domingo, 16 de novembro de 2025

A ACADEMIA FRANCESA (À L'IMMORTALITÉ)

Li recentemente Des siècles d'immortalité- L'Académie française 1635-..., de Hélène Carrère d'Encausse, editado em 2011.

Sendo a mais recente obra publicada sobre a Academia Francesa, este livro constitui um valioso instrumento de trabalho, só possível devido à dedicação de Hélène Carrère d'Encausse (1929-2023), que foi titular da 14ª Cadeira da Academia (1990-2023) e seu Secretário perpétuo desde 1999/2000 até à sua morte.

A autora procede à descrição dos acontecimentos que conduziram à criação da Academia em 1635, pelo Cardeal-Duque de Richelieu e relata-nos a história da venerável instituição, que atravessou com majestosa dignidade (o termo "majestosa" é apropriado, já que o Rei de França era o protector oficial da Academia, tradição prosseguida com os presidentes depois da proclamação da República) tempos muito difíceis, aos quais sobreviveu até aos nossos dias. 

Cardeal-Duque de Richelieu    

Nem sempre a relação com o protector foi pacífica, mas a Academia soube manter tradicionalmente a sua independência (usando por vezes engenhosos expedientes), raras vezes se submetendo, apenas  in extremis, à vontade dos monarcas ou até dos presidentes.

No início, tiveram nela assento preferencialmente os nobres e os clérigos, mas a Academia abriu-se pouco a pouco aos novos tempos, com o Século das Luzes, admitindo Montesquieu (1728), Voltaire (1746) e D'Alembert (1754): foi a entrada dos "filósofos" naquele templo, especialmente consagrado, segundo a vontade de Richelieu, à preservação da língua francesa.

Um certo "progressismo" na Academia com o chamado "reino dos filósofos" não impediu todavia que ela viesse a sofrer as consequências do radicalismo da Revolução Francesa. Expulsa do Louvre, onde estava sediada desde Luís XIV, depois das reuniões iniciais em salões particulares, a Academia a acabou por ser extinta (bem como as demais academias) pela Convenção, em 8 de Agosto de1793. Deve-se ao Abade Morellet a odisseia de ter conseguido salvar uma parte do seu espólio literário. 

Não gostava a Convenção da Academia Francesa, e das outras academias, tidas por demasiado próximas do poder real, embora não ignorasse a necessidade de se estabelecer um "plano de organização de uma sociedade destinada ao progresso das Ciências e das Artes". Mas a palavra Letras foi omissa. Escreve a autora: «La Constitution de l'an III, datée du 3 fructidor (22 août 1795), reprit, dans son article 298, l'idée de cette société, et le 3 brumaire an IV (25 octobre 1795), la Convention, en se séparant, entendu dans une de ses dernières séances le rapport de Daunou: "Nous avons emprunté de Talleyrand et Condorcet le plan d'un Institut national, idée grande et majestueuse dont l'exécution doit effacer en splendeur toutes les académies des rois."». Mas como se anteviu na altura, as Letras foram o parente pobre do "monde savant".

Os começos do Instituto confundem-se com os do Directório. A história do restabelecimento das academias no Instituto é detalhadamente descrita no livro com um pormenor que não cabe neste texto. A "Academia Francesa" ficou numa classe secundária do Instituto. Os académicos que restavam tentaram interessar o general Bonaparte, e depois o imperador Napoleão, no restabelecimento de pleno direito da Academia, mas debalde. Por ter reorganizado o Institut em 1803, Napoleão manteve-se avesso à ideia de uma "Academia" autónoma que desautorizaria o seu próprio projecto inicial. Só com a restauração da monarquia, a Academia Francesa voltou a existir de pleno direito com Luís XVIII, em 21 de Março de 1816.

[Abro um parêntese para referir que o Institut de France, na sequência da reorganização napoleónica, conta hoje cinco academias: Academia Francesa, Academia das Inscrições e Belas-Letras, Academia das Ciências, Academia das Belas Artes e Academia das Ciências Morais e Políticas.]

Hélène Carrère d'Encausse


A Academia atravessou, sem problemas significativos, a Restauração, a Monarquia de Julho, a Segunda República, o Segundo Império e a Terceira República. Foi a grande época do Romantismo, com a admissão de Victor Hugo para a 14ª Cadeira em 1841. Também entraram na Academia os presidentes da República Adolphe Thiers (1833) e Raymond Poincaré (1909) e especialmente os marechais de França: Hubert Lyautey (1912), Joseph Joffre (1918), Ferdinand Foch (1918), Philippe Pétain (1929) e Franchet d'Espèray (1934). E Maxime Weigand (que era apenas general), em 1931. Entre os civis, contam-se Pierre Loti (1891), Henri Bergson (1914), Georges Clemenceau (1918), Paul Valéry (1925), Abel Hermant (1927), Abel Bonnard (1932), François Mauriac (1933), Georges Duhamel (1935), André Maurois (1938), Charles Maurras (1938).

A derrota da França na Segunda Guerra Mundial abriu uma nova crise na Academia. O período do Regime de Vichy foi uma época difícil, tanto mais porque o marechal Pétain era académico e, como "chefe do Estado", era o protector natural da instituição. Todavia, o marechal não se imiscuiu nos assuntos internos da Academia.

No pós-guerra a existência da Academia voltou a estar em perigo. Louis Aragon e Elsa Triolet haviam fundado o Comité national des écrivains (CNE), dominado pelos comunistas e mesmo o Front national, criado pelo Partido Comunista Francês em 1941, havia atraído muitos intelectuais não comunistas. O próprio François Mauriac tinha-se juntado ao CNE e ao Front national.

