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02/04/2015

O lince e a sequóia

Imagine-se que, depois de toda a comoção e efervescência mediática com o retorno do lince-ibérico a Portugal, é chegado o momento de soltar na natureza os primeiros linces criados em cativeiro. Com muitos jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara, políticos e biólogos a postos para a ocasião, eis que os bichos que saem das jaulas de transporte, algo sobressaltados por tanta gente à sua volta, são simples gatos domésticos e não os desejados linces. Contudo, não se ouve qualquer reparo. Talvez apenas ao ministro pareça que alguma coisa nas orelhas dos felinos agora postos em liberdade (e que rapidamente desaparecem de vista) não bate certo com as fotos que consultou à socapa na Internet antes de vir para a cerimónia. O ministro, porém, acha prudente calar-se: não lhe cabe pôr em dúvida a competência dos técnicos especializados que ajudaram a criar os alegados linces, e que agora se quedam emocionados vendo-os ir à sua vida. Quanto aos jornalistas, estão ali para propagar a boa nova e não para fazer perguntas impertinentes. E assim acontece: televisões, redes sociais, imprensa escrita — toda a comunicação social, mostrando imagens dos gatinhos, garante que os linces estão de volta a Portugal. Como de costume, há um ou outro São Tomé empedernido que duvida até do que vê, mas felizmente ninguém leva a sério esses poucos incréus que tentam refutar a notícia chamando a atenção para o pormenor das orelhas.

Se um tal episódio de ignorância e credulidade colectivas é manifestamente improvável quando se trata de animais (embora seja comum a confusão entre lobos e cães assilvestrados), já o mesmo não sucede com as árvores. De facto, a história que a Câmara do Porto engendrou à volta do abate e substituição da sequóia-gigante do Jardim do Carregal teve um desfecho não menos burlesco do que a história imaginária do lince-que-afinal-era-gato. Nem sequer faltaram jornalistas para amplificar o dislate. Jornalistas que, quando para ele alertados, responderam com o silêncio que as pessoas de bem reservam aos interlocutores inconvenientes.

A Câmara Municipal do Porto (CMP) não trata as árvores com especial carinho, sendo bem mais lesta a abatê-las (por razões que nem sempre se entendem) do que a substituí-las. As tílias que há três ou quatro anos foram cortadas à frente dos jardins do Palácio de Cristal nunca foram substituídas. Pelo contrário, encheram-se as caldeiras com paralelipípedos. Noutros locais da cidade onde se fez o mesmo (e foram muitos) usou-se cimento ou alcatrão, mas o resultado foi idêntico: desapareceram não só a árvore mas o próprio lugar da árvore. E o modo como a CMP lida com as suas árvores em nada se alterou com a mudança do poder político.

Mas houve uma coisa que mudou. Se ao vereador faltam força política, competência ou vontade para melhorar os serviços sob a sua tutela, já lhe sobra argúcia para entender que, muito mais do que fazer as coisas bem, importa noticiá-las bem. Entre nós, o desvelo encenado pela árvore ou pela natureza, mesmo sendo oco (coisa que nenhum jornalista se dá ao trabalho de averiguar), garante sempre boa imprensa. Em vez de se plantarem as árvores que fazem falta nas ruas que a CMP se encarregou de despir, o vereador determina que será plantada uma só árvore, mas essa árvore e os eventos criados a propósito dela hão-de ser notícia do maior destaque.

E as coisas pareciam correr a preceito. A morte da sequóia-gigante (Sequioadendron giganteum) do Jardim do Carregal e a sua longamente anunciada substituição renderam, só no jornal Público, nada menos que quatro notícias ao longo de 15 meses (1, 2, 3, 4). Era o vereador a lamentar a perda de uma árvore classificada (coisa que ela nunca foi), era a promessa de que seria substituída por outra da mesma espécie, era o painel com a foto da falecida em contra-luz, era a colaboração dos alunos de Belas Artes.

O leitor por certo já adivinhou o desfecho da história. No meio de tanta festa e animação cultural à volta da árvore, ninguém se lembrou de olhar para ela com olhos de ver. No lugar da anunciada Sequoiadendron giganteum (sequóia-gigante), o que mora no Jardim do Carregal desde 19 de Março é mais um exemplar de Sequoia sempervirens (sequóia-sempre-verde). A segunda destas espécies, ao contrário da primeira, é frequente nos jardins do Porto e de outras cidades portuguesas. No próprio Jardim do Carregal há mais uns vinte exemplares de sequóia-sempre-verde, alguns deles a meia dúzia de metros do exemplar agora plantado.

As duas sequóias têm folhagens muito diferentes, e não é preciso ser-se um fino conhecedor de árvores para as distinguir. Isso mesmo é ilustrado pelas fotos que se seguem, tiradas esta semana nos jardins do Carregal e da Cordoaria (é no último que vegeta uma das duas únicas sequóias-gigantes do Porto; a outra está no Parque de Serralves).


