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30/08/2024

São Jorge das fajãs

Estamos algures em São Jorge, num dia quente de Agosto, a olhar uma fajã bem lá no fundo. A descida nem se afigura complicada, mas cada passo adicional pelo trilho abaixo seria cobrado com altíssimos juros na subida. Os que fazem o caminho todo é porque tencionam pelo menos pernoitar. Espera-os um quintal para amanhar e levam consigo o suficiente para ficarem dois ou três dias. Vistas a esta distância as casas parecem de brinquedo, e de perto também não são para levar muito a sério: são no máximo compostas por duas divisões e não é certo que disponham de água canalizada, saneamento ou electricidade.

Há fajãs mais acessíveis, servidas por ziguezagueantes estradas asfaltadas ou de terra batida transitáveis por veículos motorizados. Contudo, as fajãs a que só se chega a pé por caminhos esconsos são um estímulo para a imaginação e um atavismo desafiante neste século de turismo de massas. As vidas intermitentes que lá decorrem só podem ser vagarosas, formatadas pela lonjura e pela privação ainda que voluntária. Para melhor as respeitarmos, preferimos efabulá-las em vez de tentar conhecê-las de perto.

São Jorge: caminho para a Fajã do Mero
À Fajã do Mero, quase a meio da costa norte da ilha, é possível hoje chegar por estradão: desce-se do Norte Pequeno à fajã da Penedia e depois continua-se para oeste por uma via que atravessa várias outras fajãs, uma delas com uma pequena capela. Na Fajã do Mero propriamente dita há três ou quatro casas rodeadas por dois hectares (se tanto) de terrenos para cultivo dispostos em socalcos. Quem sabe se tão exígua área de produção não sustentou, outrora, famílias inteiras? Em tempos não motorizados o acesso era outro, por trilhos íngremes talhados na encosta densamente florestada, ainda hoje abertos à fruição de turistas como nós. O temor da subida cedo nos fez desistir da descida, mas pudemos perceber, pelas obras em curso, como o progresso, neste caso sob a forma da electrificação, se vai lentamente acercando da fajã. Quem já se instalou há muito, e de forma avassaladora, foram o incenso (Pittosporum undulatum) e muitas outras invasoras vegetais temíveis, e é por isso que a vista prodigiosa nos deixa um certo amargo de boca, parcialmente atenuado pelos encontros com o Asplenium hemionitis e com a endémica Carex leviosa (que, em São Jorge, vimos só neste local).

Fajã do Nortezinho (ao fundo) com Erica azorica em primeiro plano
A Fajã do Nortezinho fica quase no extremo oriental de São Jorge, também na costa norte. É uma fajã elevada, quase cem metros acima do nível do mar, mas o único modo de lá chegarmos, por um caminho largo e sem obstáculos, é a pé, com o desnível do percurso excedendo os 450 metros. Na fajã só existe uma casa, que, a julgar pelas imagens de satélite, terá sido construída há uns quinze anos. Da próxima vez que formos a São Jorge reservaremos tempo e fôlego para não nos quedarmos, como desta vez, a meio da descida. Aquela casa esconde um mistério que, na verdade, pouco nos interessa desvendar. Atraem-nos mais as grandes urzes recortadas contra o azul do mar, acompanhadas por paus-brancos, folhados e faias, e por um elenco de herbáceas (como o Ammi trifoliatum e a Scabiosa nitens) que só existem nos Açores e que, para nós, já são parte da família.

04/09/2023

Urze de Inverno



Longe de serem despreocupadas, as férias de Verão são a época do ano em que, suspensos os afazeres profissionais, nos deixamos absorver pelo desconcerto do mundo. É o calor sufocante que nem à sombra nos dá tréguas, são os incêndios descontrolados dentro ou fora de portas (estes últimos com ampla cobertura mediática caso os incêndios domésticos não preencham adequadamente a quota de pânico reservada ao tema), são a inflação e os vários oportunismos à conta dela que tornam proibitivo frequentar hotéis e restaurantes, são as greves que se preparam para a rentrée e as que já vão fazendo mossa nos serviços públicos a meio-gás. Sobressaltados por um fluxo noticioso apocalíptico, com os níveis de ansiedade a subir perigosamente, é com alívio que regressamos à rotina do emprego e às comezinhas tarefas do dia-a-dia.

É inevitável que a dúvida se insinue: será Agosto um mês adequado para férias? Devemos todos fazer férias na mesma altura do ano? Quem goste do calor e dos escaldões que continue a reservar Agosto para a sua pausa laboral, mas cada um deveria poder gozar as férias prolongadas a que tem direito na estação do ano que mais lhe agradasse. Assim, sem nada (para lá do calor) que distinguisse Agosto dos demais meses, a comunicação social não teria pretexto para entrar no registo silly season — ou panic season, como deveríamos chamar-lhe.