«Dans L'Aube, un article virulent réclame, en ces jours de liesse, "la dissolution de l'Académie". C'est un propos que l'on entend beaucoup au sein du CNE. L'été 1944 où commença l'épuration est marqué par la volonté des têtes d'affiche du nouveau pouvoir intellectuel, largement communistes, de faire table rase des gloires établies et des institutions; l'Académie française est par là doublement visée. Elle se sait vulnérable, compte tenu de la place qu'ont occupé dans l'État français deux de ses membres: le maréchal Pétain et Abel Bonnard. Le général Weigand, bien qu'il est été arrêté par les Allemands lors de l'invasion de la zone libre, et déporté, fait aussi partie, en ces temps où le statut de collaborateur est largement accordé, de la cohorte des académiciens que les nouvelles instances dénoncent avec fureur et pour qui elles exigent un châtiment.» (pp. 295-296)

Em 31 de Agosto de 1944, a Academia realiza uma sessão com a presença de apenas onze membros, entre os quais Paul Valéry e François Mauriac. Jêrome Tharaud, então director, pronuncia um discurso sobre a situação e fica estabelecido: "L'Académie procède à l'examen du cas de ses membres qui ont manqué au devoir national". Na sessão de 7 de Setembro é confirmado que "Messieurs Abel Bonnard et Abel Hermant doivent s'abstenir désormais de paraître aux séances". Uma decisão mesmo assim excepcional, já que os estatutos da Academia não prevêem a destituição dos seus membros. Quanto a Chrales Maurras, a Academia decide, em 14 de Setembro, aguardar o resultado das investigações a seu respeito. Por sugestão de Paul Valéry, é resolvido "ne pas prendre en considération les candidatures de personnes dont l'attitude et les agissements pendant l'occupation étrangère n'ont pas été conformes aux sentiments et aux intérêts nationaux". Foi a primeira vez na sua história que a Academia decidiu aplicar previamente um critério político às candidaturas. É verdade que em 1816 o rei de França, restaurando plenamente a instituição, tinha expulso e nomeado membros com um critério semelhante, mas a Academia tinha considerado esse procedimento um atentado à sua independência. Em 5 de Outubro, François Mauriac escreveu em "Le Figaro" que era necessário não "bousculler la vieille dame" do Quai Conti, e ainda menos suprimi-la. E sugeriu, para insuflar sangue novo, os nomes de Paulhan, Bernanos, Éluard, Malraux, Aragon. Os académicos recearam então uma interferência do general De Gaulle, que não se verificaria. Também se colocou a questão de saber se o presidente do Governo Provisório, ainda não reconhecido por algumas potências aliadas e amigas, poderia ser considerado o chefe do Estado, e logo o protector da Academia.

Só em 1 de Fevereiro de 1945, depois da condenação do fundador da Action française, em 27 de Janeiro, à pena de prisão perpétua e à indignidade nacional, a Academia decidiu ocupar-se do assunto. Foi uma questão que dividiu os académicos, mas sendo juridicamente estabelecido que o crime de um novo género, a "indignidade nacional" era uma pena infamante que comportava a destituição e a exclusão dos condenados de todas as funções, empregos, cargos públicos e corpos constituídos, a Academia já nada tinha a debater. A cadeira de Maurras foi declarada vaga durante quatro semanas, período conforme ao artigo 5º do regulamento de 1752 que estipulava que a eleição não poderia ter lugar menos de trinta dias "après que le décès de celui qu'il s'agit de remplacer aura été connu de l'Académie...". A vacatura deveria ter sido declarada em 8 de Março mas a Academia só preencheu a cadeira de Charles Maurras após a sua morte.

O processo do marechal Pétain, com a sua condenação à morte e à indignidade nacional em 15 de Agosto de 1945, pena comutada em prisão perpétua por De Gaulle, seguiu o mesmo procedimento por parte da Academia. Declarada vaga a sua cadeira, ela só foi preenchida após a sua morte. No caso de Abel Bonnard, condenado à morte por contumácia, mas exilado no estrangeiro, e de Abel Hermant, também condenado e vivendo em difícil situação material e ao qual a Academia prestava discretamente apoio, as suas vagas foram preenchidas em 1946, ainda em vida dos seus ex-titulares. Mas nunca as palavras irradiação ou exclusão foram pronunciadas de forma oficial relativamente a Pétain e a Maurras.

Tendo o marechal Pétain morrido em 1951, foi substituído em 1952 pelo embaixador André François-Poncet. Após a morte de Maurras, em 1952, foi eleito para o seu lugar o duque de Lévis-Mirepoix.

Em 14 de Fevereiro de 1946 registou-se um facto quase inédito na história da Academia Francesa: Georges Duhamel, Secretário perpétuo demitiu-se, devido à fadiga do cargo no período excepcional do fim da guerra. Não foi um precedente absoluto, já que Jean-Baptiste Mirabaud se demitira em 1755, devido a comportamento que indignara a Academia, e François-Juste Raynouard, em 1826, por graves razões de saúde. Mas a demissão de um Secretário perpétuo é inabitual e contrária aos usos da Academia, para que a palavra perpetuidade não se esvazie de sentido.

Mas a Academia Francesa sobreviveu a mais esta crise. E novos e prestigiados nomes foram entrando: em 1946, com 78 anos, ingressou Paul Claudel, que escrevera uma "Ode du maréchal Pétain" que todos resolveram ignorar. Mas não André Gide, apesar do empenho de François Mauriac. Sabendo do interesse do general De Gaulle quanto à admissão de André Gide, Duhamel, que já não era então Secretário perpétuo, foi visitá-lo e disse: "Nous avons un fauteil pour vous." E Gide respondeu: "Non, Duhamel... Je ne dis pas que si l'on m'avait offert le siège de Valéry... mais, puisque le siège de Valéry a été donné, alors je renonce."

«Pour Duhamel, Gide l'avait joué, tout comme il trompait chacun de ses interlocuteurs de l'Académie: "Il préparait le prix Nobel... une élection à l'Académie aurait sûrement compromis la machination Nobel!" Et de conclure à la "perfidie" qui, selon lui, caractérisait Gide.» (p. 321) 

Em 1946 foram ainda eleitos Étienne Gilson, para a cadeira de Abel Hermant e Jules Romain para a cadeira de Abel Bonnard. Em 1951 foi eleito o general (postumamente marechal) De Lattre de Tassigny, que tendo falecido em 1952 não chegou a tomar posse da cadeira. Em 1955 ingressou Jean Cocteau. Em 1959, Henri Troyat.

Com a V República, entraram Henry de Montherlant (1960), René Clair (1960), o cardeal Eugène Tisserant (1961), Maurice Druon (1966). 

O Maio de 1968 voltou a perturbar a vida da Academia. Ouviram-se gritos: "À mort, l'Académie!". Mas a velha dama do Quai Conti permanece.

Em 1980 produziu-se a "revolução Yourcenar". Há muito tempo que Jean d'Ormesson (eleito em 1973) lutava pela admissão de Marguerite Yourcenar. Desafiando todos os preconceitos, fez desse caso o seu "cavalo de batalha". E a autora célebre de Mémoires d'Hadrien foi a primeira mulher a entrar na Academia Francesa. Jean d'Ormesson, que a recebeu sob a Cúpula, dirigindo-se à sua confrade pronunciou pela primeira vez a palavra Madame.

Em 1983 houve a evolução da etnicidade, com a eleição do poeta senegalês Léopold Sedar Senghor, inventor do termo negritude, admitido após algumas hesitações. 