Sequoia sempervirens (D. Don) Endl. — plantada em 19 de Março de 2015 no Jardim do Carregal


Sequoiadendron giganteum (Lindl.) J. Buchholz — fotografada no Jardim da Cordoaria

13/10/2006

Fogo eterno

Conta a lenda que Prometeu, deus grego guardião do fogo, o terá roubado a Zeus - que amuado connosco o escondera - para o doar aos não divinos. Ousadia devidamente castigada com o envio imediato de Pandora, que não hesitou em abrir entre nós a inesgotável caixa de reveses e infortúnios. A Cuphea ignea, herbácea de floração abundante, que floresce todo o ano e cujas flores lembram cigarros acesos, pode bem servir como lembrança da dádiva fértil de Prometeu.


Cuphea ignea

De origem mexicana, tem flores solitárias, axilares, sem pétalas, com um cálice tubular vermelho-alaranjado que termina num anel cinza - e parece um graveto de ponta incandescente. Quando destacada e invertida, cada flor assemelha-se à figura de um santo de túnica, dai a designação comum santantoninho.

Da família Lythraceae, que inclui as romãzeiras e as lagerstroemias, o género Cuphea abriga cerca de 260 espécies da América tropical. Em zonas onde as palmeiras do dendê (a africana Elaeis guineensis ou a americana E. oleifera) não se dão bem, tem crescido o interesse pelo óleo de sementes de cúfea, usado em sabonetes, detergentes e rebuçados.

Alguns recantos do Jardim do Carregal estão forrados com C. gracilis, planta brasileira de discretas flores lilases ou brancas que, como velhotas gaiatas, mudam para cor-de-rosa com a idade.


Cuphea gracilis

05/10/2006

Árvores do Jardim do Carregal #11


Casuarina equisetifolia

Num dos bordos do Jardim do Carregal estão agora em flor um grupo de casuarinas (Casuarina equisetifolia) de belo porte. Não são coníferas como a maioria das suas vizinhas no Jardim, mas são australianas como elas. A copa piramidal verde-alface ganha no Outono o tom acastanhado das inflorescências masculinas, espigas terminais alongadas só com brácteas pequenas. As flores femininas, que se formam nas axilas das folhas, são conjuntos de estiletes avermelhados e também não têm pétalas. As brácteas quando maduras soldam-se e criam pinhas cilíndricas que contêm samaróides, cada um com uma semente alada e achatada.

Esta árvore, da família Casuarinaceae, é de crescimento rápido e tolerante a solos salinos; adequa-se por isso como quebra-vento e como revestimento de zonas costeiras. Diz-se que a sua madeira de cerne vermelho é a melhor das lenhas. A ramagem pendente, num hábito que faz lembrar a plumagem dos casuares (do malaio kasuari) - grandes aves pernaltas mas não voadoras, com uma crista óssea e pescoço azul ou púrpura - é feita de tubinhos ocos, finos, rijos, estriados longitudinalmente, articulados com nós em redor dos quais se encaixam as folhas diminutas como dentinhos triangulares brancos. Parece-se com a folhagem da cavalinha (Equisetum sp., nome que tem origem no latim equus, cavalo, e seta, cerda ou crina), daí o epíteto específico. Em dias de vento, os numerosos tubos produzem um silvo característico, que lhe deu a designação comum Whistling-Pine e árvore-da-tristeza.

No jardim da Casa Burmester, na Rua do Campo Alegre, há três exemplares de outra espécie de casuarina, também de origem australiana, que tem inflorescências mais vistosas e frutos maiores.

Anterior desta série: #10

10/09/2006

Caída do céu



Se, em vez da maçã, tivesse caído esta pinha na cabeça de Newton, teria ele formulado a teoria da gravitação universal? Apesar de este grande ananás (62 cm de perímetro, 22 cm de comprimento, 5 kg de peso) ser um projéctil bem mais memorável do que a maçã, é provável que a sua queda não estimulasse as lucubrações do privilegiado cérebro do cientista.

A foto é fantasiosa: as sementes, uma em cada escama, podem comer-se, mas não é prático fazê-lo com faca e garfo. Aliás, talvez seja aconselhável deixá-las secar primeiro, mas não irei comprovar isso, pois enterrei quatro delas num vaso e devolvi o resto da pinha ao local onde a encontrei. Lá ficou como aviso a quem se quisesse encostar à árvore que a largou: a Araucaria bidwillii do Jardim do Carregal. Dias depois, os jardineiros da Câmara cercaram a árvore com uma fita verde e branca, que não fica bonita mas remedeia: as pinhas, de tão pesadas, caem sempre a prumo, bem junto ao tronco. Solução definitiva seria rodeá-la com um maciço de arbustos que impedisse a aproximação das pessoas.

06/08/2006

Roubaram a alegria!