Para quem tem a botânica como passatempo, é sabido que, no hemisfério norte e no clima mediterrânico que em grande parte é o nosso, Agosto é pouco compensador para passeios de campo. Vivemos num período de suspensão: depois da explosão primaveril, as plantas retraem-se com o calor e as de floração outonal aguardam as chuvas de Setembro. Nas terras frescas a maior altitude, em que a humidade no solo persiste todo o ano, é altura de observar gencianas, serrátulas e poucas coisas mais. De resto, vale a pena, em alguns rios ou lagos, espreitar as plantas que aproveitam a descida das águas para florir. Tudo somado, não é coisa que nos ocupe um mês inteiro de férias — daí a nossa pulsão de fugir para os Açores, onde o clima húmido esbate diferenças entre estações do ano e Agosto é dos meses mais primaveris.

Erica multiflora L.


E que tal férias de Inverno para observações botânicas? A lista de plantas que florescem em Dezembro no nosso território não é vazia (ver aqui), e — como mostram os casos do medronheiro e da urze-lusitana — não se retringe à metade sul do país, embora as plantas com essa distribuição estejam em maioria. Também de floração hibernal e também presente no nosso país é a urze-dos-brejos. Para completar um trio de urzes que gostam de florir no Inverno, só temos que ir a Espanha e travar conhecimento com a Erica multiflora (ilustrada acima). É um arbusto que atinge mais de 2 metros de altura e vive na bacia mediterrânica, em clareiras de bosques ou matos secos, sobre substratos calcários. Em Maiorca, onde o fotografámos, é frequente em pinhais de Pinus halepensis a baixa altitude; na Península Ibérica, aparece sobretudo na faixa mais oriental, entre Alicante e a fronteira com França. As flores com estames proeminentes, rematados por anteras escuras, acentuam a semelhança desta urze com a urze-dos-brejos (Erica erigena). No entanto, e como o próprio nome comum denuncia, esta última tem uma ecologia muito diferente, habitando lugares húmidos ou encharcados próximos do litoral. E entre as duas espécies há ainda visíveis diferenças no formato das flores e no comprimento dos pedúnculos: a E. multiflora tem-nos muito mais compridos.

Assim, e ainda que com algum enviesamento sulista, o Inverno acaba por ser botanicamente tão compensador como o Verão. E, sem o calor nem as correlativas ameaças de fim do mundo, umas férias em Dezembro são muito mais tranquilas do que em Agosto.

23/11/2020

Medronheiro canarino

A maioria das plantas da nossa flora inicia agora um merecido descanso, no que são acompanhadas por várias espécies da fauna. Muitas árvores ficam carecas de folhas, com o tronco envelhecido de musgos e um ar desolado, mas sabemos que adormecem para rejuvenescer. Há, porém, excepções. A floração do medronheiro (Arbutus unedo), arbusto de folhagem perene, está agora a começar: as flores branco-rosadas e perfumadas, agrupadas em cachos, dividem o espaço na copa com frutos da época anterior, corados de frio mas ajudando a atrair os poucos polinizadores que ainda por aí andam nesta época do ano. Os medronhos, com textura e cor de morangos maduros mas quase sem sabor, ficam bem em compotas, bolos, rebuçados e aguardente. E esse uso tem beneficiado a planta, por interessar a fruticultores e destilarias a expansão da sua área de distribuição, que outrora se restringiu à região mediterrânica e Europa ocidental.

Arbutus canariensis Veill. ex Duhamel


Uma vez que uma parte significativa da flora das Canárias descende da flora mediterrânica, não foi surpresa descobrir que há uma espécie de medronheiro endémica das ilhas dos grupos central e oriental deste arquipélago (Tenerife, La Gomera, Grã-Canária, El Hierro e La Palma). Tal como o parente continental, o Arbutus canariensis tem um tronco avermelhado, que pode atingir os 7 metros de altura e se descasca com a idade. As folhas são maiores e mais escuras do que as do medronheiro continental, mas têm também aspecto coriáceo e margens serradas. As flores exibem um leve tom cor-de-rosa e pedicelos com inúmeros pêlos glândulares, detalhe que ajuda a distinguir a espécie canariense do A. unedo.

