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13/12/2021

Belas adormecidas

As plantas que sincronizam o seu ciclo de vida com o do pastoreio ou o da agricultura tendem a depender tanto dessa ajuda como de um clima sem grandes imprevistos. Essas tarefas, quando não intensivas nem regadas a herbicida, arejam o solo, erradicam saudavelmente plantas competidoras e impõem pousios que aliviam o desgaste natural da terra. Mas com a lavoura mecanizada, que revolve os torrões com a agilidade de uma colher na sopa, e com as mudanças no clima, as plantas precisam de maior cautela. A umbelífera que vos mostramos hoje, anual e pequena (não vai além dos 40 cm de altura), tem um truque adicional para lidar com as más notícias do seu habitat. As sementes formam-se antes das colheitas mas, se o tempo não está de feição, se há indícios de que o campo está sob ameaça ou se a competição entre as novas plantas e as já adultas se torna melindrosa para a espécie, então as sementes adormecem. Isso mesmo: enquanto a humanidade se afadiga em atrasar a morte e em promover a natalidade, estas plantas dominam um relógio formidável que adia o começo da germinação, tendo até em conta o benefício que isso possa trazer às plantas-mães.

Turgenia latifolia (L.) Hoffm.


Durante o sono, as sementes mantêm-se viáveis, até que (passados por vezes muitos anos) haja sinais, anunciados sabe-se lá por que meios, de que a probabilidade de um embrião sobreviver aumentou. Enquanto dormem, podem dispersar-se, colonizando depois novos locais, o que talvez justifique a maior incidência de novas espécies entre géneros que dominam este estratagema. Curiosamente, há quem afirme que esta é uma solução para as longas viagens interplanetárias, de mudança dos habitantes da Terra para outros mundos.

As espécies que afinam o seu ciclo com a evolução do ambiente não servem para jardins, por não se vergarem à impaciência dos que anseiam pela floração exuberante em vasos e canteiros. Mas é esta habilidade que favorece, por exemplo, a produção de cereais em grande escala. O banco de sementes que assim se cria assegura que os frutos não germinam todos num mesmo outono de temporais catastróficos, evento que condenaria futuras gerações de plantas.



Há outros indícios de que a Turgenia latifolia, que aprecia olivais em solo calcário, é medrosa mas sabe proteger-se. As flores de pétalas rosadas não têm sépalas mas as umbelas nascem num ninho de ganchos macios, que mais tarde endurecem e ajudam a disseminar os frutos. Percebe-se mal que, sendo assim talentosa e de distribuição vasta pelo centro e sul da Europa, Ásia e norte de África, seja afinal tão rara em Portugal, onde só há registo de uma população, e com escasso número de exemplares.

18/02/2019

Jasmim das ilhas




Jasminum odoratissimum L.
Se o leitor nos visita de vez em quando, ou consulta assiduamente o portal Flora-On, decerto reconhece um jasmim nas fotos anteriores. Bastam-lhe, para isso, as flores, mas anote também as folhas trifoliadas, um pouco coriáceas e de um verde escuro. São detalhes comuns ao Jasminum fruticans, a única espécie (em cerca de duzentas) do género Jasminum que é nativa da Península Ibérica, e por cá amplamente distribuída. Contudo, o parente das Canárias é um arbusto em geral mais alto (pode chegar aos 4 metros de altura) e de copa mais volumosa. Sendo plausível que haja algum parentesco com as espécies continentais, como e com que vantagens ganhou essa estatura ao colonizar as ilhas Canárias?