Impatiens "Celsia"

Uma das plantas do género Impatiens, não a que mostro acima, tem em português o singelo nome de alegria-da-casa (a da foto, tanto quanto sei, não tem nome na nossa língua). Assim, no mesmo passo em que justifico um título reminiscente dos poemas de Ary dos Santos, admito que o mesmo está incorrecto. Mas o tom de denúncia que tenciono dar ao texto é, julgo eu, digno do estro do malogrado poeta.

Ao contrário do que diz a voz do povo (aí já me afasto do meu modelo, que deu sempre razão ao povo), as pombas não têm culpa das redes que cobrem alguns canteiros públicos; ou, se alguma culpa têm por devorarem as couves que por vezes os ornamentam, não têm dela o maior quinhão. É que as pombas não roubam flores para levar para casa, e é por isso forçoso atribuirmos à (desonesta) acção humana as clareiras que surgem nos canteiros desprotegidos logo depois de serem renovadas as flores sazonais.

No Jardim do Carregal as flores do momento são essas da foto a que chamo alegrias para fins retóricos. Roubaram-nas, claro - embora com moderação, para que ao longe não se notasse o desfalque. Se as flores se chamassem tristezas também as teriam roubado, pois estes ladrões não são de esquisitices.

27/01/2006

Jardim do Carregal

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No Carregal - por Hélder Pacheco
«...O Carregal está impregnado de atmosfera romântica única no Burgo. Por isso reveste um significado especial no imaginário dos portuenses, tanto pelo desenho dos espaços - onde o lago e a ponte, imitando as ruínas caras a certo revivalismo oitocentista, constituem atractivos especiais -, como pelas espécies arbóreas (grandes coníferas) que o povoam. Projectado em 1897 por Jerónimo Monteiro da Costa, antigo colaborador de Marques Loureiro no Horto das Virtudes, a selecção das espécies terá pertencido a Casimiro Barbosa, também pertencente à Sociedade daquele famoso Horto.
Carregal provém da palavra carrega, planta gramínea das zonas húmidas, charcos ou lameiros que caracterizavam, até aos meados do século XIX, aquele local, por onde passava o Rio Frio, que desagua na Praia de Miragaia. Em razão da insalubridade e irregularidade do sítio e dos terrenos em redor, durante quase um século seria duramente criticada a construção do Hospital de Santo António, mesmo em cima deles. Sem resultado. A custo, metade da obra fez-se. (...)»

Sobre as árvores do Jardim do Carregal ler: #1- Pseudotsuga menziensii; #2 -Agathis robusta; #3- Cunninghamia lanceolata; #4-Sequoiadendron giganteum; #5- Sequoia sempervirens; #6-Magnolia; #7-Cedrus libani ; #8-Chamaecyparis lawsoniana; #9- Araucaria bidwillii ; # 10- Plátano
E ainda: Uma aventura no Jardim do Carregal ;O renascimento do Jardim do Carregal ;Reabertura do Jardim do Carregal

(foto tirada enquanto esperava na fila do trânsito, em Novembro de 2005)

27/09/2005

Árvores do Jardim do Carregal #10


Foto: pva 0509 - plátano no Jardim do Carregal, Porto

Entre as árvores não transplantadas do Jardim do Carregal, é difícil não ver este soberbo plátano, que estende o toldo generoso da sua copa sobre a rua Clemente Menéres. É por ter árvores deste porte que o jardim, agora renovado e reaberto ao público depois de seis anos de interdição (total ou parcial), passou rapidamente a ser local de recreio de crianças e parte do percurso diário de muita gente. Alguns visitam o jardim pela primeira vez; outros retomam o convívio interrompido; mas a todos eles o jardim fornece o aconchego só possível com árvores como estas, carregadas de anos.

Um jardim constrói-se para o futuro. Hoje o coberto arbóreo dos históricos jardins públicos do Porto - os que foram poupados à delapidação - atinge um apogeu de que os seus autores não puderam usufruir. É imperdoável que as várias entidades que têm intervido na cidade (Câmara, Porto 2001, Metro) desbaratem essa preciosa herança. Oxalá a recuperação do Jardim do Carregal seja indicadora de uma bem necessária mudança de atitude.

Anteriores na mesma série: #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7, #8, #9

14/09/2005

Reabertura do Jardim do Carregal

Alvo de um bem sucedido projecto de recuperação, o Jardim do Carregal foi ontem reaberto ao público, conforme dá conta a desenvolvida reportagem publicada na página da Câmara. Na véspera, enviei por email ao vereador do Ambiente algumas sugestões que ajudariam a tornar o jardim ainda melhor. Transcrevo na íntegra essa carta, com a promessa de divulgar aqui a resposta se ela for pertinente:

«Caro Eng. Rui Sá:

Como morador que sou da zona do Carregal, tenho acompanhado com entusiasmo a recuperação do jardim. Foram seis anos de maus tratos de que finalmente a Câmara se começa a redimir. Esperemos que não tardem também recuperações condignas do Campo 24 de Agosto e do Jardim do Marquês.