O A. canariensis está ameaçado pela perda de habitat, sobretudo nas ilhas em que as reservas de água estão mais perto do fim e os fogos de Verão se têm intensificado — regimes extremos de seca e calor a que o medronheiro canariense não parece adaptar-se. Esta espécie aprecia taludes da floresta laurissilva com bastante humidade mas solo enxuto, e onde a concorrência com outros arbustos e árvores é menor. Os registos mais recentes indicam que as populações silvestres em La Palma e La Gomera estão perto da extinção. As fotos são de exemplares do barranco de Valsendero na Grã-Canaria.

24/07/2019

O tempo rasurado

Feto-do-Gerês (Woodwardia radicans) nos jardins do Palácio de Cristal, Porto (Foto: © Daniel Ferreira)

Um antiquário adquiriu por atacado o espólio de um falecido. Entre muita poeira e bricabraque, deparou-se com várias caixas de jóias e adereços femininos. Após rápido exame, atirou ao lixo um colar de ouro que, baço de sujidade, lhe pareceu de latão, e separou com amoroso cuidado, por se lhe afigurarem valiosos, uns brincos de plástico dourado com incrustações de vidro.

Negociante dessa estirpe não mereceria certamente o nome de antiquário. Desacreditado pelos seus pares e pelos seus potenciais clientes, rapidamente se veria obrigado a abandonar uma actividade para a qual não tinha a menor competência.

Os jardins do Palácio de Cristal, no Porto, estão entregues a "jardineiros" que de plantas sabem tanto como esse antiquário sabia de jóias. Move-os uma irreprimível vocação para guardar o pechisbeque e deitar fora o ouro.

A gruta de Camões, rústica estrutura de pedra e betão ao gosto oitocentista de imitação da natureza, dotada de um pequeno lago artificial para recreio dos patos, sombreada por grandes padreiros e castanheiros-da-Índia, está situada no patamar inferior dos jardins, a sul do recinto infantil. Desde há muitos anos (provavelmente desde meados do século passado) que sobre a gruta pendiam as ornamentais folhas do feto-do-Gerês (Woodwardia radicans), que, beneficiando da proximidade da água e da frescura proporcionada pelas árvores, se aclimatou perfeitamente ao lugar, lançando todos os anos abundância de folhas novas. Era um cenário artificial que evocava, de modo notável, as cascatas do Gerês ou dos Açores onde esse feto legalmente protegido em Portugal continental tem o seu habitat.

Nem a beleza do feto, nem a sua óbvia adequação ao local, nem o seu estatuto de espécie protegida: nada pôde salvá-lo da acção ignorante, cega e destruidora dos "jardineiros" do Palácio de Cristal. Na Primavera de 2018, talvez no âmbito de uma renovação de treta cujo ponto alto foi a instalação de uns pindéricos tapetes de relva para disfarçar os estragos causados pelas barracas de feira, todos os exemplares de feto-do-Gerês existentes no Palácio foram cortados e, para garantir que não voltavam, arrancados pela raiz.

A mesma mão bruta que destruiu o ouro deixa em paz o pechisbeque. Plantas invasoras como Acanthus mollis, Tradescantia fluminensis, Ailanthus altissima e Acacia melanoxylon proliferam alegremente em canteiros desmazelados. Nada se planta, nada se cultiva. A única "jardinagem" que ali se pratica, sempre com grande estardalhaço de máquinas, é o corte periódico da vegetação desordenada para que ela não ultrapasse a altura regulamentar.

É por isso moderado o nosso entusiasmo pelas obras de recuperação do Jardim Emílio David, agora em fase de conclusão. O projecto é, com toda a certeza, tecnicamente correcto e historicamente informado, respeitador do histórico jardim e das suas memórias. Mas, sem jardineiros que conheçam e estimem as plantas, que metam as mãos na terra, não haverá jardim digno desse nome, e o Jardim Emílio David recuperado pouco mais será do que uma instalação efémera.



Rhododendron maddenii Hook. f.


A herança de Emílio David não se resume ao desenho, agora escrupulosamente recuperado, dos jardins formais à entrada do Palácio de Cristal. A ele se devem também os dois bosquetes laterais compostos por árvores e arbustos das mais variadas proveniências; e, se parte desse arvoredo é de plantio posterior a 1865 (ano em que os jardins foram inaugurados), é verdade que camélias, rododendros, metrosíderos, ciprestes-de-Lawson e ginkgos denunciam pelo porte uma idade respeitável. Quem por certo lá mora desde o início é o rododendro de flores brancas e tronco avermelhado descascando-se em tiras que se esconde no bosquete do lado nascente. Rodeado que está por árvores de maior envergadura, e florindo apenas entre Maio e Junho, não espanta que este Rhododendron maddenii seja desconhecido até pelos frequentadores mais atentos do jardim.