Pergunta idêntica se fez já relativamente aos dinossauros que, dizem os registos fósseis, terão começado pequenos e só milhões de anos mais tarde atingiram o porte gigante. Os animais terrestres têm de se manter aquecidos (o que, curiosamente, parece ser mais fácil para corpos volumosos), bem alimentados (complicado de assegurar sendo os recursos vegetais ainda escassos, mas mais acessível a bichos grandes de pescoço longo), com um peso que as pernas suportem (obrigando a ossos porosos e a cabeças leves) e confiantes num metabolismo que gaste mais energia a fazer crescer o corpo do que a mantê-lo oxigenado. Quanto às plantas, as limitações são aparentemente menores, mas elas dependem igualmente de um habitat protegido de ventos e tempestades, com solo estável e recheado de nutrientes, e de uma atmosfera propícia. E se, em vez de um substrato pedregoso, seco e pobre, numa região fria, dispõem nas ilhas de clima ameno, de uma orla de zambujal ou de um talude soalheiro à beira-mar com solo nutrido, húmido e bem drenado, por certo não hesitam em aproveitar a sorte e, sem querer, crescem, acedem a mais luz, ampliam a folhagem e, verdejantes e perfumadas, atraem mais polinizadores. Assim nasce uma nova espécie, obrigando a mais uma entrada nas Floras.

Florindo entre Dezembro e Abril, o Jasminum odoratissimum foi descrito por Lineu em 1753 e é uma espécie endémica da ilha da Madeira e das Canárias. As flores, colhidas de manhã cedo, são usadas para aromatizar tisanas; das pétalas retira-se um óleo (não se surpreenda, afinal a planta é da família Oleaceae) muito apreciado em perfumaria.

30/10/2012

Pau enegrecido

Picconia azorica (Tutin) Knobl.


Que a ilha das Flores é um rectângulo com 17 Km de comprimento e 12 Km de largura é um dado objectivo, do qual somos tentados a deduzir que todas as distâncias na ilha são insignificantes, e que só por comodismo habitantes e turistas se deslocam de carro e não a pé. O pedestrianismo é, além do mais, um modo de combater a claustrofobia, fazendo com que um espaço confinado se alargue em lonjuras insuspeitadas. Na realidade, para quem não é adepto de desportos suicidas, as distâncias que os mapas mostram pouca relação têm com aquelas que somos obrigados a percorrer. Subindo à costa oeste da ilha contemplamos lá em baixo, assim o nevoeiro o permita, os campos delimitados a pedra de lava, verdíssimos e geométricos, que anunciam o casario da Fajã Grande. Um pássaro pôr-se-ia lá num breve bater de asas, mas as centenas de metros da falésia quase vertical obrigam-nos, pobres bípedes, a tomar uma estrada que se enrola e desenrola preguiçosamente por uma dezena de quilómetros.

Aproximarmo-nos gradualmente daquilo que começámos por ver ao longe é pretexto para um jogo de adivinhação com regras flexíveis, em que o apostador pode ir corrigindo a aposta e no final ganha sempre. Que árvores são aquelas derramadas pela encosta como um reposteiro espesso? Criptomérias, sem dúvida. Mais adiante uma mata cerrada de incensos. Um ou outro plátano esquecido à beira da estrada. Não haverá, em toda esta exuberância de arvoredo exótico, uma amostra da vegetação autóctone? Sim, há os fetos, alguns deles raros noutras paragens mas aqui improvavelmente comuns, como o feto-do-botão (Woodwardia radicans) e o feto-frisado (Trichomanes speciosum). E há arbustos que gostariam de ser árvores e lutam por um réstia de espaço numa ilha que já foi sua, como a faia-da-terra (Myrica faya) e o pau-branco (Picconia azorica).

Já quase a altitude zero, com uma pastagem e uma estrada a separá-lo do mar, um bosquete de pequenas árvores com folhagem luzidia e copa de muitos e emaranhados ramos atrai-nos a atenção. Não fossem os troncos quase negros e diríamos tratar-se do pau-branco. Há que saltar um muro para confirmar de perto a identificação. Sim, as flores (poucas, porque tardias) não mentem, e os ramos mais recentes exibem a palidez e lisura que caracterizam a espécie. O pau-branco enegreceu e enrugou com a idade, mas não deixou de ser quem era.

Arbusto ou árvore perenifólia com não mais que 8 metros de altura, a Picconia azorica é endémica dos Açores, onde só não ocorre na Graciosa. Uma segunda espécie, Picconia excelsa, da Madeira e das Canárias, partilha o nome pau-branco e completa um género que é exclusivo das ilhas atlânticas. Ambas têm fama de fornecer boa matéria-prima para a marcenaria, o que, nos Açores, terá contribuído para o desaparecimento de povoamentos antigos. Nas Flores, onde são comuns os indivíduos jovens de Picconia azorica, a espécie não está tão ameaçada como poderá estar noutras ilhas; mas árvores com muitas décadas de vida, como estas na Fajã Grande, parecem ser raras.