No que toca ao Jardim do Carregal, tenho a assinalar coisas boas e outras menos boas - mas que ainda se podem corrigir parcialmente.

Coisas boas:

- a demolição da casa, que além de feia era um corpo estranho no jardim e não permitia a reconstituição do percurso à volta do lago;

- a presença de canteiros floridos;

- o respeito pelo desenho original do jardim;

- os caminhos pavimentados com uma cobertura permeável;

- a vegetação variada em volta do lago.

Coisas menos boas:

- as zonas que ficam só com relva e sem qualquer sebe ou outra protecção (convite óbvio ao uso como sanitário pelos muitos cães da zona);

- os bancos de granito sem encosto (parece estar em curso no Porto uma conspiração, iniciada na Cordoaria, para impedir que os cidadãos possam descansar confortavelmente nos jardins públicos).

É claro que a primeira objecção ainda pode ser sanada. Não entendo, por exemplo, que no local deixado vago pela demolição da casa não se tenha plantado sequer um arbusto. Plantem-se camélias (esse símbolo da cidade vergonhosamente proscrito da Cordoaria), magnólias, azereiros, medronheiros: pequenos arbustos que não criem uma barreira visual mas dêm mais cor e vida ao jardim, e compensem em parte as árvores que ele perdeu durante as obras.

Saudações cordiais,
Paulo Ventura Araújo»

09/08/2005

Árvores do Jardim do Carregal #9


Foto: pva 0507 - Araucaria bidwillii no Jardim do Carregal, Porto

Agora que o Jardim do Carregal começa a ser recuperado, está na altura de retomarmos o inventário das suas árvores mais notáveis. A Araucaria bidwillii que hoje aqui trazemos - e que, apesar de altaneira e pujante, é mais jovem e de menor porte do que a do Jardim da Cordoaria (uma das novas árvores classificadas do Porto) - foi em 2004 protagonista de um incidente que vale a pena relatar.

Como se observa na foto, a casa que desfeava o jardim já desapareceu, demolida que foi, como aqui anunciámos, no final de Julho; mas quem teve a honra de lhe partir a primeira telha foi, em 2004, a nossa bidwillii, ao largar sobre ela uma das suas descomunais pinhas (que podem pesar até 10 Kg e caem inteiras). Nos mais de cem anos que a árvore conta de vida, não havia ainda registo de semelhante acidente; talvez só agora o clima seja favorável à eclosão das pinhas. Espera-se que, para prevenir algum desastre sério, haja o cuidado (que não existiu com a sua irmã da Cordoaria) de, na reconstrução do jardim, se vedar a vizinhança da árvore aos transeuntes.

Anteriores na mesma série: #1, #2, #3, #4, #5, #6, #7, #8

18/07/2005

O renascimento do Jardim do Carregal

1) Na rua de Clemente Meneres, que circunda o Jardim do Carregal, prosseguem a reconstrução dos passeios e o asfaltamento da via. O lugar, recorde-se, vive há seis anos em estado de sítio, agravado ultimamente pelas malogradas obras de extensão do túnel rodoviário até à rua D. Manuel II. Com a próxima abertura do túnel, ainda que reduzido a uma saída, é natural que o trânsito à superfície seja desencorajado, e nisso o projecto para a zona é sensato, alargando os passeios e estreitando a faixa de rodagem. Mas há dois pormenores desagradáveis: os automobilistas, numa exuberante demonstração de falta de civismo, já se apropriaram dos novos passeios para estacionamento; e os quatro bordos (Acer campestre) recém-plantados no passeio do lado norte estão a secar. Embora não se conteste a escolha da espécie, estas árvores, à semelhança do que aconteceu com os plátanos da Av. da Boavista, foram plantadas na pior altura. Poderiam ainda assim ter sobrevivido se alguém cuidasse de as regar regularmente. A sua morte é o infeliz resultado da negligência e do mau planeamento.

2) Regressamos, a medo, ao Jardim do Carregal, jóia do Porto oitocentista a que os nossos contemporâneos não souberam dar melhor uso que o de estaleiro de obras. As árvores que lhe tiraram não serão substituídas, pois no lugar do solo onde vegetavam existe agora uma placa de betão que uma fina camada de terra mal disfarça. Outras árvores, poupadas à motossera, têm sucumbindo aos maus tratos: amputação de raízes, encontrões das máquinas, acumulação de entulho, terra ressequida por falta de rega. Todas as vezes que lá passamos actualizamos o obituário: depois da magnólia e das camélias, chegou a vez da Agathis robusta, árvore australiana que era uma das raridades do jardim; as folhas secas e a copa rala não deixam dúvidas de que foi tocada pela morte. Mas agora no jardim há finalmente sinais de esperança: as máquinas, os barracões, o entulho e a vedação de zinco foram removidos, o desgracioso edifício térreo que funcionou como anexo hospitalar será demolido, e não tarda iniciar-se-á a recuperação dos canteiros. Não poderíamos desejar melhor prenda de Verão: esperámos seis anos para que nos devolvessem o Jardim do Carregal.