À data da inauguração dos jardins do Palácio de Cristal, estava no auge entre a elite portuense o entusiasmo pela jardinagem e pelo coleccionismo botânico. O afamado horticultor José Marques Loureiro, estabelecido na Quinta das Virtudes, publicou o seu primeiro catálogo precisamente em 1865. A diversidade das plantas listadas para venda era simplesmente inimaginável: entre inúmeras outras plantas (árvores, arbustos, palmeiras, herbáceas, fetos...) que não cabe aqui nomear, contavam-se mais de 700 variedades de camélias, 75 de rododendros, cerca de 110 azáleas e umas 250 roseiras.

Na pág. 11 do catálogo, e entre sete "espécies novas" de Rhododendron originárias "do Assam e do Butão", aparece o R. jenkinsii, que hoje é tido como sinónimo de R. maddenii. É pois plausível que Marques Loureiro tenha fornecido o exemplar dos jardins do Palácio. Outros rododendros que ainda hoje se mantêm no recinto poderão ter passado pelas suas mãos, entre eles o vistoso Rhododendron arboreum (chamado Rhododendron windsorii no catálogo), que produz grandes cachos de flores cor-de-rosa no início da Primavera.


Polypodium cambricum num muro da Quinta da Macieirinha
A renovação do Jardim Emílio David provocou um dano colateral que pouca gente terá notado; ou, se notou, por certo não considerou importante. É que o solo debaixo dos bosquetes e junto ao gradeamento, onde crescia uma mistura rala de relva, musgos, flores miúdas e fetos, valia como testemunho da passagem dos anos. Ou, se quisermos puxar da erudição, era uma amostra, ainda que em escala diminuta, do trabalho minucioso do tempo, esse grande escultor. Viam-se lá plantas espontâneas que seriam comuns na região quando havia mais espaço para a natureza, mas que no centro da cidade faziam figura de raridades. Eram prova de que, se lhe dermos tempo (um tempo que se mede em décadas), o que é artificial acaba por ser contaminado pelo que é natural. Eis uma lista incompleta dos emissários da natureza que por lá se haviam instalado: morangueiros (Fragaria vesca), violetas silvestres (Viola riviniana), erva-toira-das-heras (Orobanche hederae), fetos variados (Polypodium cambricum, Athyrium filix-femina, Polystichum setiferum), verónicas (Veronica serpyllifolia), e diversos juncos e ciperáceas (Luzula forsteri, Carex divulsa, etc.). Esse solo velho e ricamente infectado pela natureza foi revolvido e obliterado por novas camadas de substrato com os nutrientes na proporção certa para acolher buxos, gilbardeiras e camélias. Nada temos contra esses recém-chegados, mas o tempo foi rasurado, talvez desnecessariamente, e já não estaremos cá para o ver recuperar as décadas perdidas.

03/10/2017

Os ursos chamam-lhe um figo

Esta é época propícia ao fabrico de alguns licores e aguardentes, um expediente para aproveitar frutos demasiado maduros ou que não são suficientemente doces para outro tipo de consumo. Por exemplo, a safra do medronho (Arbutus unedo) não tardará a começar para que as bagas de casca rugosa e cor-de-fogo não se percam desfeitas no chão. O amadurecimento dos frutos, começados a produzir há um ano, decorre em paralelo com a floração do ano corrente, e por isso recolhê-los é tarefa que exige cuidados. Em poucos meses haverá nova aguardente de medronho, feita com mais paciência do que esforço. Na Península Ibérica só ocorre esta espécie de Arbutus, mas outrora em Espanha já houve outras duas: Arbutus alpina L., cujo fruto parece um apetitoso araçá negro, e Arbutus uva-ursi L., com bagas vermelhas muito vistosas e comestíveis, mas igualmente pouco saborosas em cru. Apesar das semelhanças com o medronho, estas duas espécies foram mudadas em 1825 para o género Arctostaphylos, mantendo-se os epítetos específicos. Ambas parecem apreciar solos calcários de montanha, e foi nesse tipo de habitat na Cantábria que vimos os exemplares das fotos.


Arctostaphylos uva-ursi (L.) Spreng.



Os arbustos de A. uva-ursi são de porte rasteiro e têm folhas persistentes, de textura coriácea, que se arranjam em hélice ao longo do caule. As flores nascem na Primavera em cachos de delicadas campainhas com os bordos revirados, um formato típico na família das ericáceas.

As referências sobre nomes botânicos que consultámos indicam que a designação genérica arctostaphylos significa literalmente cacho de uvas (staphyle) de urso (arktos). O epíteto uva-ursi diz exactamente o mesmo, mas em latim. Peculiaridades de um tempo em que o latim (com uns pozinhos de grego) era a língua culta obrigatória para quem queria comunicar em ciência, como é hoje o inglês.