Nos últimos anos, até à data da publicação deste livro (2011), mencionamos alguns dos nomes mais conhecidos que foram admitidos na Academia:  Paul Morand (1968) [após muitas tentativas e com o agrément final do general De Gaulle que sempre se opusera ao seu ingresso], Eugène Ionesco (1970), Julien Green (1971), o cardeal Jean Daniélou (1972), Claude Lévi-Strauss (1973), Félicien Marceau (1975), Alain Peyrefitte (1977), Georges Dumézil (1978), Alain Decaux (1979), Fernand Braudel (1984), Georges Duby (1987), Jacqueline de Romilly (1988), Hélène Carrère d'Encausse (1990) [a autora deste livro], o cardeal Jean-Marie Lustiger (1995), Marc Fumaroli (1995), Angelo Rinaldi (2001), Valéry Giscard d'Estaing (2003), Alain Robbe-Grillet (2004), René Girard (2005), Dominique Fernandez (2007), Amin Maalouf (2011).

A Academia Francesa prossegue na sua trajectória, sempre ocupada com o Dictionnaire (que desde 1694 já conta 8 edições, a nona está a ser publicada em fascículos), uma das suas missões, com rumo à Imortalidade. 

Hélène Carrère d'Encausse foi eleita Secretário perpétuo em 1999, assumindo funções em 1 de Janeiro de 2000. Manteve-se no lugar, perpetuamente, até à sua morte em 5 de Agosto de 2023, com 94 anos. Sucedeu a Maurice Druon. Era filha de Georges Zourabichvili e de Nathalie von Pelken e é mãe de Emmanuel Carrère, Nathalie Carrère e Marina Carrère d'Encausse. Foi casada com Louis Edouard Carrère d'Encausse.

O livro inclui em anexo os Estatutos e Regulamentos, os Usos e Costumes e os Prémios e Mecenatos da Academia. E também os titulares das 40 cadeiras desde a sua fundação e a lista dos Secretários perpétuos, além da Bibliografia sumária.

 

 


sábado, 8 de novembro de 2025

UM JOVEM PORTUGUÊS NA CORTE DE PEDRO, O GRANDE

O investigador norte-americano William P. Rougle publicou em 1983 António Manuel de Vieira na Corte Russa no Século XVIII, sobre a figura de um português que se notabilizou junto do Czar Pedro I, da Rússia.

António Manuel de Vieira, que foi o primeiro Comissário de Polícia de Pedro I, e um dos seus grandes amigos, é mais conhecido na Rússia do que em Portugal, embora a sua vida tenha sido quase totalmente esquecida, nas últimas décadas, pelos historiadores soviéticos e ocidentais. 

A principal fonte e o mais sério dos biógrafos de António de Vieira foi o historiador russo N. S. Shubinsky, que publicou, em 1892, alguns relatos sobre a sua vida em Istorichesky vestnik. Em 1893, este estudo foi incluído no volume Istoricheskie ocherki i raskazy (Ensaios e estudos históricos), que teve quatro edições em dez anos.

As fontes, quer russas quer ocidentais, não são coincidentes quanto ao local e data de nascimento de Vieira. Para uns nasceu em Portugal, natural da província do Minho, para outros em Amesterdão. Até o julgaram napolitano. Parece prevalecer a tese que sustenta que nasceu em 1682, em Amesterdão, filho de um judeu português de poucos meios. Mas sabe-se que Pedro, o Grande o levou para a Rússia quando ele tinha quinze anos, aquando da sua primeira viagem à Europa. 

Escreve Shubinsky (Istoricheskie ocherki i raskazy ): «Enquanto comandante do navio, Pedro I deu-se conta dum jovem marinheiro, ainda quase um rapaz, com traços faciais de judeu, bastante bonito e bem construído. Movia-se no cordame e ajustava as velas com notável destreza, e em geral executava todas as suas tarefas rapidamente e com eficiência. Terminadas as manobras, o Czar mandou-o chamar, louvou a sua graça, deu-lhe um taler e perguntou-lhe quem era e donde era. O marinheiro respondeu-lhe rapidamente que o seu nome era Anton Divier, que era filho de um judeu português que tinha emirado para a Holanda e se convertera aí ao cristianismo, e que o seu pai morrera deixando-o sem meios financeiros e que se tinha tornado marinheiro por necessidade, uma vez que não tinha oportunidade de encontrar uma ocupação mais fácil. O Imperador gostou de tal maneira das respostas inteligentes do rapaz e da sua agradável aparência, que lhe sugeriu que entrasse ao seu serviço, prometendo bom cuidado dele se o servisse com honestidade e dedicação.» (p. 18)

Nesta sua primeira viagem à Europa, Pedro I visitou não só Amesterdão mas também Londres. Daí uma discrepância quanto ao encontro do rapaz com o Czar. Escreve o autor: «Em Julho de 1724, o abade português Tomás da Silva de Avelar, depois de um mês e meio em Moscovo onde como emissário de D. João V esteve presente na coroação de Isabel I, viajou para São Petersburgo onde foi amavelmente recebido por Pedro I e António de Vieira. Numa carta escrita de Dantzig datada de 26 de Setembro de 1724 para Marco António de Azevedo Coutinho em Londres, lê-se: "... em Petresbourg fui logo visitar o nosso famoso António Manuel Vieira, que o Czar trouxe comsigo de Inglaterra achado lá na marinha em pobre estado, e condição..." (p. 21) [Alguma coisa não confere neste texto. Isabel I foi coroada em 1742 (deve ser troca de 1724 em vez de 1742) e Pedro I já tinha morrido, obviamente.]

Existem outras versões sobre o surgimento de Vieira, de quem sabemos pouco durante os primeiros anos em que esteve ao serviço do Czar. Escreve Gelbig (Russkie izbrannik) que Pedro I o deu ao serviço de Alexandre Danilovitch Menshikov, como mensageiro, e só mais tarde o utilizou como pajem ao seu serviço pessoal. 

Os serviços de Vieira agradaram ao imperador que, sendo ele já capitão de cavalaria, em 1708 o promoveu ao posto de major. Em 1711, foi promovido, juntamente com Pavel Yaguzhinsky, a Ajudante-General, posto especialmente criado para eles. 

O seu trabalho pusera-o em contacto íntimo com a família Menshikov, tendo-se desenvolvido uma relação íntima entre Vieira e a irmã mais velha de Menshikov, Anna Danilovna. A situação desagradou a Menshikov (um rapaz que Pedro I encontrara nos estábulos, se tornara seu amigo pessoal e acabaria por ser nomeado príncipe e marechal do Império), que tentou impedir o casamento quando a irmã ficou grávida, tendo fustigado Vieira. Este queixou-se ao Czar que determinou que o casamento se efectuasse no prazo de três dias. 

