pensaram em dar flor, novo exemplar solitário da mesma linária dedicava-se à difícil tarefa de existir.

Linaria intricata é como se chama esta diminuta e esquiva planta anual, endémica da Península Ibérica, baptizada em 1900 pelo botânico francês Auguste-Henri de Coincy (1837-1903) a partir de exemplares colhidos na província de Córdova. A descrição original, que pode ser aqui consultada, parece ajustar-se bem ao exemplar das fotos, em particular no que diz respeito à glandulosidade dos cálices e das margens das folhas. Ao contrário do que sugere o epíteto intricata, o grau de ramificação é escasso, talvez por se tratar de um exemplar ainda jovem. Onde a discrepância é notória é na cor das flores, que Coincy diz serem amarelas mas no exemplar fotografado se apresentam de um lilás pálido. Contudo, a revisão do género Linaria na Flora Iberica, surgida em 2009, admite essas variações de cor, que aliás não são invulgares no género. A linária das nossas praias nortenhas (Linaria polygalifolia subsp. polygalifolia) dá flores amarelas, mas a mesma planta (ou aquilo que os entendidos afirmam ser a mesma planta) dá flores rosadas ou arroxeadas em alguns pontos da costa galega (por exemplo, em Corrubedo — veja-se a foto em baixo).

Em Portugal a Linaria intricata já foi conhecida como Linaria coutinhoi. O autor da segunda combinação apontou subtis diferenças entre as duas espécies que os autores da Flora Iberica, ao subordinarem a segunda à primeira, optaram por desvalorizar. O exemplar em que se baseou a descrição da L. coutinhoi foi colhido por Gonçalo Sampaio nas areias do rio Douro, perto do Porto. Seja qual for o nome usado, há muitas décadas que a planta não é avistada no vale do Douro em território nacional. É mais uma das muitas vítimas das barragens que ao longo da segunda metade do século XX foram seccionando o rio, transformando-o numa sucessão de pachorrentas albufeiras. Nos últimos anos, a L. coutinhoi (ou L. intricata) tem sido avistada, esporadicamente, em certos pontos da margem portuguesa do Douro internacional, em substrato arenoso ou gravilhento, em zonas muito declivosas. E outras pessoas além de nós a têm encontrado nos arredores de Bragança, em zonas incluídas no Parque Natural de Montesinho. Em todas essas ocasiões, só muito raramente o número de exemplares detectados ultrapassa a dezena. As excepções estão ligadas à ocorrência de incêndios: em áreas recém-ardidas, a planta pode formar "autênticas pradarias", como testemunhou Anabela Amado, que a observou em 2007 nessas felizes condições. Quando a vegetação de novo se adensa, a planta tende a desaparecer gradualmente.

Dependendo presumivelmente dos incêndios para sobreviver, talvez a Linaria intricata não ache graça à ideia impossível, mas que vai fazendo escola, de um Portugal sem fogos. No âmbito da Lista Vermelha da Flora de Portugal, a espécie foi estudada e prospectada; mas o carácter fugaz e imprevisível das suas populações, a grande oscilação do número de exemplares de ano para ano e um fraco conhecimento da sua ecologia fizeram com que os dados disponíveis fossem tidos como insuficientes para a atribuição de qualquer estatuto de ameaça.


Linaria polygalifolia Hoffmanns. & Link subsp. polygalifolia — nas dunas de Corrubedo, Galiza

22/05/2019

Histórias da Lista Vermelha: Phleum arenarium



Phleum arenarium L.