20/02/2016

Vassoura 1.0


Erica scoparia L.


Hoje a tecnologia renova-se todos os dias, e quem não se esforça por acompanhar as novidades transforma-se rapidamente num exilado de outras eras. Porém, nem sempre foi assim. É causa do maior espanto como puderam os nossos antepassados usar durante tantos séculos (ou milénios) o mesmo modelo básico de vassoura: um punhado de galhos secos mas flexíveis atados na ponta de um pau. Custa a crer, mas é verdade: não havia substituições periódicas de vassouras perfeitamente funcionais por modelos recém-lançados que faziam exactamente o mesmo; as vassouras só iam servir de lenha quando ficavam carecas, e as suas substitutas eram cópia exacta do que elas tinham sido quando novas.

Travão a fundo na dissertação, pois alguém nos avisa que as vassouras não evoluíram assim tanto: tirando o ter-se substituído a madeira pelo plástico (e ainda as há com cabo de madeira), a arquitectura geral da vassoura mantém-se inalterável desde sempre e assim há-de ser até à consumação dos séculos. A criatividade humana, seduzida pelo aspirador, deixou de se preocupar com a vassoura. E mesmo o aspirador, ao que nos dizem, dá sinais de estagnação no que toca ao design e ao princípio geral de funcionamento. Tanto assim é que há quem tenha desistido de trocar de aspirador todos os anos.

Desde a vassoura primordial até à vassoura contemporânea passámos da versão 1.0 para a versão 1.1, coisa que, no actual frenesim de inovação tecnológica, não deveria levar mais que uma semana. Mas essa falta de evolução permite-nos alegar que o fabrico artesanal de vassouras, usando justamente a urze-das-vassouras como matéria-prima, é assunto que não perdeu actualidade.

Deixando as instruções de montagem da vassoura para gente mais versada nessa arte, focamo-nos na questão de reconhecer a Erica scoparia. O epíteto scoparia é derivado de scopae, designação latina para vassoura, e outras plantas que partilham o mesmo epíteto (como o Cytisus scoparius) têm igual vocação para varrer. Quanto à urze-das-vassouras, o seu porte avantajado (excede frequentemente os 2 m de altura e pode chegar aos 4 m) e as suas folhas lineares, dispostas em verticilos de 3 ou 4, não permitem distingui-la de imediato de outras urzes de grande tamanho como a Erica arborea (urze-branca) e a E. lusitanica. Pelas flores, que são muito pequenas (até 2,5 mm de diâmetro) e esverdeadas, a distinção é óbvia, mas infelizmente o período de floração é curto, umas poucas semanas entre Abril e Maio. Com as flores já secas ou transformadas em frutos, é útil saber que elas se dispõem de forma muito densa e compacta (ver foto), o que não sucede com outras urzes de porte comparável. E há outra diferença que exige um olhar mais minucioso: a E. scoparia tem hastes glabras ou com poucos pêlos, enquanto que tanto a E. arborea como a E. lusitanica as têm densamente tomentosas.

É consolador para gente como nós que um gigante como Lineu também tenha cometido deslizes. A descrição no Species Plantarum (1753) da Erica scoparia assenta que nem uma luva, não ao arbusto que hoje é conhecido por esse nome, mas à... Erica arborea, que Lineu descreve (separadamente) na mesma obra e até na mesma página. Terá havido algum extravio ou má etiquetagem do material que Lineu recebeu dos seus colectores. Lineu apercebeu-se do erro e acabou por guardar no seu herbário uma amostra de E. scoparia com a etiqueta correcta, mas a descrição equivocada nunca foi corrigida. Se as leis que regem a taxonomia botânica tivessem sido cumpridas à risca, E. scoparia seria sinónimo de E. arborea, e a urze-das-vassouras teria que adoptar outro nome científico — por exemplo (e estes nomes existem mesmo) Erica absinthioides e Erica fucata. Valeu a tradição, pois o nome Erica scoparia já era usado antes de Lineu.

A terminar, diga-se que duas urzes endémicas dos nossos arquipélagos atlânticos, a E. azorica nos Açores e a E. platycodon subsp. maderincola na Madeira, são parentes muito próximas da E. scoparia — da qual, na opinião de alguns, não passariam de subespécies. Têm no entanto flores avermelhadas, o que, por a floração durar pouco, nunca pudemos confirmar ao vivo.