Segundo Shubinsky, a decisão de casar foi motivada pelo facto de Vieira pretender melhorar a sua posição social de modo a poder mais rapidamente ser aceite pela sociedade da Corte. Não ousando casar dentro da nobreza russa, devido à sua ascendência judaica, Vieira fixou a sua atenção na nova aristocracia,  à qual se pertencia não por nascimento mas por serviço ao Czar.

Em 1713, Pedro I mandou Vieira para Revel (hoje Tallin) para coordenar a construção do porto. Depois de estadas em Inglaterra e na Dinamarca regressou à Rússia em 1716, continuando a servir o Czar como Ajudante-General, e depois como primeiro Comissário de Polícia em São Petersburgo, em 1718. As instruções cometidas por Pedro I a Vieira encontram-se devidamente discriminadas no livro. E também a forma, por vezes muito severa, como foram aplicadas por Vieira. 

Mais do que Comissário de Polícia, Vieira foi o grande fiscal das construções da cidade e da manutenção não só da ordem mas igualmente da limpeza, da utilização das estradas e das pontes, e também da prevenção dos incêndios, da iluminação pública, do controlo das edificações.

«Como Comissário da Polícia, Vieira informava o Czar diariamente, servindo deste modo de intermediário entre ele e os outros funcionários. Por outro lado, Pedro I interessou-se activamente pelo trabalho de Vieira e tinha o cuidado de verificar se as suas ordens eram cumpridas com eficiência.» (p. 51)

«O facto de Vieira ser uma pessoa chegada a Pedro I permitiu-lhe ganhar a afeição da família real, e cedo se tornou um homem de confiança da mulher de Pedro I e futura governadora da Rússia (1725-1727), a qual, segundo Shubinsky, "apreciava muito a bonomia do português que a entretinha com as suas piadas e histórias inesgotáveis". Sempre que Catarina não se encontrava em São Petersburgo, era confiado a Vieira o cargo de olhar pelos estudos e saúde de suas filhas (Anna, Isabel e Natália Petrovna) e enteados (Pedro e Natália Alekseevitch), tal como podemos ver pelas notas semanais que Vieira lhe enviava. O apreço de Catarina por Vieira estendia-se também à família deste. A sua única filha N. N. Antonovna era uma ajudante e dama de honor de Catarina I, e em 1722 o seu filho Pedro Antonovitch, com dez anos de idade, foi nomeado pajem da filha mais velha da Czarina, Anna Petrovna.» (p. 52)

Vieira foi promovido a Brigadeiro a 16 de Janeiro de 1721 e a Major-General a 6 de Janeiro de 1725, vinte e dois dias antes da morte de Pedro I. Catarina I, que lhe sucedeu, querendo expressar o afecto e gratidão por António de Vieira, agraciou-o com a cobiçada Ordem de Santo Alexandre Nevsky, no dia da sua criação, em 21 de Maio de 1725. Em Fevereiro de 1726 foi designado para o Senado e a 24 de Outubro de 1726 foi feito Conde. Em Dezembro desse mesmo ano, Catarina I promoveu-o a Tenente-General, a segunda patente mais alta do exército russo.

Apesar de serem (forçadamente) cunhados, a relações de Vieira com o Príncipe Menshikov nunca foram amistosas, apesar de manterem relações de trabalho. E deterioraram-se após o episódio da Curlândia que aqui não especificaremos.

«Nos fins de Janeiro de 1727, Catarina I adoeceu gravemente o que levou as várias facções da Corte a iniciarem a sua luta no sentido de impor o candidato que lhe iria suceder.

Os favoritos incluíam as duas filhas de Catarina, Anna e Isabel, e o neto de Pedro, o Grande, Pedro Alekseevitch, de onze anos de idade.

O trono por direito pertencia ao Grão-Duque Pedro Alekseevitch, que era apoiado, portanto, pela velha aristocracia para além do poderoso embaixador austríaco, Conde Rabutin, que actuava no interesse do Imperador Carlos VI da Áustria, tio do Grão-Duque por casamento. No entanto, opunham-se à sua candidatura a maioria daqueles que, em 1718, tinham ajudado Pedro, o Grande a obter a sentença de morte para o seu filho Aleksei, o pai do Grão-Duque. Entre estes, contavam-se o Príncipe Menshikov, Pedro Tolstoi, António de Vieira, Pavel Yaguzhinsky, Grigori Skornyakov-Pisarev e Ivan Buturlin, para só mencionar algumas das figuras mais conhecidas. Receavam eles que, uma vez no poder, o jovem Grão-Duque se vingasse de todos aqueles que tinham conspirado contra o seu pai.» (pp. 65-66)

Por sugestão do embaixador dinamarquês, Menshikov mudou de opinião propondo a Catarina (sua ex-amante) que a sua filha Maria se casasse com o Grão Duque, ao que aquela em princípio acedeu. O Conde Tolstoi e outros notáveis resolveram então conspirar contra essa solução, aliciando para o caso Vieira logo que este regressou da Curlândia. Tendo a saúde de Catarina piorado, estando a morte iminente, Menshikov conseguiu, em 16 de Abril de 1727, obter a assinatura da soberana num documento em que Pedro era declarado como sucessor e a filha daquele, Maria, como sua noiva.

Naquele dia, e na cerimónia solene a que assistia toda a Corte, Vieira estaria embriagado. Menshikov aproveitou a circunstância para o mandar prender por crime de lesa-majestade, por se rir, dizer piadas e ter o Grão-Duque sentado nos joelhos, etc. Foi constituída uma comissão para averiguar dos factos, a que Vieira respondeu, tendo Menshikov obtido ainda de Catarina a autoridade necessária para "interrogar" Vieira para que este denunciasse os seus cúmplices, já que era suposto existir uma conspiração. Após ter sido chicoteado, Vieira indicou os nomes dos cúmplices a tempo de Catarina, horas antes de morrer, a 6 de Maio de 1727, ter aceite a condenação de Vieira.

«É este o texto do ukaz: "Retirar a Devier e Tolstoi os seus títulos, honras e terras e exilá-los: Devier para a Sibéria, Tolstoi e o seu filho para Solovki; retirar a Baturin os seus títulos e exilá-lo para uma região distante; retirar a Skornyakov-Pisarev os seus títulos, honras e terras, chicoteá-lo e exilá-lo; retirar a Naryskin os títulos e deportá-lo; transferir Ushakov para um regimento conveniente; afastar o Príncipe I. Dolgorukov da Corte, despromovê-lo e alistá-lo num batalhão." Segundo Shubinsky, Menshikov acrescentou um post-scriptum ao ukaz, para que Vieira se recordasse dele: Devier para ser chicoteado antes de ser exilado.» (p. 70)

Vieira foi enviado para a região de Yakutsk. Menshikov estendeu o seu rigor à própria irmã, que era mulher de Vieira, obrigando-a a ir viver no campo com os três filhos. 