Foto: pva 0507 - Acer campestre na rua de Clemente Meneres

21/03/2005

Árvores do Jardim do Carregal #8



Fotos: pva 0411/0502 - Chamaecyparis lawsoniana - Jardim do Carregal e Palácio de Cristal (Porto)

(...)«salsinha» é só salsa picada ou um nome genérico para tudo que num prato é puro adorno. (...) Os defensores da salsinha dizem que ela só existe para bonito, o que só confirma nossa posição: o enfeite não serve para nada e rouba espaço da comida. Mas na cozinha mais preocupada com estética do mundo, a japonesa, é raro se ver salsinha. Você encontra pássaros diáfanos feitos de nabo ou pagodes de gengibre na beira dos pratos, é verdade, mas aí não é mais salsinha. Aí é filosofia.
Luis Fernando Verissimo

A folhagem da Chamaecyparis lawsoniana, perene, escamiforme, disposta em ramagem achatada e rendada como a das avencas, e os cones que parecem novelos pequeninos e se agrupam nas pontas dos ramos, fazem esta conífera assemelhar-se aos ciprestes (cyparis) e às tuias, que são de facto da mesma família (Cupressaceae). Mas a copa densa é piramidal, o hábito é pendente e este género pode atingir 50 metros de altura. O ritidoma descasca-se em tiras, deixando ver o tronco avermelhado, que frequentemente se ramifica desde a base, formando apêndices colunares que rastejam (a palavra grega chamai significa justamente deitado no solo) antes de ascender e lhe dão aspecto de âncora (ou candelabro ou tromba de elefante, as opiniões aqui dividem-se).

No Porto esta espécie frondosa ornamenta muitas praças e jardins. Os exemplares da primeira foto, com cerca de 20 metros de altura, vegetam no Jardim do Carregal e apresentam um porte notável, o que confirma o apreço deste género por climas amenos e solos húmidos mas bem drenados como foi o da zona do Carregal até o caudal do rio Frio ser desviado.

Esta espécie é conhecida como cedro-branco (mas não é um cedro) e é originária da América do Norte. Crê-se que chegou à Europa em 1854 e que as primeiras sementes bem sucedidas foram plantadas por Charles Lawson, que lhe dá o nome.

Diz quem entende de perfumes que as folhas desta resinosa têm aroma de salsa.

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09/01/2005

Árvores do Jardim do Carregal #7


Foto: pva 0411 - Cedrus libani - Jardim do Carregal (Porto)

Não há muitas árvores que tenham a honra de ser mencionadas na Bíblia: a macieira, ao contrário do que muitos pensam, nem uma só vez aparece no Livro do Génesis; a oliveira tem o destaque apropriado a uma árvore emblemática da civilização mediterrânica; e há ainda o cedro-do-Líbano, árvore que, segundo o Antigo Testamento, forneceu quantidades colossais de madeira para a construção do templo do Rei Salomão.

Originária dos montes do Líbano, esta majestosa árvore perenifólia da família das Pinaceas foi pela primeira vez plantada em Inglaterra em meados do século XVII, mas só cem anos mais tarde se começou a vulgarizar na Europa Ocidental, e é possível que a Portugal só tenha chegado no século XIX. A sua silhueta distingue-se pela copa achatada e pelas longas ramadas horizontais organizadas em sucessivos patamares; as suas folhas são pequenas agulhas reunidas em tufos que lembram pincéis (por contraste, as agulhas dos pinheiros, mais compridas, reúnem-se em grupos de dois, três ou cinco).

Duas outras espécies de cedro, com folhagem semelhante à do cedro-do-Líbano mas de aspecto geral distinto, são frequentes em parques e jardins portugueses: o cedro-do-Himalaia (Cedrus deodara) e o cedro-do-Atlas (Cedrus atlantica). O primeiro tem forma cónica, terminando numa flecha estreita e recurvada; do segundo é comum o cultivar glauca, de folhagem azulada; ambos são de crescimento mais vigoroso do que o cedro-do-Líbano.

No centro do Jardim de Carregal, e formando a mais admirável amostra dessa espécie em espaços públicos portuenses, distribuem-se onze cedros-do-Líbano. Embora tenham sido até hoje poupados pelo túnel que vai gradualmente devorando o jardim, não ficaram imunes às obras: além de sofrerem com o entulho e o desleixo, têm-lhes sido amputados grandes ramos para facilitar a manobra das máquinas.

Salomão sacrificou as florestas do Líbano ao culto de um Deus; e das árvores derrubadas fez um templo que inspirava os homens à transcendência. Hoje, no Porto e em todo o país, árvores e jardins são imolados ao culto efémero e materialista do automóvel. É a isto que ainda chamamos progresso?