19/12/2015

Urze vagabunda

Erica vagans L.
Tirando as plantas aquáticas flutuantes, que ainda assim têm sérias limitações de mobilidade, as plantas germinam, crescem, frutificam e morrem sempre no mesmo local, e por isso a condição de vagabundagem imputada a esta urze diz respeito ao colectivo da espécie, e não, obviamente, aos indivíduos que a compõem. E mesmo esse pendor nómada da espécie, sublinhado por Lineu ao escolher o epíteto vagans, não é dos mais evidentes. Com a distribuição concentrada no extremo norte de Espanha, no sudoeste de França, e na península de Lizard na Cornualha (Inglaterra), a sua área geográfica é bastante restrita se comparada com as da Erica ciliaris, E. cinerea, E. scoparia e E. arborea, cada uma das quais ocupa grande parte da Europa ou da região mediterrânica. A presença residual na Grã-Bretanha fez dela uma celebridade local: é conhecida como cornish heath e foi eleita como flor-símbolo da Cornualha.

Dito isto, é bom que certas plantas não se espalhem muito, pois as viagens que elas não fazem desculpam em parte aquelas que nós fazemos. Quando coisas tão quotidianas como as urzes assumem formas inesperadas aos nossos olhos, como nos sucedeu na Cantábria, sabemos que já não estamos em casa. Forçaram a nossa atenção as flores dispostas em espiga, com o rosa pálido das corolas contrastando com um círculo de anteras quase negras a lembrar uns lábios exageradamente pintados. Soubemos nesse momento que essa urze era diferente de todas as que até então conhecíamos. E, de facto, a Erica vagans não é espontânea em Portugal, embora, como reputada planta ornamental que é, possa existir em algum jardim onde ainda se preze a diversidade vegetal. Para quem queira fazer a experiência do cultivo, convém saber que se trata de um arbusto maneirinho, com uns 80 cm de altura máxima, e que floresce em Julho e Agosto. Encontrámo-lo em substrato calcário e em altitudes rondando os 1000 m, mas esses não são requisitos obrigatórios, pois em condições naturais pode crescer quase junto ao mar (como sucede na Cornualha) e, de acordo com a Flora Ibérica, prefere solos ácidos ou neutros.

06/09/2014

Camarinha de outras praias



Corema album (L.) D. Don subsp. azoricum P. Silva


Em quase toda a costa atlântica da Península Ibérica, a colonizar dunas protegidas e orlas de pinhais ou zimbrais, ocorre uma planta muito semelhante à que hoje aqui mostramos. A das fotos é dos Açores, onde a ocorrência do género Corema foi primeiramente reportada por Watson em 1843. Nas ilhas, aparece em rochas costeiras de basalto ou em escorrências de lava próximas do litoral, mas pode subir aos 350 m de altitude em lugares expostos e soalheiros. Comparemos as duas versões de Corema album, usando as fotos da Flora On.

À primeira vista, notamos que a folhagem nos Açores é menos densa mas forma almofadões compactos, sem deixar ramos ou a base da planta à vista, talvez para se proteger de uma maior exposição aos ventos e à maresia. Além disso, os frutos das plantas açorianas, igualmente brancos e, por vezes, nacarados, são em geral mais pequeninos. Pouco mais as distingue, a menos que se decida comer um fruto: depois do esgar por causa do sabor ácido, comum a bagas continentais e insulares, podemos ter a sorte de nos calhar um fruto açoriano com mais do que quatro sementes, podendo até chegar às nove. Ora o fruto continental costuma dar três sementes, raramente duas, nunca ultrapassando quatro. (Refira-se, a propósito, que a polpa das bagas tem fama de ser febrífuga e que, por isso, em 1877 houve quem (Boiss. ex Willk. & Lange) chamasse a esta planta Corema febrifugum.) Estes detalhes pareceram, nos anos sessenta do século passado, ao botânico português António Rodrigo Pinto da Silva (1912-1992) razão suficiente para propor que a versão açoriana fosse considerada como uma subespécie autónoma, de nome azoricum. E, em 2002, outros botânicos aduziram mais argumentos que, no seu entender, legitimam mesmo uma independência como espécie, propondo a designação Corema azoricum. A Flora Ibérica mantém a opinião de que se trata de uma só espécie sem diferenciação em qualquer categoria. Agradecemos que, quando chegarem a um acordo, nos informem.

No continente, e embora não se veja com igual frequência ao longo de todo o litoral, a camarinha é fácil de detectar (e só não o é nos Açores por causa da sua raridade): na época da floração, a meio da Primavera, notam-se as flores masculinas com as anteras de cor púrpura (o pólen costuma ser amarelo, não é?) e as femininas com o estigma igualmente avermelhado; e, em qualquer estação, basta seguir o aroma resinoso a que rescendem as folhas (curiosamente, o odor é o mesmo aqui e nos Açores). A polinização está a cargo do vento e os frutos agradam aos pássaros, que tendem a largar as sementes (cuja viabilidade se conserva até dois anos) em espaços abertos, e aos coelhos, que desperdiçam mais porque as deixam nas moitas e a camarinha não germina em lugares demasiado fechados.