Quando Menshikov caiu, por seu turno, em desgraça, em 1727, e foi exilado para a Sibéria, a sua queda não melhorou a situação de Vieira mas um pouco a de sua mulher que, por decreto de Pedro II, foi autorizada a viver numa das suas melhores propriedades. Depois da morte de Pedro II, em 1729, e da ascensão de Anna Ivanovna e, consequentemente, do conde alemão Ernst Johann Biron, seu primeiro ministro não oficial e amante, não se verificou de imediato qualquer mudança na situação de Vieira ou da mulher. Só em 1735 foi permitido a Anna Vieira regressar a São Petersburgo para cuidar da educação dos filhos, Alexandre e Anton, que foram admitidos na Guarda Imperial. 

António de Vieira fez a viagem de seis meses para a Sibéria com o antigo Major-General e companheiro de conspiração Grigori Skornyakov-Pisarev, mas este, em 1731, teve a sorte de ser nomeado comandante da recentemente fundada povoação de Okhotsk, na Sibéria. Tendo a gestão de Pisarev sido deficiente, em 1739, finalmente, a Imperatriz retirou Vieira do exílio e nomeou-o em substituição daquele. A actuação de Vieira foi notável, tendo mandado prender Pisarev e restabelecido o normal funcionamento da região, e o relatório sobre a sua eficiência chegou a São Petersburgo. A 7 de Dezembro de 1741, no dia seguinte à sua subida ao trono, a nova Imperatriz Isabel Petrovna emitiu a seguinte ordem para o Senado:

«"Anton Dever e Skornyakov-Pisarev que foram condenados a ir para a Sibéria, serão perdoados e libertados do seu exílio"». (p. 87)

Após o seu regresso a São Petersburgo, em 1743, Isabel I restituiu-lhe todas as suas antigas honras, títulos e propriedades. 

«Tomamos conhecimento através da correspondência do Marquês Dalion (o embaixador francês na Corte russa na altura), que a Imperatriz Isabel quase não proporcionara a Vieira uma oportunidade para descansar da sua longa viagem de regresso a casa, antes que o pusesse de novo ao seu serviço. A reputação de Vieira como inquiridor rígido e leal, não se esbatera durante os anos do seu exílio. Escrevendo para o Marquês Ameiot, de São Petersburgo em 19 de Março de 1743 (C.G.), sobre um suposto golpe no palácio com o objectivo de derrubar a Imperatriz, o Marquês Dalion diz-lhe que a comissão reunida para o examinar é

"composta por Anton Manuel de Vier, recentemente chegado do seu exílio na Sibéria, português de nascimento e cunhado do falecido Príncipe Menshikov, o camareiro Schouvaloff... e o porta-bandeira Grunstein. A escolha destes homens austeros que eram devotos a Sua Majestade por inclinação e  por gratidão parece indicar que irão fazer importantes descobertas..."» (p. 87)

«Em 5 de Julho de 1744, a Imperatriz promoveu Vieira ao mais alto posto do Exército russo, o de Chefe de Estado Maior ("General-anshef").» (p. 93)

António Manuel de Vieira pôde gozar tranquilamente e confortavelmente os últimos dias da sua vida. Morreu em 24 de Junho de 1745, com 63 anos de idade, e foi sepultado no cemitério do Mosteiro de Alexandre Nevsky, em São Petersburgo.

[Quando visitei São Petersburgo há alguns anos, passei uma manhã no cemitério do Mosteiro, onde observei os túmulos das grandes figuras da literatura e da música russas. Não sabia que Vieira ali repousava também, pois não teria perdido a oportunidade de ver a sua sepultura, caso fosse possível identificá-la.] 

O livro inclui, em apêndice, a genealogia dos Condes de Vieira (Devier) até aos finais do século XIX.

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O MAGO DO KREMLIN

Em 2022 foi publicado em França Le Mage du Kremlin, do escritor ítalo-suíço nascido em Paris Giuliano da Empoli, que logo resolvi comprar, atendendo ao seu conteúdo. Mas, por qualquer razão que agora não recordo, não cheguei a encomendar.

Quando, no fim de 2022, foi editada a primeira tradução portuguesa, novamente decidi a compra, mas ainda desta vez não concretizei a minha aquisição.

Acontece que no mês passado, no Festival de Veneza, foi apresentado o filme homónimo, com realização de Olivier Assayas, em colaboração com Emmanuel Carrère e interpretação de Jude Law no papel de Vladimir Putin. A estreia da película em França está prevista para Janeiro do próximo ano, não havendo ainda, por isso, edição em DVD. Ao ler a notícia decidi que teria mesmo comprar o livro. E assim fiz, mas com dificuldade. Já lá vai o tempo em que visitava diariamente várias livrarias em Lisboa. Agora vou muito raramente à Baixa, onde já praticamente nada existe do meu tempo. Por isso, procuro habitualmente livrarias periféricas. Após algumas tentativas, em vão, foi ainda em Lisboa que consegui comprar O Mago do Kremlin.

Trata-se de um livro fascinante e indispensável para quem deseje compreender a Rússia de hoje. Daí o seu sucesso em todo o mundo e o facto de estar já traduzido em mais de trinta línguas.

Não é um manual de história nem um romance mas uma obra em que a ficção se entrelaça com a realidade tornando compreensíveis muitos episódios da história contemporânea, ainda ininteligíveis para numerosas criaturas. Também é perfeitamente visível a ironia do autor e o seu requintado cinismo.

O livro é construído à volta de Vadim Baranov (uma personagem imaginária) que descreve a forma como Vladimir Vladimirovitch Putin se transformou no novo Czar de Todas as Rússias. Agora retirado na sua fabulosa mansão, Baranov conta ao autor como se tornou conselheiro de Putin e como este se tornou o dramaturgo, o encenador e o actor de uma peça grandiosa que é a própria Rússia, um espectáculo deslumbrante e simultaneamente assustador para o comum dos mortais.