Ilha das Flores: Fajã Grande com Picconia azorica em primeiro plano

27/03/2012

Margarida farrusca



Há uma crónica do escritor e médico duriense João de Araújo Correia (1899-1985) em que ele censura as senhoras finas suas conterrâneas por não admitirem o vinho do Porto à mesa, preferindo-lhe os licores importados de França. Causa desgosto ao cronista que tais famílias desprezem a produção que faz a fama e o carácter da terra onde vivem e de que, directa ou indirectamente, depende a sua própria prosperidade.

Se do vinho saltarmos para o azeite, facilmente enumeramos uma mão-cheia de razões patrióticas, paisagísticas e até ambientais para nunca deixarmos de usar com abundância o líquido dourado. A elas se acrescentam razões de saúde e de paladar: não há comparação possível entre um bom azeite e as mixórdias genericamente chamadas "óleos alimentares". Portugal é um país de olivais que tomam diversas qualidades quando descemos de norte para sul. Há os olivais à beira-Douro, no Pocinho, que se estendem como a terra prometida à janela do comboio depois de atravessarmos túneis e penedos medonhos. Nos Candeeiros e em Sicó, são os olivais que ocupam as planícies entre os assomos pedregosos de calcário. Quem quer que se passeie pelo país terá o seu olival favorito gravado na memória; e, para que a lista fique menos lacunar, fará o leitor a fineza de evocar o seu e acrescentá-lo mentalmente a este texto.



O aumento do consumo do azeite traz porém um inconveniente, que é a substituição dos olivais tradicionais pelos de produção intensiva. Um olival tradicional é dos melhores mostruários da nossa flora espontânea; os olivais modernos de alta produção são desertos plantados com oliveiras. E os olivais de modelo antigo são mais bonitos, motivo adicional para ilustrarmos com eles esta conversa.

Chamaemelum fuscatum (Brot.) Vasc.


Em chegando o mês de Março, ou até ainda em Fevereiro, há um malmequer que se especializa em pintar de branco a manta dos olivais; é ele o Chamaemelum fuscatum. Dizem certas fontes que o povo lhe chama margaça-de-Inverno ou margaça-fusca; mas, para isso ser crível, o dito povo deveria ser capaz de analisar detalhes morfológicos subtis para distinguir este malmequer de outros muito semelhantes que aparecem nos mesmos habitats, como o Anthemis arvensis. O assunto foi já sobejamente explicado pelos nossos vizinhos, e por isso nos dispensamos de reproduzir a lição. Acrescentamos um detalhe: o Chamaemelum fuscatum também se diferencia do Anthemis arvensis pelas brácteas involucrais debruadas a negro, visíveis na foto da esquerda aí em cima. Embora, como ensina Carlos Aguiar, o epíteto fuscatum diga respeito a um pormenor só visível quando se faz a autópsia da inflorescência, não é grande disparate relacioná-lo com o cálice farruscado desta ervinha pré-primaveril a que decidimos chamar margarida-farrusca.

24/01/2011

Dos carvalhos às oliveiras

Oliveira com Davallia canariensis — Arrimal, Porto de Mós
Ao contrário do que é corrente na indústria imobiliária, em que as habitações novas ficam logo prontas a receber moradores, as árvores levam muitos anos até serem usadas como habitação. Não de gente, claro está, mas de pássaros, insectos e plantas. Não é sinal de decrepitude que uma árvore, além da folhagem que lhe é própria, se recubra de fetos e de líquenes. Quando, nas interacções que estabelece com outras vidas, a árvore se assume como ecossistema em miniatura, é porque atingiu a maturidade. A cabeleira postiça é a coroa de uma existência plenamente realizada.

Qualquer feto que cresça nas árvores é bonito, mas há uns que são mais bonitos do que outros. Sem desprimor para o rústico Polypodium, quase monopolista no negócio de vestir árvores maduras, a Davallia canariensis, operando no mesmo ramo de actividade mas a bem menor escala, é um feto muito mais delicado e fotogénico. Pelo recorte e simetria, as suas frondes fazem lembrar os minuciosos naperons de renda com que as nossas avós enfeitavam cómodas e cristaleiras.