Pocinho, Pico
Depois de, sob uma chuvinha retemperadora, vermos a camarinha açoriana junto ao farol da Ponta da Ilha, no Pico, na boa companhia de Lotus azoricum, Myosotis maritima e Spergularia azorica, fomos almoçar peixão num pequeno restaurante por perto. No fim, por tradição local, entregaram-nos uma concha para inscrevermos no seu interior uma mensagem a registar a visita. Desenhámos uma camarinha, legendando o rabisco com o nome científico e o vernáculo que utilizamos aqui no continente. Quem nos serviu o pitéu não sabia que a Ponta da Ilha é um paraíso botânico e desconhecia esta planta até de nome.


Ponta da Ilha, Pico

22/07/2014

Queiró insular


Daboecia azorica Tutin & Warb.



A distribuição do género Daboecia, que alberga apenas duas espécies, subordina-se à exigência de uma elevada acidez do solo, mas ainda assim é curiosa: estas plantas são espontâneas apenas no sudoeste de França, norte de Espanha, noroeste de Portugal, ponta sudoeste da Irlanda, e Açores. A espécie das ilhas açorianas dá flores mais pequenas, com corolas glabras, mas igualmente caducas, num tom de carmim quase púrpura, que se dispõem em cachos de 3 a 7 flores e se detectam facilmente em matos ralos no fim da Primavera (a D. cantabrica floresce mais tarde, de Junho a Outubro). Há registos da presença deste queiró em quatro das nove ilhas, mas parece ser frequente apenas no Faial e na montanha do Pico. Tal como a versão europeia, de que por certo descende, é um arbusto baixo, perene, de base lenhosa e caules decumbentes; as duas apreciam urzais (embora nos Açores a urze em causa seja a endémica Erica azorica), mas a açoriana adaptou-se à intensa humidade atmosférica das ilhas e aparece também em encostas vulcânicas cascalhentas (geralmente acima dos 500 metros).

Há mais diferenças que justifiquem a independência da D. azorica como espécie? Os descritores desta planta, os britânicos Thomas Gaskell Tutin (1908-1987) e Edmund Frederic Warburg (1908-1966), co-autores da Flora of the British Isles e da Flora Europaea, assim o entenderam depois de uma visita de exploração botânica às ilhas do Faial e do Pico em 1929. Anunciaram a descoberta três anos depois, no Journal of Botany, British and Foreign. Publicaram dois artigos com o que viram nos Açores, e tempos depois receberam mais financiamento para novas expedições, algumas delas notáveis pelo contributo que trouxeram à salvaguarda da biodiversidade no mundo.

O estudo da flora açoriana, desde o século XIX até meados do século XX, deve-se sobretudo a cientistas estrangeiros. Na verdade, naquela época não havia universidade ou centros de investigação nos Açores, e no continente os botânicos (os que não andavam entretidos nas colónias) cuidavam de recuperar o atraso na descrição da flora local, para logo depois se começarem a preocupar com a dimensão das ameaças à natureza e com a necessidade de medidas de protecção. Além disso, desde a época dos descobrimentos que o apoio à pesquisa científica, sobretudo àquela que exige demorados trabalhos de campo, tecnologia avançada e redes alargadas de cooperação, tem o tamanho da pobreza do país. Que continua a ignorar para que serve a investigação em ciências naturais, ou não quer dar-lhe uso porque são outros os interesses que nos governam. É decerto por isso que ainda hoje são os cientistas estrangeiros que nos avaliam, que decidem qual o conhecimento que o país deve incentivar, que ditam o futuro da nossa ciência e, portanto, do nosso território.

16/12/2013

Verde, logo azul


Vaccinium myrtillus L.
Nos países frios do norte da Europa, a apanha de mirtilos silvestres é bastante mais comum do que em Portugal a colheita de amoras. Não se trata de obter proventos comerciais, mas de recuar à infância da humanidade, ao tempo em que não havia agricultura e o sustento era assegurado pela produção espontânea da natureza. Talvez porque o nosso gosto refinado rejeite os sabores rudes e não padronizados dos frutos silvestres, ou talvez por simples ignorância, o certo é que a actividade de recolecção não tem entre nós muitos adeptos. Amoras, pilritos e medronhos abundam de norte a sul do país, mas — tirando a colheita de medronhos para aguardente na serra algarvia — pouca gente tira proveito de tão copiosa oferta. Nas terras altas do noroeste a ementa é enriquecida pelo mirtilo, fruto que, por motivos bem compreensíveis, ninguém tem o hábito de colher: embora o arando (Vaccinium myrtillus) seja relativamente frequente em carvalhais, matos e até plantações florestais em altitudes elevadas (em geral superiores a 800 m), as condições climatéricas do nosso país não favorecem a produção de frutos. Um dia inteiro de colheita pela serra dificilmente daria matéria prima para um miniatural frasco de compota.