A análise da queda da União Soviética, do inconstante consulado de Mikhaïl Gorbachov, do perturbante período de Boris Eltsin e do advento de Vladimir Putin, a análise do comportamento do Ocidente, maxime do Estados Unidos, em relação à Rússia, da sua incapacidade em compreender a alma dos eslavos, que Dostoievsky tão bem retratou, tudo passa pelo livro de Giuliano da Empoli, em especial uma severa crítica ao american way of life e à estrutural incapacidade dos norte-americano de conseguirem entender a alma russa e até, em geral, a própria alma europeia, se ela verdadeiramente existe.

Não cabe aqui descrever a obra mas não resisto à transcrição, avulsa, de alguns momentos curiosos. 

«Quando pedimos ao nosso público que nos indicasse os seus heróis, as personagens em que se baseia o orgulho da Mãe Rússia, estávamos à espera dos grandes espíritos: Tolstói, Pushkin, Andrei Rublev, ou, sei lá, um cantor, um actor, como aconteceria entre vós. Mas o que nos deram os espectadores, a massa informa do povo habituada a vergar as costas e a baixar o olhar? Só nomes de ditadores. Os heróis deles, os fundadores da pátria, coincidiam com uma lista de autocratas sanguinários: Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Lenine, Estaline. Fomos obrigados a falsificar os resultados para fazer ganhar Alexandre Nevski, que pelo menos era um guerreiro, não um exterminador. Mas quem recolheu mais votos foi Estaline. Estaline, está a entender? Foi aí que eu compreendi que a Rússia nunca se tornaria um país como os outros. Não que houvesse alguma verdadeira dúvida.» (p. 74)

«Lembro-me de que Boris [Berezovsky] estava tão excitado que entornou com um gesto desajeitado o porta-canetas que tinha à sua frente. Dito isto, o raciocínio dele não era desprovido de sentido. No início dos anos noventa, Gorbachev e Ieltsin tinham feito a revolução, mas no dia seguinte a grande maioria dos russos havia acordado num mundo que não conhecia, no qual não sabia como viver. Antes do afundamento do sonho americano e do sonho da Europa, houve o afundamento do sonho soviético. Entre vós ninguém se apercebeu disso porque vos parecia impossível que um sonho fosse feito de coisas tão pobres e tão cinzentas: uma profissão respeitada como a de funcionário ou de professor, um pequeno Zhiguli [automóvel baseado no Fiat 124 que foi fabricado na União Soviética e na Rússia pela AvtoVAZ entre 1970 e 2012], uma dacha com a sua horta, as férias em Sochi ou de tempos a tempos em Varna, com as pernas a mergulhar no mar Negro e a perspectiva de um bom churrasco entre amigos. E, contudo, esse modelo tinha a sua força e a sua dignidade. Os seus heróis eram o soldado e a mestre-escola, o camionista e o infatigável operário: era a eles que eram dedicados os anúncios nas ruas e nas estações de metro. Em poucos meses, tudo isso foi varrido. os novos heróis, os banqueiros e as top-models impuseram o seu domínio, e os princípios em que se fundava a existência de trezentos milhões de habitantes da URSS foram invertidos. Eles tinham crescido numa pátria e de repente encontravam-se num supermercado. A descoberta do dinheiro foi o acontecimento dessa época que mais transtornou. E a seguir, a descoberta de que o dinheiro podia nada valer, com a queda da bolsa e a inflação em três mil por cento.» (pp. 83-84)

Do encontro do autor com o famoso Eduard Limonov:

«- O que é interessante é que as pessoas como tu pensam que se trata de um modelo a seguir. Mas, na verdade, os americanos são uns zombies; não há maior pecado do que delapidar a nossa vida, Vadia. Eles nem sequer são aflorados pela ideia de que o fito da existência humana possa não ser viver-se o mais confortavelmente ou o máximo tempo possível. Foi quando vi que Ieltsin seguia esse caminho e queria transformar a Rússia numa sucursal low-cost do hospício americano que eu decidi fundar o Partido Nacional-Bolchevique. E sabes porque lhe chamei assim? Para vos enfurecer, para concentrar num único nome tudo o que vocês consideram ser o mal, todas as ideias que ameaçam o pequeno consumidor satisfeito a que vocês reduziram o homem.

- As paixões fazem viver o homem, a sabedoria fá-lo somente durar.

Limonov olhou-me de lado. Não gostava de ser interrompido, muito menos por velhas citações que banalizassem as suas iluminações.

- De facto, é isso - prosseguiu ele. -  No Partido Nacional-Bolchevique juntámos ex-estalinistas e ex-trotskistas, homossexuais e skinheads, anarquistas, punks, artistas conceptuais e fanáticos religiosos, budistas e ortodoxos. Quando organizámos o nosso primeiro congresso, o mais complicado foi dispô-los na sala de maneira a não partirem a cabeça uns aos outros. Sempre que penso nisso, ainda não sei como é que fizemos...» (pp. 140-141)

Conversa entre Vladimir Putin e Vadim Baranov:

«Putin teve um estremecimento e, pela primeira vez desde que o conhecia, percebi um clarão de ódio no seu olhar.

- Mete uma coisa na cabeça, Vadia, os mercadores nunca dirigiram a Rússia. E sabes porquê? Porque não são capazes de garantir as duas coisas que os russos pedem ao Estado: ordem no interior e poderio no exterior. Só por duas vezes, por dois breves períodos, os mercadores governaram o nosso país: poucos meses após a revolução de 1917, antes do advento dos bolcheviques, e poucos anos após a queda do Muro, durante o período de Ieltsin. E qual foi o resultado? O caos. A explosão da violência, a lei da selva, os lobos que saem das florestas e entram nas cidades para devorar a população sem defesa.» (pp. 156-157)

Para a realização dos Jogos Olímpicos de Sochi, que Baranov superintendeu:

«Devo dizer que cada um desempenhou de bom grado o papel que lhe fora atribuído. Alguns até com talento. Os únicos que não contratei foram os professores, os tecnocratas responsáveis pelas catástrofes dos anos noventa, os porta-estandartes do politicamente correcto e os progressistas que se batem por lavabos transgénero. Esses, preferi deixá-los para a oposição; com efeito, era necessário que a oposição fosse constituída precisamente por personagens como eles. De certa maneira, tornaram-se os meus melhores actores, nem sequer fomos obrigados a contratá-los para que trabalhassem para nós. Pequenos moscovitas que se sentiam em terra estranha logo que ultrapassavam o terceiro anel da periferia, pessoas que nem teriam sido capazes de deslocar um cadeirão - quanto mais governar a Rússia... Cada vez que tomavam a palavra, consolidavam a nossa popularidade. Os economistas com a sua arrogância de PhD, os oligarcas sobreviventes dos anos noventa, os profissionais dos direitos humanos, as pasionarias feministas, os ecologistas, os vegans, os activistas gay: um maná caído do céu para nós. Quando as raparigas daquele grupo de música profanaram a Catedral do Cristo Salvador, berrando obscenidades contra Putin e o patriarca, fizeram-nos ganhar cinco pontos nas sondagens.» (pp. 182-183)