Davallia canariensis (L.) Sm. — Soajo, Arcos de Valdevez
Davallia canariensis (L.) Sm. — Arrimal, Porto de Mós
Conhecida como cabrinha ou feto-dos-carvalhos, a Davallia canariensis, espontânea na Península Ibérica, Marrocos, Canárias e Madeira, é, entre as mais de trinta espécies suas congéneres, a única que ocorre na Europa, distribuindo-se as restantes pela África, Ásia e Austrália. Em Portugal, a cabrinha encontra-se, como epífita ou por vezes agarrada às rochas, em lugares frescos nas províncias litorais a norte do Tejo, com um improvável salto ao Baixo Alentejo. É comum na serra de Sintra e no Alto Minho, mas nas outras paragens faz-se bastante arredia.

A sua presença na serra dos Candeeiros é residual e tem algumas particularidades. Enquanto que em Sintra e no Minho ela prefere morar em carvalhos ou sobreiros, aqui escolheu instalar-se sobre algumas velhas oliveiras, ainda que também frequente dois ou três carvalhos-cerquinhos nas proximidades. Apesar do vigor que exibe, é uma população vulnerável, que desaparecerá de um dia para o outro se alguém mandar abaixo meia dúzia de árvores. Em toda a serra dos Candeeiros talvez não exista outro núcleo de Davallia.

Já fizemos muitas caminhadas pela serra, mas não é a nós que cabe o mérito desta descoberta. Cabe a Francisco Barros, um dos mais activos participantes no BiodDiversity4All. Trata-se de um portal onde cada um pode registar as observações (de pássaros, insectos, plantas, etc.) que vai fazendo nos seus passeios; e é, em suma, uma ferramenta utilíssima para conhecermos melhor o nosso país e para democratizar o gosto pela natureza.

31/12/2010

Passagem

Amieiros e freixos — rio Ferreira, Valongo
Atravessavam uma floresta. Sem feras, que ali não as havia, um ou outro lobo, talvez, javalis. Nenhum tigre lhes saltaria às costas. E no entanto, avançando na penumbra lançada pelas copas fechadas, entre as colunatas dos troncos, todos aqueles homens valentes sentiam-se perpassar por uma ponta de estremecimento, cada qual levando seu próprio tigre no peito.

Marina Colasanti, Um homem, frente e verso ( 23 histórias de um viajante, Global Ed., 2005)

24/12/2009

Jasmineiro-do-monte


Jasminum fruticans L.

O telégrafo deixara de funcionar; ou fora a atmosfera que deixara de funcionar, o que naquelas circunstâncias dava igual. Halípio escreveu uma mensagem com um novo pedido de socorro, colocou-a numa garrafa, selou-a e lançou-a ao mar. A garrafa não se afastou, foi-os seguindo sempre como um cachorrinho tímido, e inclusive chamou outras. Ao vigésimo sexto dia deram com umas boas centenas de garrafas a rodear o barco. Lançaram as redes à água e pescaram algumas. Não eram mensagens de marinheiros que, como eles, houvessem perdido as graças do mar. Eram antes - assegurou-me Halípio baixando a voz - recados do Além: na primeira garrafa que abriram encontraram uma mensagem da mãe do radiotelegrafista, falecida quando este era ainda criança num estúpido acidente doméstico. Na segunda, uma mensagem de um velho amigo de Halípio, desaparecido na guerra, em Moçambique. E por aí fora, sendo que todas as mensagens se dirigiam directamente a cada um dos pescadores presentes no barco. (...)

- Xerto. Era como se o mar estibexe xeio de bojes.

O que querem? Mesmo a falar Halípio Onrado erra a ortografia. Os mortos requeriam nas suas mensagens pequenos favores dos vivos, e a indulgência da sua memória, desculpavam-se por episódios passados, esclareciam outros. Os pescadores estavam tão esfomeados que se alimentaram das mensagens, cozinhando-as com um pouco de água da chuva. Halípio guardou apenas um bilhete da avó, no qual esta lhe transmite a receita dos famosos bolinhos de bacalhau (...). Halípio mostrou-me o bilhete. Um papel amarelo. Tinta azul, um pouco desbotada. Arrancou-mo das mãos antes que eu conseguisse ler o segredo. Os bolinhos são maravilhosos, acreditem: uma receita do outro mundo.