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06/01/2005

Árvores do Jardim do Carregal #6

A árvore do Jardim do Carregal que planeávamos referir hoje foi abatida esta semana pelos construtores do túnel rodoviário. Era uma magnólia de flor branca de belo porte, prestes a florir.

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18/12/2004

Árvores do Jardim do Carregal #5


Foto: pva 0411 - Carregal - Sequoia sempervirens

Além da sequóia-gigante (Sequoiadedron giganteum) de que falámos anteriormente, o Jardim do Carregal possui quase duas dezenas de exemplares de outra espécie aparentada: a sequóia-sempre-verde (Sequoia sempervirens). Estas duas árvores da família Taxodiaceae são originárias da Califórnia e destacam-se ambas pelas dimensões recordistas que atingem nos seus territórios de origem: a sequóia-gigante é a árvore mais volumosa que se conhece, e a sequóia-sempre-verde é a mais alta. A actual detentora do título de árvore mais alta mede 112 metros e mora na Reserva Estadual de Montgomery, na Califórnia; conforme aqui se conta, a sua identificação exacta é mantida tanto quanto possível em segredo, não vá o afluxo descontrolado de turistas danificar a árvore e perturbar o equilíbrio do seu habitat.

Tirando a semelhança dos troncos (avermelhados, fibrosos, profundamente sulcados) e a forma piramidal que ambas exibem, estas duas espécies de sequóias são marcadamente distintas: as ramadas da sequóia-gigante curvam para cima, as da sequóia-sempre-verde são pendentes; e as folhas desta última são semelhantes às do teixo, distribuindo-se ao longo dos raminhos em dois renques paralelos e opostos.

Ao contrário da sua conterrânea, a Sequoia sempervirens aclimatou-se bem ao nosso país e é frequente encontrá-la em parques e jardins. Os exemplares no Jardim do Carregal não se distinguem pela imponência: são árvores mirradas, vegetando em condições que lhes são desfavoráveis. Noutros locais do Porto (por exemplo no Jardim Botânico e no Parque de Serralves) encontram-se sequóias com melhor desenvolvimento; mas, saindo da cidade, há por cá vários locais onde elas vão fazendo algum jus à sua fama: na Mata do Buçaco (onde Ernesto Goes assinalou em 1984 a que lhe pareceu ser a maior do país, então com 45 m de altura), no Parque das Termas de Vizela (com numerosas árvores adultas a disputar o título à do Buçaco) e no Parque da Pena, em Sintra.

Anteriores na mesma série: #1, #2, #3, #4

05/12/2004

Árvores do Jardim do Carregal #4


Fotos: pva 0411 - Carregal - Sequioadendron giganteum com pormenor da folhagem

Já nem tenho vontade de falar
senão com árvores, vento,
estrelas e águas do mar.
E isso pela certeza de saber
que nem ouvem meu lamento
nem me podem responder.

Cecília Meireles


A algumas sequóias-gigantes têm consentido viver neste silêncio, nem inimigo nem irmão, por mais de mil anos. Nativa de Sierra Nevada, na Califórnia, região dos Estados Unidos com zonas áridas e verões quentes e secos, a Sequoiadendron giganteum, conífera da família Taxodiaceae e única espécie do seu género, retira sabiamente a humidade de que precisa da névoa em que a sua copa alta (que pode atingir os 100 metros de altura) mergulha em cada madrugada. É uma espécie monóica, competidora poderosa em florestas, elevando-se rapidamente acima das demais árvores para ganhar um maior quinhão de sol. Cultivada na Europa desde 1853, está presente em jardins portuenses desde 1860, mas não sem ter sofrido alguns percalços iniciais na sua adaptação ao nosso clima.

O exemplar do Jardim do Carregal tem cerca de 105 anos, 18.2 metros de altura e um PAP (perímetro do tronco à altura do peito) de 3.85 metros; como é típico nesta espécie, apresenta um tronco grosso na base, fibroso e avermelhado (daí o nome comum redwood), quase sem ramagem na parte inferior; a copa é cónica no topo, os ramos pendentes com extremos curvados para cima e lembrando, na forma, uma coroa. A folhagem é persistente, de cor verde-azulado (o que permite realçar a árvore nas fotografias), com escamas que espiralam nos ramos e os revestem completamente. Produz pinhas abundantes no fim do verão, mas não parece de boa saúde, resultado por certo da agressão a que inevitavelmente as obras do túnel do Carregal a têm submetido.

A sequóia-gigante mais famosa no Porto é ainda a do Jardim da Cordoaria, mencionada em várias crónicas e jornais de horticultura nos séculos XIX e XX. Mas o exemplar mais formoso é sem dúvida o de Serralves, com uns 60 anos de idade, que vegeta no bosquete em frente à casa rosa, junto à alameda de castanheiros-da-Índia.

Esperemos que, como corais, estes espécimes continuem por alguns séculos mais a contemplar-nos tranquilos e com rumo seguro.