Para a grande maioria dos portugueses, "férias" e "praia" são perfeitos sinónimos: de Maio a Outubro, enquanto a chuva e o frio se mantiverem educadamente ausentes, ir à praia é, para o grosso da população, o único modo de ocupar os períodos de lazer. Que o país inteiro se estenda na praia ao sol não é bom para as plantas dunares, mas a instalação de passadiços de acesso às praias um pouco por todo o litoral contribuiu para minimizar os estragos e, em certas casos, até potenciou uma notável recuperação da vegetação das dunas. Contudo, os tempos já foram melhores, e as ameaças sobre as plantas dunares voltam a avolumar-se. A erosão costeira tem feito recuar o cordão dunar, às vezes de forma dramática, em muitos pontos do litoral norte. E algumas câmaras municipais deixaram de se preocupar com a gestão desses habitats, seja para poupar no orçamento, seja porque a conservação da natureza é moda que já passou e poucos votos rende. Entre as prevaricadoras avulta a Câmara Municipal de Gaia (CMG), que, sob a égide do actual presidente Eduardo Vítor Rodrigues (primeiramente eleito em 2013), deixou de controlar o chorão (Carpobrotus edulis) e outras plantas infestantes nos 15 km de dunas do concelho, mantendo embora de pé os cartazes garantindo que esse controlo é feito. Depois de dez ou mais anos em que nos habituámos a ver essas dunas recuperar gradualmente a sua biodiversidade, eis que regressámos à idade das trevas em que tais preocupações são um luxo desnecessário.

A sorte da gramínea dunar que hoje apresentamos, de seu nome Phleum arenarium, não depende, felizmente para ela, do empenho do presidente da CMG, ainda que não se possa dizer o mesmo de outras plantas constantes da Lista Vermelha da Flora de Portugal (um exemplo é o Centaurium chloodes, classificado como "Em Perigo", desaparecido há poucos anos do litoral gaiense). Já em tempos recuados a presença do Phleum arenarium no nosso país parecia restringir-se à faixa litoral a norte do Douro. Na Flora Portuguesa de Gonçalo Sampaio, publicada postumamente em 1946, diz-se que a área de distribuição da planta se estendia até ao Alentejo, mas nenhum registo de herbário corrobora tal informação. Actualmente só se sabe dela em três ou quatro pontos nos concelhos de Vila do Conde, Esposende e Viana do Castelo. As dunas entre a Amorosa e o Cabedelo, a sul do Lima, marcam o limite norte da distibuição portuguesa da planta e albergam o seu maior contingente populacional, atingindo a ordem dos milhares. Mas a planta é pequena, uma simples espiga com 10 a 15 cm de altura; e, tratando-se de uma planta anual de surgimento efémero (floresce entre Maio e Junho, depois seca e desaparece), os seus números podem oscilar muito de ano para ano.

O Phleum arenarium (que, segundo a Lista Vermelha, está "Em Perigo" no nosso país) vive na transição entre a duna primária e a duna cinzenta, em zonas ainda não completamente estabilizadas. Não tolera a instabilidade da frente dunar, mas é pouco competitivo e tem dificuldade em colonizar dunas consolidadas com bom coberto vegetal. O refúgio que encontrou entre a Amorosa e a foz do Lima responde de forma exacta aos seus requisitos, e os passadiços que o põem a salvo do pisoteio também lhe proporcionam um importante habitat secundário. Noutros pontos do litoral norte, o habitat da planta terá sido obliterado pelo estreitamento do cordão dunar, pela caótica rede de carreiros de acesso às praias, e pela expansão de plantas invasoras como o chorão e a acácia-de-espigas.

O Phleum arenarium está amplamente distribuído pela costa atlântica europeia, mas desce também ao Mediterrâneo e, atravessando-o, espeta uma modesta lança em África, não se aventurando para lá de Marrocos. Não é o único penacho-das-areias em miniatura que temos na nossa flora, mas é talvez o mais raro. Se o leitor lograr encontrá-lo, parabéns. Mas, antes de festejar, tire algumas fotos e certifique-se de que aquilo que está a ver não é, por exemplo, o Lagurus ovatus, que tem um aspecto bastante mais fofo e sedoso e é comum em dunas de norte a sul do país.