José Eduardo Agualusa, Barroco Tropical (Dom Quixote, 2009)

17/06/2009

Simão Ferreira Sousa


Confluência dos rios Simão e Ferreira, em Valongo

O triplo antropónimo não vem aqui para chamar gente, mas sim porque uma percentagem, ainda que pequena, das águas que formam a porção da bacia do Douro na área metropolitana do Porto poderia com justiça ostentar essa combinação de nomes. O rio Simão, um pequeno curso de água restrito ao concelho de Valongo, junta-se ao rio Ferreira no limite sudeste da cidade. Revitalizado com as águas alheias, o rio Ferreira, que já viajara desde Paços de Ferreira, encontra forças para um ziguezague que rasga as serras de Santa Justa e Pias no sentido norte-sul. O seu destino é o concelho de Gondomar, onde, dois ou três quilómetros antes da meta, confia ao rio Sousa a responsabilidade de transportar a massa de água conjunta até à margem direita do Douro.


Freixos (Fraxinus angustifolia) e eucaliptos (Eucalyptus globulus) nas margens do rio Ferreira

É possível que Valongo seja o concelho do país com mais empreendimentos inacabados, lugares onde nunca morou nem há-de morar gente. Seja por falta de compradores ou por falência dos empreiteiros, essas urbanizações reduzidas a esqueletos, invadidas pela mesma vegetação que fora varrida para dar lugar às novas cidades, ficarão por muitos anos como testemunhas do desperdício e do mau planeamento - até que, por vergonha ou misericórdia, alguém as mande demolir. E consta ainda que Gondomar também dá boas cartas nesse campeonato de cidades-fantasma.

A pulsão de expandir indefinidamente a malha das cidades, nem que seja multiplicando os nados-mortos urbanísticos, faz recear que a médio prazo não sobre nesses concelhos qualquer área significativa livre de construções. E, contudo, o vale do rio Ferreira, entre Valongo e Gondomar, é a peça central de uma mancha verde ininterrupta que abrange as serras de Santa Justa, Pias e Castiçal [por comodidade, ainda que incorrectamente, designo-as colectivamente por serra de Valongo], e se estende também até Paredes. São matos, riachos, encostas e arvoredo perfazendo 25 km^2, uma área igual a três quintos da cidade do Porto; em suma, uma verdadeira floresta urbana no coração da metrópole. O poder político vai ganhando noção do valor destas serras: nos últimos trinta anos, foram várias as tentativas frustradas de aqui criar um parque natural. Em 31 de Julho de 2003, o Conselho de Ministros, reunido com grande pompa no Palácio do Freixo, tomou uma resolução nesse sentido que não teve qualquer resultado prático.

A riqueza botânica e geológica da serra de Valongo está descrita em vários documentos oficiais ou para-oficiais. Afinal de contas, a serra foi integrada na Rede Natura 2000, e a própria Câmara Municipal criou lá o Parque Paleozóico de Valongo. Contudo, se as pedras, os fósseis e os sedimentos estão mais ou menos a salvo da destruição, o mesmo não se passa com as plantas. Um amador de botânica portuense, William Tait, da comunidade britânica radicada na cidade, mandou a Charles Darwin, em 1869, exemplares de uma planta carnívora (Drosophyllum lusitanicum) colhidos na serra de Santa Justa. Se o tentasse fazer hoje, o mais certo é que não a encontrasse, pois a localização das escassas populações remanescentes é segredo ciosamente guardado pela comunidade científica. E outras plantas há, algumas endémicas, cuja existência é igualmente virtual, pois quem passeie pela serra quase só vê eucaliptos.