Anteriores na mesma série: #1, #2, #3

16/11/2004

Árvores do Jardim do Carregal #3


Cunninghamia lanceolata - J. Carregal, Pedras Salgadas, Santo Inácio

O Jardim do Carregal, de 1897, é uma das obras mais bem sucedidas do jardineiro-paisagista Jerónimo Monteiro da Costa que, como director dos jardins municipais - e ao lado de Baptista de Lima Júnior, então vereador com o pelouro dos jardins - desenhou a maioria dos espaços verdes que marcaram a cidade no início do século XX. A lista notável de jardins que esta equipa construiu, ou melhorou, alguns dos quais sofreram entretanto opções urbanísticas que lhes adulteraram a fisionomia, inclui, além do Jardim do Carregal, o do Passeio Alegre, os das praças Infante D. Henrique, Carlos Alberto, República e Marquês de Pombal, o da Rotunda da Boavista, o do Campo 24 de Agosto e o Jardim da Arca d'Água.

O Jardim do Carregal é quase uma mini-floresta de coníferas. Predominam ali árvores de folha perene, que mantêm todo o ano os traços essenciais do ajardinamento romântico. A Cunninghamia lanceolata é um dos seus prodígios, uma taxodiácea de origem chinesa. O nome do género homenageia James Cunningham, que enviou em 1702 as primeiras amostras desta árvore para Inglaterra; o epíteto da espécie refere-se ao formato "em lança" das folhas, que são verdes na face superior, com duas bandas claras na inferior, e espiralam pelos ramos (como na Araucaria angustiolia; segundo o livro Portugal Botânico de A a Z, um dos nomes comuns da Cunnighamia é justamente falsa-araucária). As pinhas femininas parecem piões, com bico pronunciado; as masculinas formam ramalhetes pequeninos na ponta dos ramos.



No Porto não conhecemos mais exemplares de Cunninghamia. Mas na Quinta de Santo Inácio, em Vila Nova de Gaia, fomos surpreendidos por algumas árvores desta espécie ainda jovens e com excelente desenvolvimento. No Parque de Pedras Salgadas foi-nos apresentada outra com a copa muito aberta, típica das árvores mais idosas.

Anteriores na série: Árvores do Jardim do Carregal #1 e #2
Fotos: pva 0410/0411

07/11/2004

Árvores do Jardim do Carregal #2



A segunda árvore desta série sobre o Jardim do Carregal pertence à família Araucariaceae, como as araucárias de que aqui falámos. Tem nome de senhora mas é ainda uma menina: é uma Agathis robusta com cerca de 6 metros de altura e não mais de 20 anos. A palavra grega agathis significa "novelo de fio", aludindo à forma dos cones femininos deste género; o termo latino robustus refere-se ao tamanho e idade que a árvore pode atingir: são conhecidos exemplares com 50 metros de altura, 3 de diâmetro do tronco e mais de 2 mil anos.

O nosso espécime vegeta no bordo do jardim mais ameaçado pelas obras da construção do túnel do Carregal, que já lhe destruíram várias ramadas. Esteve mesmo para ser abatida, mas a oportuna consulta por parte dos construtores do túnel ao Jardim Botânico do Porto, confirmando que se trata de "árvore rara", salvou-a de destino tão desonroso.

Como todos os membros da família Araucariaceae, trata-se de uma árvore perenifólia; as suas folhas são tendencialmente opostas, com pecíolo curto e achatado, cerca de 10 cm de comprimento, de cor verde-escuro, face superior brilhante como se envernizada, e distinguem-se bem pelo recurvado nas margens.



O tronco é maciço, cinzento, de madeira amarelada (da cor da sua resina), com casca lisa ou coberta de leves escamas, livre de ramagem na maior parte da sua altura. Além disso é monóica (orgãos reprodutores masculinos e femininos na mesma árvore), mas a produção de sementes só ocorre em idades superiores a 30 anos e o nosso exemplar não produziu ainda cones.

É originária de Queensland, na Austrália, e portanto conterrânea da Araucaria bidwillii; para lhe aliviar as saudades de casa, a nossa árvore foi plantada perto de uma destas araucárias. Não conhecemos outro exemplar de Agathis no Porto; Amaral Franco, nos Anais do Instituto Superior de Agronomia, menciona um de bom porte no Palácio de Cristal mas que já não existe.

Fotos: pva 0410

30/10/2004

Árvores do Jardim do Carregal #1


Fotos: pva 0410 - Pseudotsuga no Jardim do Carregal

O Jardim do Carregal, um dos mais maltratados numa cidade que nos últimos anos declarou guerra de morte aos seus jardins, guarda, apesar da sua diminuta área, uma preciosa e diversificada colecção de coníferas de que não conhecemos paralelo em jardins públicos portugueses.

Pode ser que o conhecimento de um tal património ajude quem nos governa a compreender a urgência de recuperar este histórico jardim (inaugurado em 1897): é pelo menos essa uma das motivações para aqui iniciarmos uma série sobre algumas das suas notáveis árvores.