Putin sobre Boris Berezovsky (que apareceu enforcado no seu apartamento em Londres):

«- Claro, ele ajudava os inimigos da Rússia em toda a parte, na Ucrânia, na Letónia, na Geórgia, é verdade. Sabe-se lá como as coisa aconteceram ao certo. Estás a ver, Vadia, os teóricos da conspiração julgam-se muito espertos, mas são uns grandes ingénuos. Gostariam que tudo tivesse um sentido oculto e desvalorizam sistematicamente o poder do disparate, da distracção, do acaso. Dito isto, tanto melhor assim: é o contrário do que eles quereriam, mas os teóricos da conspiração só nos dão força. Se em lugar de se ver o poder como aquilo que ele é, com as suas fraquezas humanas, lhe conferirmos a aura de uma identidade omnisciente, capaz de urdir não sei que trama, fazemos-lhe o maior cumprimento possível, não achas? Fazemo-lo crer ainda maior do que ele é.

- "Puisque ces mystères nous dépassent, feignons d'en être l'organisateur." [adaptação de uma frase de Jean Cocteau em Les Mariés de la Tour Eiffel]

O Czar detestava as minhas citações e não falava francês, mas naquela manhã eu não estava num humor que lhe agradasse. Fitou-me por um instante em silêncio, e depois decidiu ignorar-me.» (pp. 224-225)

«Diante de mim, o Czar lia a carta de Berezovsky. A seguir, pousou-a, imperturbável, como uma pedra apanhada no fundo de uma torrente. Dei-me conta nesse momento de que Boris também tivera razão sobre este ponto. Putin não era um grande actor, como eu julgara, mas somente um grande espião. Ofício esquizofrénico que requer, é certo, qualidades de actor. Ms o verdadeiro actor é extrovertido, o seu prazer de comunicar é real. O espião, em contrapartida, tem de saber bloquear todas as emoções, caso as tenha. Na prática, esses dois talentos servem-lhe, ele tem de simular a empatia do actor e simular a frieza do cirurgião na sala de operações. Mas se Putin não era um grande actor, eu também não era um grande encenador, quando muito um cúmplice.» (pp. 225-226)

«Mas quando apresentei a minha demissão, o Czar tinha outra coisa em mente. Creio que acolheu a minha retirada com alívio: já não precisava de mim. Inventar uma ordem nova exige uma certa dose de imaginação, mas basta a devoção cega dos servidores para a fazer respeitar.» (p. 260)

«No Ocidente, os vossos governantes são como adolescentes, não podem ficar sozinhos, procuram sempre um olhar que pouse sobre eles, tem-se a impressão de que, se fossem obrigados a passar um dia num quarto, sem companhia, se dissolveriam no ar como um sopro de vento morno. O nosso czar, pelo contrário, vive na solidão e nutre-se dela. É no recolhimento que ele acumula a força que surpreende tantos dos vossos observadores. Com o tempo, isso tornou-se quase um elemento, como o céu ou o vento. Vocês esqueceram-se do que significa viver como adulto, plantado na realidade. Julgam que um chefe é uma espécie de animador, querem chefes que se assemelhem a vós, que estejam ao vosso nível. A distância preserva a autoridade. Como Deus, o Czar pode ser objecto de entusiasmo, mas sem que ele próprio se entusiasme, a sua natureza é necessariamente indiferente. O rosto dele já adquiriu a palidez marmórea da imortalidade.» (pp. 260-261)

«Imaginemos agora que o poder deixe de necessitar da colaboração humana. Que a sua segurança - e a sua força - seja garantida por instrumentos que não têm a possibilidade de se revoltar contra ele. Um exército de sensores, de drones, de robôs capazes de atacar a qualquer momento, sem a menor hesitação. Isso seria, finalmente, o poder na sua forma absoluta. Enquanto se basear na colaboração de homens de carne e osso, todo o poder, por mais duro que seja, deverá contar com o consentimento destes. Mas quando for baseado em máquinas que mantenham a ordem e a disciplina, não haverá mais nenhum freio. O problema das máquinas não é que elas venham a revoltar-se contra o homem, é que ela sigam as ordens à letra.» (p. 264)

E como morceau de bravoure

«Doravante, onde quer que nos encontremos, podemos ser identificados, chamados à ordem, neutralizados se necessário. O indivíduo solitário, o livre-arbítrio, a democracia, tornaram-se obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações standard tão previsível como um bando de pássaros ou um cardume de peixes. Não estamos ainda em guerra, mas já estamos militarizados. Os soviéticos tinham sonhado com isso. O nosso Estado sempre se baseou na mobilização. Éramos uma nação inteiramente fundada na ideia da guerra, da defesa da pátria contra agressões que pudessem vir do estrangeiro. Todos os sacrifícios, todos os inúmeros atentados à liberdade, se justificavam assim: a defesa de uma liberdade maior, a da mãe pátria. O KGB tinha projectado, nos anos cinquenta, um sistema para registar todas as relações de cada cidadão soviético. O vertuskka [Vertushka (em russo: Вертушка), também conhecida por Kremlyovka (em russo: Кремлёвка) ou Spetssvyaz (em russo: Спецсвязь), é o nome coloquial de um sistema fechado de comunicações telefónicas entre partidos políticos e governos na União Soviética e na Rússia. Recebeu o nome informal (calão) de Vertushka porque, ao contrário da rede telefónica convencional, onde a ligação era feita através de um operador, os assinantes ligavam-se uns aos outros utilizando uma central telefónica automática e um disco de marcação chamado Vertushka em russo. A existência do sistema era uma novidade numa era dominada pelas centrais telefónicas manuais. O telefone não utilizava disco de marcação e certos subsistemas do sistema ligavam-se diretamente ao Kremlin. Sobretudo no período soviético, esta ligação permitia ao líder comunicar com subordinados importantes, como secretários regionais do partido, oficiais militares de alta patente ou chefes de importantes fábricas estatais. O sistema governamental ATS, que sofre modernizações regulares, continua em funcionamento até aos dias de hoje] do meu pai era o símbolo disso. Mas o Facebook foi muito mais longe. Os californianos ultrapassaram todos os sonhos dos velhos burocratas soviéticos. Não há limites para a vigilância que eles conseguiram instaurar. Graças a eles, qualquer momento da nossa existência se tornou uma fonte de informações.» (p. 265)

 * * * * *

Como Vladimir Vladimirovitch Putin continua vivo e presidente da Federação Russa o fim do livro não é o fim da história. A edição original tem três anos e Giuliano da Empoli não podia, nem pode, prever os acontecimentos que terão o Kremlin por palco. Por isso encontrou um expediente original para concluir a obra: a aposentação voluntária do Vadim Baranov, o "mago do Kremlin".