Apesar disso, e como o leitor pode verificar com uma breve googlada, desde há 18 anos que, com grande sucesso, se cultivam mirtilos na região centro do país, especialmente em São Pedro do Sul e Sever do Vouga. Só que, apesar da semelhança dos frutos, as variedades cultivadas são de origem norte-americana e nada têm a ver com o nosso mirtilo espontâneo, que tão fraca vocação mostra para a produção intensiva. É de facto incorrecto, como se faz nesta página, descrever o mirtilo como um fruto silveste. O mirtilo cultivado é tão silvestre como uma maçã golden, o que por certo não o impede de ser delicioso.

O melhor mirtilo genuinamente português, tanto pelas virtudes ornamentais como pela abundante produção de frutos, mora em pleno oceano Atlântico, nas ilhas dos Açores: trata-se da uva-da-serra, ou Vaccinium cylindraceum, um arbusto que é endémico do arquipélago mas é ignorado pela população local. Façamos votos para que a compota de uva-da-serra seja algum dia tão obrigatória em mercearias e supermercados açorianos como são hoje o doce de capucho e o licor de maracujá.


Vaccinium cylindraceum Sm. — exemplar albino — ilha Terceira

01/12/2011

Debaixo dos pinheiros

Monotropa hypopitys L.
O género Monotropa contém duas espécies perenes, a M. uniflora L. (Indian's pipe) e a M. hypopitys L. (Dutchman's pipe), originalmente da família Monotropaceae mas agora colocadas na família Ericacea, onde coabitam com plantas com que parecem ter reduzido parentesco, como os rododendros. Contudo, a flor das monotropas (única no caso da M. uniflora, em cacho terminal na M. hypopitys), com quatro ou cinco pétalas, é de facto semelhante às dos medronheiros, urzes e mirtilos. Quando nasce, no fim da Primavera, mantém a corola voltada para baixo para que alguma chuva que caia não dilua o néctar que está na base das pétalas, ou comprometa a facilidade do pólen em se colar aos insectos. No Verão levanta-a ligeiramente, não vá a excessiva cautela deixá-la sem visitas. Finalmente em Setembro, quando polinizada, ergue a corola para que murchem convenientemente as componentes que não fazem falta ao fruto, uma cápsula com aberturas laterais por onde as sementes aladas se escapam. [Esta época de floração varia com a região; as plantas com flores mais tardias tendem a ser menos glabras e avermelhadas.]

Monotropa significa uma volta, aludindo à posição unilateral das flores. Hypopitys deriva do termos gregos hypo (abaixo) e pitys (pinheiro), em referência ao habitat sombrio que é natural para esta herbácea — que também ocorre em matas caducifólias húmidas, com outras coníferas ou faias, e até em algumas dunas. Na Península Ibérica prefere a metade mais fria; por cá, vê-se cada vez menos nas montanhas do norte e centro (o primeiro exemplar que vimos vive na mata da Margaraça). É espontânea, embora em geral rara, em boa parte das regiões temperadas do hemisfério norte.

Vivendo assim em condições extremas de falta de luminosidade, e não exibindo folhas verdes (as folhas são as escamas transparentes de aspecto ceroso que abraçam o caule), desconfia-se que se alimente da matéria em decomposição que abunda nas florestas densas ricas em humidade. Engano nosso, esta não é uma planta saprófita. Na verdade tem um rizoma carnudo que se reveste de fungos cuidadosamente seleccionados, e são estes que lhe fornecem alimento. O negócio funciona do seguinte modo. As árvores sintetizam açúcares nas folhas, com luz, clorofila e dióxido de carbono, e enviam-no para toda a planta, incluindo as raízes. Aqui os fungos retiram uma porção, que dividem com a Monotropa, pagando à árvore em nutrientes minerais, especialmente fósforo, e ajudando-a a absorver água. O negócio é proveitoso para o fungo e para a árvore, mas também para a oportunista Monotropa, que talvez tenha aprendido/ensinado a esta orquídea, com a qual é frequentemente confundida, uma tal estratégia barata de alimentação. Não é porém clara a razão para os dois parceiros, árvore e fungo, cooperarem no sustento destas parasitas.