17/05/2019

Exílio em Lanzarote



A quantidade de termos escolhidos pelos taxonomistas para nomear plantas pequenas, ou de porte rasteiro, e a frequência com que são utilizados revelam que esses cientistas se preocupam com a diversidade do léxico (o que se agradece pois torna a leitura das Floras menos entediante) e dão especial importância a esse pormenor morfológico. Realmente a apreciação do mundo parece mais simples se valorizarmos o contraste, e o dicionário gasta boa parte do seu esforço com antónimos. Ao que é mediano, dito normal, dedicamos em geral apenas a atenção bastante para entender que preenche o entremeio que separa o muito do pouco.

Os botânicos reservam nomes delicados para as plantas pequenas (ou menores do que outras do mesmo género), ou que vivem rentes ao chão, ou ainda que são pouco apelativas: humilis, procumbens, terrestris, parvus, minutus, nanus, tristis são alguns dos mais característicos. A planta que hoje mostramos mal se ergue do solo (e já se chamou Minuartia procumbens) e rasteja espalhando-se nas areias onde habita (e houve quem a designasse Alsine extensa), mas o epíteto que está em vigor é geniculata. Refere-se a joelhos, e alude às dobras dos talos que permitem à planta espraiar-se em muitas direcções, que fariam lembrar joelhos flectidos.



Minuartia geniculata (Poir.) Thell. [= Rhodalsine geniculata (Poir.) F. N. Williams]



A Minuartia geniculata é uma herbácea perene de folhas estreitas e opostas, talos ramificados e glandulosos, e flores rosadas com pétalas em geral menores do que as sépalas, que são debruadas por uma membrana branca e fina. Comum em Gibraltar e noutros pontos da costa mediterrânica, onde os invernos não costumam ser demasiado frios, ocorre também nas Canárias, conhecendo-se populações nas ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Gran Canaria. Os exemplares que vimos, floridos em Dezembro, estavam na Playa de las Conchas, da ilha La Graciosa, a norte de Lanzarote.

Esta espécie também consta da lista da flora de Portugal (e da Flora Ibérica), com o nome Rhodalsine geniculata, mas os últimos avistamentos por cá foram em 1949 e 1951 em Sines, por Abílio Fernandes, e em 1968 na praia de São Torpes, também no concelho de Sines. As prospecções infrutíferas feitas no âmbito da elaboração da Lista Vermelha da Flora de Portugal sugerem que ela está provavelmente extinta em Portugal.

09/05/2017

Praias de pouco andar



Cyperus capitatus Vand.


O regresso da chuva — amaldiçoada por aqueles que desejam que ela só caia de noite ou, se tiver mesmo de cair a horas menos amigáveis, apenas onde faça falta (campos, albufeiras) — obriga os portugueses a interromper temporariamente os ensaios para as férias de Verão. Com estas tépidas Primaveras a que nos vamos afeiçoando, a época balnear ocupa no mínimo metade do ano, e os areais que costumavam encher-se apenas em Agosto acolhem agora banhistas de Abril a Setembro. Talvez se deva lamentar o fraco empenho dos portugueses em diversificar as suas (in)actividades de lazer, mas quem mais sofre com o assalto contínuo às praias são as plantas dunares. Embora o problema seja atenuado pela instalação de passadiços nas praias mais concorridas, há plantas que se fizeram raras e poucas oportunidades terão de se reinstalar nos lugares de onde foram (involuntariamente) extirpadas.

A junça-da-praia (Cyperus capitatus), que é nativa de toda a região mediterrânica e, em Portugal, deveria aparecer do Minho ao Algarve, fez-se entre nós bastante esporádica. A crer no portal Flora-On, praticamente desapareceu a norte do Douro. As praias do litoral centro onde ainda persistem bons contingentes da espécie são aquelas que, pelos maus acessos e pela ausência de rede de telemóvel, são evitadas pelos veraneantes comuns. Planta de proporções modestas, com hastes que não ultrapassam os 40 cm, a junça-da-praia destaca-se da família a que pertence, em grande parte formada por espécies pouco vistosas, pela atraente folhagem glauca, semelhante à do narciso-das-areias (Pancratium maritimum). Tal como outras espécies que vivem em areias móveis, é dotada de um rizoma comprido, às vezes com vários metros de comprimento, podendo uma mesma planta lançar hastes bem afastadas umas das outras.