Vale de Couce, com amieiros (Alnus glutinosa) na margem esquerda do rio Ferreira

A eucaliptização, com os incêndios e a erosão do solo a ela associados, vem causando em Valongo uma perda acelerada de biodiversidade. Mas outros factores nefastos têm pesado na balança: as acácias nas zonas ribeirinhas, a poluição fluvial, e sobretudo a prática desregrada de desportos motorizados. Não há fim-de-semana em que a serra não seja atordoada por numerosos grupos de motociclistas em duas, três ou quatro rodas. Quem por lá passeie tem que conformar-se com o ruído e o pó, e desviar-se prudentemente para dar passagem aos estrepitosos veículos. Nenhuma das plantas que bordejam os larguíssimos caminhos escapa ao atropelamento. E nem aquelas em lugares mais afastados estão a salvo, pois o fluxo de motas e motoretas vai continuamente desbravando novos percursos.

No vale do rio Ferreira, em especial junto à aldeia de Couce, persistem amostras do antigo coberto arbóreo: carvalhos, amieiros, freixos, sobreiros, pilriteiros, salgueiros e até algumas pereiras-bravas. A vegetação arbustiva e herbácea, muito ameaçada, reserva-nos algumas surpresas, como a Silene que ontem aqui mostrámos. E mais haverá para mostrar em próximos números da série.

02/06/2008

Necroturismo (2.ª parte)


Laburnum anagyroides

Sete anos mais novo do que Kensal Green, Highgate foi a segunda necrópole londrina que visitei em princípios de Maio. Estendendo-se por uma colina a leste de Hampstead Heath e confinando a norte com o Parque de Waterlow, é bissectado por Swains Lane, uma alameda íngreme onde desembocam perpendicularmente três ou quatro ruas residenciais de acesso reservado. Nem nessas ruas, nem mais acima, em Highgate Village, parece morar gente pobre. Mas em 1975, quando a companhia (privada) que geria o cemitério decidiu encerrar a metade oeste, a venda de sepulturas já não era lucrativa. Talvez por a cremação se ter já então vulgarizado, nem tão rica vizinhança de potenciais clientes salvou o negócio. Desde 1981, Highgate está a cargo de uma associação de amigos que recuperou o cemitério, organiza visitas guiadas à parte oeste, e mantém a parte leste em funcionamento normal.

Diz quem viu, e há muitos testemunhos na internet a confirmá-lo, que, das duas partes que compõem o cemitério, Highgate West é aquela que mais vale a pena visitar, por ser a mais monumental e misteriosa. Highgate East é uma extensão que só foi inaugurada em 1854, 15 anos depois do cemitério original, e é de presumir que não tenha sido planeada com requinte comparável. Acontece que já visitei Highgate East três vezes - e, por não querer esperar pelas visitas guiadas, nunca entrei em Highgate West. Com a ligeireza que só a ignorância permite, atrevo-me a dizer, contudo, que quem prefira a companhia das árvores à dos monumentos em pedra pouco perde em trocar o oeste pelo leste.


Karl Marx

Na verdade, mesmo entre os que prezam mais o granito esculpido do que a vida vegetal há quem se fique pelo leste, por ser lá o túmulo de um barbudo que moldou a história do século XX já depois de morto - e que, ainda hoje, perante uma audiência de defuntos onde é escassa ou nula a representação proletária, não se cansa de exortar os trabalhadores de todo o mundo a unirem-se.


Fraxinus excelsior

A ruína de muitas das esculturas e mausoléus não foi o único resultado da falta de manutenção de Highgate durante a segunda metade de novecentos: ela permitiu também o desenvolvimento de um autêntico bosque natural onde a discreta presença das pedras tumulares mal chega a recordar-nos que estamos num cemitério. Os freixos que se perfilam nas costas de Karl Marx formam uma mata espontânea tão cerrada como os nossos eucaliptais, com a diferença de abrigarem, a seus pés, uma grande diversidade de plantas herbáceas.