A nossa árvore inaugural é uma Pseudotsuga menziensii, espécie algo rara em jardins. No Porto há mais alguns exemplares - por exemplo no jardim do bairro social à face da Rua de Gonçalo Sampaio, no Jardim da Arca d'Água e no jardim da Comissão de Coordenação da Região Norte, estes últimos de porte e idade consideráveis - mas o do Carregal é talvez o mais esbelto. No resto do país, e segundo Ernesto Goes no livro Árvores Monumentais de Portugal, há dois povoamentos importantes de Pseudotsugas, na Serra da Estrela (Manteigas) e na Serra da Padrela (Vila Pouca de Aguiar).

Esta conífera da família Pinaceae é originária da costa oeste dos EUA e do Canadá, e atinge comummente, no seu estado natural, alturas superiores a 70 metros. É semelhante a um abeto, mas tem uma copa mais irregular e as suas pinhas são inconfundíves, com umas línguas de três pontas a emergirem por entre as escamas.

16/10/2004

Uma aventura no Jardim do Carregal

Chegou-nos à mão um texto anónimo que transcrevemos de seguida na íntegra por julgarmos ter interesse para os nossos leitores. O Jardim do Carregal guarda um património paisagístico, histórico e arbóreo que vem sendo vergonhosamente delapidado por quem governa a cidade do Porto; a situação descrita no texto é pois real, mas não subscrevemos necessariamente as opinões do seu autor.

«Perto de minha casa, do outro lado de um fluxo contínuo de trânsito fumarento, há grandes árvores que assinalam um lugar mal frequentado. Por alguma estranha razão, o lugar chama-se Jardim do Carregal. Como poderá ser jardim (interrogo-me) esse local presumivelmente infecto que a nossa esclarecida Câmara Municipal resolveu, desde 1999, expropriar em parte para outros usos (túnel rodoviário e estaleiro) e cercar parcialmente com uma vedação de zinco? Recorde-se que um jardim - ainda que, a despeito de alguns arquitectos, nele se admitam outras cores - também se chama vulgarmente espaço verde, coisa sobremodo valorizada pelo discurso político em voga. E (prosseguindo o mesmo discurso) um espaço verde é para fruição dos munícipes e outros utentes da cidade. Por isso, e porque a nossa realidade é o espelho fiel de tais discursos, os espaços verdes não se destroem, antes são acarinhados e, se possível, expandidos.

O Jardim do Carregal não será portanto um verdadeiro jardim. (Há mais exemplos do mesmo: os Jardins da Arrábida e os Pinhais da Foz não são nem uma coisa nem outra.) Se for jardim, por certo não será verde. Ainda que verde, o seu espaço não será grande. E, finalmente, haverá alguém que dele frua? Decerto que não. Os vultos suspeitos que se adivinham ao longe, entre as árvores, cumprem a sua marginalidade no lugar que lhes é próprio: em vez de fruirem (verbo que se lhes não aplica), simplesmente existem, arredados do nosso olhar cauteloso.

Nunca lá tinha entrado e não sei o que me deu para ir lá hoje. Tinha notado que, além de gente suspeita, outra categoria social frequenta o (por assim dizer) jardim, levando para tal, como salvo-conduto e protecção, um ou mais cães pela trela. Penso que talvez sejam os cães os verdadeiros fruidores do (vá lá) jardim - mas a Câmara governa para pessoas e não para bichos; e, como é óbvio, a existência de tais utentes não é razão suficiente para que o local seja preservado.

A medo, acabei por lá entrar, tão nervoso que quase era atropelado ao atravessar a rua. Que venho eu aqui fazer? Já não tenho idade para aventuras. A falar verdade, nunca tive: será que com este gesto temerário pretendo desforrar-me de uma infância sem história e sem riscos? Não levo cão pela trela nem arma com que me defenda. Conheço-me muito bem e sei que não sou um tipo suspeito. Suspeito é aquele lá ao fundo, agachado num banco: debruça-se sobre quê? Espero que não se aproxime. Ufa, ficou parado, e posso olhar à minha volta: o que vejo são árvores, de folhagem indubitavelmente verde. Disparo a máquina fotográfica que trouxe para guardar comprovativos deste meu intrépido feito. Chego a entusiasmar-me e esqueço mesmo a presença do suspeito; e, quando novamente o procuro com o olhar, verifico que estou sozinho no (digamos) jardim.

Regresso, como de um sonho, à consciência do lugar onde estou. Do outro lado da rua, no passeio, pessoas normais e respeitáveis vão passando. Gostaria de me enganar, mas sinto que me olham de soslaio e me classificam: para elas, sou indiscutivelmente suspeito. Que poderei fazer: sair a correr do jardim, agarrá-las pelos ombros, gritar-lhes, convencê-las de que sou como elas e não há nada de suspeito no meu comportamento?»