O nome junça pode ser dado a qualquer uma das dez espécies de Cyperus na flora portuguesa, das quais nove são tidas como autóctones e uma (Cyperus eragrostis) é exótica e assaz invasora. As três brácteas muito compridas onde se aninha a inflorescência são um distintivo traço comum a todas elas. Com a notória excepção da junça-da-praia, são plantas de terrenos húmidos, amiúde encharcados. A mais famosa espécie do género, que não pertence à flora portuguesa mas é cultivada em jardins aquáticos, é o Cyperus papyrus, originária de África e usada no antigo Egipto para produzir o papiro, suporte de escrita que foi um dos primeiros antepassados do papel.

03/06/2016

Flora endémica do Porto Santo: Lotus loweanus



Lotus loweanus Webb & Berthel.



Todas as fontes consultadas — e que foram, por ordem cronológica inversa, Flora Endémica da Madeira de Roberto Jardim & David Francisco (2000), Flora of Madeira de J. R. Press & M. J. Short (1994), e A Manual Flora of Madeira de Richard Thomas Lowe (1868) — informam que este endemismo porto-santense é comum, um pouco por toda a ilha, em dunas, falésias costeiras e encostas pedregosas até uns 150 m de altitude. Os 130 anos que medeiam entre o mais antigo e o mais recente desses livros pareciam ser garantia de que o Lotus loweanus ultrapassara quase incólume o mais destrutivo dos séculos. No entanto, só o encontrámos na última manhã da nossa estadia, e para isso tivemos que percorrer, no sudoeste da ilha, os 2 Km de areal entre a Ponta da Calheta e o Cabeço da Ponta. Talvez a dificuldade se deva à nossa inépcia, mas há a possibilidade de o Lotus loweanus estar a ser vítima do surto de construções turísticas ao longo da praia e, sem que ninguém dê oficialmente por isso, em lugar de ser comum se vá tornando raro e ameaçado. E não é tranquilizador que nesta página se diga que ele apenas existe nos ilhéus do Porto Santo: se esperarmos uns anos e nada se fizer, talvez essa informação falsa se converta em verdadeira.

Há uma linhagem de Lotus macaronésios em que este do Porto Santo (popularmente chamado de cabeleira-de-coquinho) claramente se insere, e de que também faz parte o açoriano Lotus azoricus. Três outros representantes da mesma estirpe, que a seu tempo aqui mostraremos, vivem na ilha, seja na costa (caso de um deles) ou nos picos (os outros dois). São plantas perenes, acetinadas, rasteiras, formando vastos tapetes, com flores geralmente solitárias e de cor escura. O Lotus loweanus singulariza-se por ter uma base lenhosa bem desenvolvida, com as plantas mais idosas a assemelharem-se a arbustos liliputianos (comprove na 1.ª foto). As folhas, como é típico nos Lotus, são formadas por cinco folíolos que, neste caso, são estreitos e têm um vinco longitudinal bem evidente. As flores, não sendo embora das mais pequenas do género (têm de 1 a 1,5 cm de diâmetro), são pouco conspícuas por causa da sua cor escura e por estarem quase sufocadas pelo cálice. Apesar da modéstia da floração, que apenas decorre entre Março e Junho, esta cabeleira-do-coquinho, como testemunham as fotos acima, é muito decorativa graças à sua arquitectura geral e à folhagem glauca com reflexos prateados.