Anthriscus sylvestris

Por altura da minha visita, os caminhos eram marginados pelo branco de uma umbelífera (Anthriscus sylvestris) a que nós chamamos erva-cicutária ou cicuta-dos-bosques (embora ela não seja venenosa nem deva ser confundida com a verdadeira cicuta, Conium maculatum), mas a que os ingleses preferem chamar cow parsley. Combatendo a hegemonia branca da salsa-das-vacas, via-se o azul dos miosótis e dos omnipresentes bluebells. Outra árvore que em Highgate tirou partido da falta de vigilância para se multiplicar livremente foi o Acer pseudoplatanus. Encontram-se ainda cerejeiras (Prunus sp.), carvalhos e, nas partes mais compostas, bonitas árvores ornamentais como laburnos, cedros e tílias. A riqueza e importância deste habitat semi-natural levaram-no a ser declarado, em 1988, pelas autoridades londrinas, como sítio de importância metropolitana para a conservação da natureza.

21/04/2008

As árvores não sabem nadar


Choupos - Abreiro, rio Tua

aqui falámos da barragem com que o governo e a EDP querem destruir irreversivelmente o vale e a linha do Tua. Os estragos do empreendimento, contudo, não se ficarão por aí. A grande bolha de água estagnada alastrará ainda a afluentes do Tua como o rio Tinhela; na margem esquerda do Tinhela, perto da junção dos dois rios, situam-se as Caldas de Carlão, que foram modernizadas há poucos anos e serão, também elas, inundadas pelas águas da barragem. Do rio Tinhela, e da galeria de freixos que o acompanha [ver abaixo], ficarão apenas a memória e algumas fotos: as árvores, apesar de não serem inertes como são os desenhos gravados na pedra, morrerão por não saberem nadar.

«As gravuras não sabem nadar» foi o slogan criado em Vila Nova de Foz Côa, nos idos de 1995, pelos opositores à construção da barragem que iria submergir o valioso núcleo de arte rupestre então recém-descoberto no vale do Côa. A palavra de ordem propagou-se pelo país como incêndio em mato ressequido: marcou uma fronteira clara entre dois campos, e foi bandeira de António Guterres na campanha eleitoral de 95. Empossado como primeiro-ministro em Outubro, anunciou de imediato que a barragem não se faria. As gravuras estavam salvas do afogamento.

Agora que o slogan entrou na adolescência, o pequeno mundo português está menos permeável ao idealismo. Embora se anunciem para os próximos anos afogamentos ainda mais graves, pela magnitude dos prejuízos patrimoniais e ambientais, do que o das gravuras do Côa, de pouco adianta reciclar a frase e tentar insuflar-lhe nova vida mediática. O beco sem saída a que chegámos pode traduzir-se numa pergunta: em quem devemos votar para termos um governo que não construa as barragens do Tua e do Sabor? Ou, numa formulação mais geral: dos dois partidos que nos têm governado, qual deles defende que já temos quanto basta de betão e de asfalto, e que é urgente pormos termo à depredação do território?

A adopção de chavões ambientalistas pelo discurso político é um verniz que estala logo ao primeiro embate, deixando a descoberto as velhas ideias desenvolvimentistas da nossa perdição. Mas, mesmo que as escolhas políticas actuais pareçam ser entre uma coisa e a sua igual, o alheamento não é uma atitude sensata, e da desistência não podemos esperar qualquer mudança. Pode ser que o clamor daqueles que não se sentem representados no nosso mainstream político obrigue algum dia os partidos a renovarem-se e a diferenciarem-se.

É por isso - e também por acreditarmos que uma barragem na foz do Tua é um erro monstruoso - que apoiamos a petição lançada pelo Movimento Cívico pela Linha do Tua. Não falta muito para as assinaturas atingirem as 4000, garantindo-se assim que a petição é discutida no plenário da Assembleia da República.



Freixos - rio Tinhela

16/02/2008

Jasminum polyanthum


.....Manhã clara

.....Casas brancas
.....Nuvem branca
.....Pombos brancos
.....Jasmins

.....Tomo nas mãos a primeira folha de papel
.....Que se pode escrever de tão claro?