Ponta da Calheta, ilha do Porto Santo

26/05/2015

Cegonha na praia


Erodium cicutarium (L.) L'Hér. subsp. bipinnatum (Cav.) Tourlet


Depois de termos encontrado os bicos-de-cegonha (ou, mais correctamente, bicos-de-garça) em quintais e jardins, ou em espaços que foram essas coisas noutras épocas, o leitor já a sonhar com férias de Verão ficará talvez contente em saber que também na praia se encontram dessas plantas. Enfim, não exactamente as mesmas plantas, mas uma versão delas adaptada às difíceis condições de vida nas dunas. Tão difíceis, aliás, que quando apertam os calores de Agosto e se abrem os guarda-sóis dos veraneantes já este Erodium cicutarium, como planta anual que é, desapareceu de vista, tendo entretanto assegurado descendência pela abundante produção de sementes.

A forma dunar do E. circutarium é uma planta rasteira, glandulosa, com pétalas arredondadas e quase brancas. Se nos afastarmos da costa podemos ver, tanto em calcários como em lugares xistosos ou graníticos, diversas formas da mesma espécie, mas em geral mais altas, com pétalas cor-de-rosa alongadas e assimétricas, às vezes maculadas na base. É provável que o nome Erodium cicutarium seja apenas uma maneira preguiçosa de arrumar um agregado de espécies afins que não há pachorra para deslindar. Essa suspeita é reforçada pela existência de grandes variações genéticas dentro da espécie: há plantas diplóides (com 20 cromossomas), outras tetraplóides (40 cromossomas) e ainda outras hexaplóides (60); para agravar a confusão, também se encontram plantas com números cromossómicos estranhos como 36, 42, 48 e 54. Talvez o conceito tradicional de espécie não seja adequado para lidar com um caso destes, mas parece-nos pouco satisfatória a solução, a que os botânicos chegaram recentemente, de decretar que as diversas subespécies do E. cicutarium (incluindo a subsp. bipinnatum) não têm valor taxonómico. Mesmo que estejam ligados por formas intermédias, os extremos do intervalo de variação são claramente distinguíveis. Esta moda de amalgamar coisas díspares sob um único nome pode tornar a taxonomia botânica mais simples, mas não a torna mais útil nem mais interessante.

Uma ou várias versões do E. cicutarium (espécie que, no seu sentido lato, é originária da Europa, Ásia e norte de África) atravessaram o Atlântico e, cumprindo de modo fulgurante o sonho americano, prosperaram e multiplicaram-se no país de acolhimento a ponto de merecerem o estatuto de ervas daninhas impossíveis de erradicar. A ideia de que «se não podes vencê-los, deves comê-los» não será remédio universal para semelhantes casos de infestação; mas, como se ensina nesta página, é útil para lidar com os bicos-de-garça. E ficamos a saber que o E. moschatum, embora mais amargo do que o E. cicutarium, também é comestível. A cautela a ter é que estas plantas, aconselhadas para saladas e temperos, são mais tenras e saborosas quando ainda não floriram, mas nessa fase podem confundir-se com certas umbelíferas mortalmente venenosas.

09/05/2015

Barril de flores


Euphorbia terracina L.


Três meses decorridos sobre a nossa viagem ao Algarve, e folheado o álbum de fotos até à última página, está na hora de nos despedirmos. A última planta da série algarvia (nada inferior às suas antecessoras, convém ressalvar) empurra-nos já para outras latitudes. Anda longe de ser exclusiva das praias do sul, embora nos últimos anos pouco tenha sido vista a norte do Tejo. Dada a profusão de eufórbias que já por aqui desfilaram, não será ofensa dizer que esta de média dimensão (uns 40 cm de altura, por vezes bastante mais) não é das mais distintivas, apresentado vincadas semelhanças com a E. serrata e a E. segetalis. Da primeira distingue-se pela forma das folhas e pelos apêndices lineares dos nectários; da segunda pelo aspecto geral prostrado e muito ramificado, pelo serrilhado das folhas e das brácteas, e pela textura lisa das cápsulas (as da E. segetalis são rugosas). Em Portugal, a Euphorbia terracina ocorre (ou ocorria) do Minho ao Algarve em dunas e pinhais costeiros, mas noutros pontos da sua distribuição circum-mediterrânica afasta-se até 100 Km da costa. Vimo-la em maior profusão na ilha de Tavira, tanto na duna secundária como à sombra das casuarinas que ladeiam a miniatural linha férrea do Barril. Exibia uma floração ainda incipiente, e com a época mais adiantada teria sido possível apreciar melhor a arquitectura dicotómica da sua inflorescência.

É este lamento recorrente de termos chegado antes de inaugurada a festa das flores que, quem sabe, nos fará regressar ao Algarve em época mais propícia, porém já não em 2015 nem talvez a tempo de reportar no blogue o que por lá descobrirmos. Houve dois ou três mistérios botânicos que ficaram por desvendar, e como não somos egoístas damos ao leitor oportunidade de se debruçar sobre um deles. No cabo de São Vicente, nos interstícios das pedras calcárias que forram o chão a poucos metros das arribas, vimos uma Silene algo semelhante à vulgar S. littorea das dunas litorais. No entanto, e apesar de não vislumbrarmos outra candidata plausível entre as quarenta espécies do género descritas para Portugal, as diferenças na folhagem, no hábito e até no recorte das pétalas sugerem que esta silene vicentina não é a Silene littorea. Eis as fotos para o leitor entendido dizer de sua justiça.


21/04/2015

Tomilho das areias


Thymus carnosus Boiss.


O suiço Pierre Edmond Boissier (1810-1885) é dos autores botânicos que mais assiduamente nos visita, embora o faça discretamente, usando a abreviatura Boiss. em vez do nome completo. Há duas semanas, porém, ao falarmos desta linária miniatural, nomeámo-lo por extenso. Agora que repetimos a dose convém recordar aos distraídos que o icónico lírio-do-Gerês recebeu o nome de Iris boissieri em homenagem a Edmond Boissier.

Pelo que pudemos respigar em livros e páginas da Internet, Boissier não parece ter alguma vez assumido qualquer cargo oficial ou académico. A fortuna familiar permitiu-lhe dedicar a vida às expedições botânicas e à escrita e edição dos livros em que descrevia as plantas descobertas por si e pelos seus colaboradores. Com uma vincada predilecção pelo Mediterrâneo e pelo sul da Europa, grande parte das 6000 espécies que lhe são creditadas foram colhidas em Espanha ou em Portugal. Desse grupo faz parte o tomilho de hoje, baptizado no tomo II do seu Voyage botanique dans le midi de l'Espagne pendant l'anné 1837. Boissier sublinha que este Thymus carnosus, já anteriormente assinalado nas praias de Setúbal mas atribuído então a uma outra espécie, se singulariza, entre outras coisas, pela consistência carnuda das suas folhas.

Habitante de dunas e de pinhais litorais, este pequeno arbusto, que exibe hastes erectas de não mais que 40 cm de altura e folhas com margens muito enroladas, ocorre apenas na Península Ibérica, e só a oeste do estreito de Gibraltar. A presença na província de Huelva desqualifica-o, por escassa margem, como endemismo lusitano, mas é na costa portuguesa desde a Arrábida até Vila Real de Santo António que se encontra o grosso das suas populações. Fazendo parte da pequena lista de plantas legalmente protegidas em Portugal, a sua inclusão nos anexos da Directivas Habitats é plenamente justificada, embora raramente lhe assegure a protecção que merece. A sua (cada vez mais esporádica) presença nas praias do Algarve nunca fez refrear a construção de hotéis ou de aldeamentos turísticos, nem motivou o impedimento de acesso dos veraneantes a algum areal mais vulnerável.

Vimos o tomilho-carnudo na ilha de Tavira, perto da praia do Barril, e também no Vale do Garrão, num dos fragmentos de pinhal que os espampanantes bairros de vivendas com palmeiras ainda não engoliram. Era aí que um pequeno arbusto, enchendo-se de brios por saber que morava num dos metros quadrados de areia mais caros do país, fazia desabrochar, adiantando-se ao calendário, as duas ou três primeiras flores da temporada.


Vale do Garrão