.....Cecília Meireles (1961)

29/01/2008

Ao fundo das escadas, à direita



Fonte Fria / Fraxinus pennsylvanica

Não é inteiramente exacto que todas as árvores monumentais do Buçaco, sofrendo de incurável timidez, se escondam atrás das companheiras logo que algum fotógrafo ameace puxar da máquina. A Manuela já aqui mostrara o «Cedro de São José», que deixa ver de si o suficiente para dar irrefutável testemunho do seu gigantismo. Mas é mesmo verdade que, tirando aquelas árvores nos jardins do Palace Hotel (como a famosa Araucaria bidwillii), poucas destas gigantes se deixam acomodar num único cliché. Uma excepção é este freixo-da-Pensilvânia que se encontra ao fundo da chamada Fonte Fria, escadaria com muitos lanços bissectada por um fio de água que escorre de patamar em patamar, aqui e ali alargando-se em tanques ornamentais. A água desagua num lago quase circular, morada de um casal de cisnes pretos; o lago, um dos dois existentes no vale dos fetos, tem diâmetro suficiente para que, do outro lado, se possa fotografar o freixo na sua inteireza (3.ª foto).

E essa inteireza é de uma escala esmagadora, como comprovam as minúsculas figuras humanas na 2.ª foto. Esta árvore ultrapassa de longe as medidas recomendadas para a sua espécie: J. L. Farrar, no livro Trees of the Northern United States and Canada (1995), informa que o Fraxinus pennsylvanica é uma árvore de pequeno ou médio porte, atingindo alturas máximas de 25 metros. Como a distinção entre freixos é problemática, podia pôr-se a hipótese de a árvore estar mal identificada; mas custaria a crer que dois reputados especialistas como Jorge Paiva ou Francisco Coimbra estivessem ambos enganados. Devemos pois aceitar que as condições peculiares do Buçaco favoreceram este anormal crescimento. É aliás comum, em matas densas, que a competição pela luz leve as árvores a avantajarem-se em altura.

25/01/2008

E mais não coube


Dicksonia antarctica

Para quem goste de fotografar árvores, uma visita à Mata do Buçaco pode ser uma grande frustração. Não faltam motivos para fotografar, pois são muitas as árvores que nos enchem o olho; mas é raro encontrar alguma que se preste a um bom enquadramento. Recuamos para que uma dessas gigantes nos caiba na foto - e logo uma cortina de outras árvores se interpõe no campo de visão e impossibilita o disparo. Mas é uma lição prática de humildade: a experiência visual de uma mata luxuriante não se deixa reduzir à bidimensionalidade estática de uma foto.

Deixando as árvores em paz na sua inacessível altivez, fica ainda muita coisa cá em baixo ao alcance da objectiva; por exemplo o vale dos fetos, que se estende por muitas centenas de metros ligando dois pequenos lagos e acompanhando o curso cantante de um riacho. Com a popularização dos dinossauros, toda a gente viu já imagens virtuais de parques jurássicos onde os fetos arbóreos compõem a vegetação dominante. Por isso não é surpresa que essas plantas sejam das mais primitivas à face da Terra. Contudo, a maioria dos fetos arbóreos actuais, como os dos géneros Dicksonia e Cyathea, são o resultado de uma evolução posterior e, ao contrário do que sucede com a Ginkgo biloba, não têm parentes próximos nos registos fósseis; é como se fossem réplicas modernas de uma tecnologia antiga.

Originário da Austrália e da Tasmânia, este feto arbóreo que se domiciliou no Buçaco prefere locais frescos e húmidos, e é um dos mais rústicos da sua categoria, sendo mesmo cultivado ao ar livre no sul de Inglaterra e na costa oeste da Irlanda.


Phillyrea latifolia

Uma outra oportunidade fotográfica no Buçaco é-nos dada pelos miradouros na parte alta da mata. Seguindo os passos do calvário, mas sem o madeiro ao ombro, subimos até à Cruz Alta, de onde a vista abrange todo o tapete verde que envolve o Palace Hotel e se desenrola até ao Luso: formado pelas copas cerradas das coníferas, é um verde a que o Inverno não tira espessura nem viço. Uma vez lá em cima, porém, não são só as coníferas a chamar-nos a atenção. Há umas pequenas árvores folhosas, também elas perenifólias, que pelo retorcido dos troncos denunciam uma idade provecta: são os maiores exemplares de adernos (Phillyrea latifolia) que alguma vez vimos no nosso país. E, por uma vez, puseram-se a jeito para a foto, debruçando-se sem medo sobre a encosta.