Não será de mais repetir que se trata de um livro que observa com particular acuidade a Rússia de hoje e o homem de sempre (parafraseando Leonardo Coimbra), o mundo em que vivemos e o mundo provável do futuro.

Vale a pena ler. Espero que o filme faça jus ao livro.

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O LOUCO DE DEUS E O LOUCO SEM DEUS

Foi publicado no passado mês de Abril um livro, inesperado, do escritor espanhol Javier Cercas (n. 1962) com o título El loco de Dios en el fin del mundo.

O autor, membro da Real Academia Española, ateu convicto e anti-clerical notório, foi convidado (para sua surpresa), em Maio de 2023, por individualidades da Santa Sé, para acompanhar o Papa Francisco na sua viagem à Mongólia e escrever depois um livro sobre a viagem, sobre a Igreja, sobre o Vaticano e sobre o que lhe agradasse. Ao princípio, julgou tratar-se de uma piada, mas não era.

Ao longo de quase 500 extensas páginas, Javier Cercas descreve com brilho, precisão, informação cuidada, perspicácia e uma boa dose de ironia as suas impressões da viagem e a sua convivência com a Cúria vaticana e com o próprio Papa.

O escritor acabou por aceitar o convite lembrando-se de sua mãe: «Fue justo entonces, tras recordar esa visión salvífica, cuando me acordé de mi madre viva y de mi padre muerto, ambos católicos a machamartillo, me acordé de que, desde la muerte de mi padre, mi madre no paraba de repetir que iba a encontrarse con él después de muerta, y me dije que, si podía estar uns minutos a solas con el papa y hablarle de la resurreción de la carne y la vida eterna y preguntarle si era verdad que mi madre volvería a ver a mi padre, entonces tenía todo el sentido del mundo escribir aquel libro.» (p. 20). Embora não lhe fosse garantido a priori um encontro a sós com o Papa, mesmo por breves minutos, Cercas acedeu ao convite formulado, avisando os proponentes do risco que corriam com tão imprevisível ideia.

O livro começa pela descrição dos encontros que manteve no Vaticano com alguns dos mais destacados dignitários da comunicação social da Santa Sé, a fim de inteirar-se de uma série de questões relacionadas com o funcionamento de Cúria e as viagens papais. Reuniões que também aproveitou para interrogar os seus interlocutores sobre problemas da Fé, da Doutrina, da Igreja em geral.  Entre as personalidades contactadas distinguem-se o jornalista Paolo Ruffini, Prefeito do Dicastério para a Comunicação (o primeiro leigo a ser nomeado prefeito de um  dicastério romano) e o cardeal Tolentino de Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, a quem dedica palavras elogiosas.

Também obtém uma audiência do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Cultura, sobre o qual comenta: «Más preguntas: quiso decirme algo el cardenal Ravasi en el Palazzo di Spagna, con sus risas y sus sonrisas y sus citas en lenguas herméticas, y tal vez no se atrevió a decírmelo para no perturbar a los religiosos que nos escuchaban, para no perturbar a mi madre, para no perturbarme a mí? O lo dijo, pero no lo dijo abiertamente, y yo no acerté a entenderlo? Quiso decir el cardenal lo que a mí me pareció entender, y es que un católico no siempre está seguro de que después de la muerte lleguen la resurrección de la carne y la vida eterna, y que estas dudas procuran angustia y desasosiego, como se las procuraron a san Manuel Bueno, mártir? O, por el contrario, quiso decir que la resurrección de la carne y la vida eterna no deben tomarse al pie de la letra, como se lo tomam mi  madre y millones de cristianos, sino de una manera simbólica, igual que si fueran figuras poéticas de una grandiosa composición teológica conocida como cristianismo? Acaso intentó decir que, en realidad, ni el papa ni los cardenales creen en Dios, no al menos con la convicción con que cree mi madre, con la fé sin preguntas de los feligreses de Valverde de Lucerna, con la fe proverbial del carbonero? Fue por esa razón por la que todas las personas a quienes propuse el test de resistencia del libro sobre el papa sugirieron que, a mi pregunta por la resurrección de la carne y la vida eterna, Bergoglio respondería con una evasiva (una metáfora, un circunloquio, una cita evangélica, la glosa de un pasaje bíblico), que el papa no diría que no creía que ma madre no volvería a ver mi padre después de muerto, porque no podía decirlo, pero tampoco que sí lo creía, porque no se atrevería a decírselo a un maldito intelectual ateo?» (pp. 40-41)

Javier Cercas discorre sobre Francisco de Assis, que foi chamado o "louco de Deus" e lembra que Jorge Bergoglio, ao escolher o nome pontifício de Francisco, é também um "louco de Deus", com uma vocação missionária que evoca a Ordem dos Frades Menores.

Dissertando sobre religião, escreve Cercas: «por eso escribe Nietzsche, en Ecce Homo, que el cristianismo representa "la negación de la voluntad de vida hecha religión", o, en El ocaso de los ídolos, que hay en Dios "una declaración de guerra a la vida, a la Naturaleza, a la voluntad de vida" y que la concepción cristiana de Dios "es una de las más corruptas alcanzadas sobre la Tierra"; por eso añade en El Anticristo que, como el cristianismo "se ha erigido en defensor de todos los débiles, bajos y malogrados", esa religión transforma en ideal el "repudio de los instintos de conservación de la vida pletórica" y considera "al hombre pletórico como hombre típicamente reprobable, como 'réprobo' ". Una vez que abandoné la fe cristiana, yo soñaba con transformarme en uno de esos hombres fuertes de Nietzsche, réprobos y reprobables, uno de esos insumisos que no se resignan a su propia debilidad ni aceptan servidumbre ni mentira alguna - empezando por la mentira de la religión -, uno de esos superhombres veraces y aspirantes a la autonomía individual que copian el gesto soberbio del ángel caído y su grito rebelde de guerra ("Non serviam!"), uno de esos espíritus libres poseídos como se lee en La voluntad de poder, "por la voluntad incondicional de decir no allí donde el no es peligroso".» (pp. 45-46)

Não posso deixar de transcrever esta passagem, com a qual concordo em absoluto:

«En qué quedamos, entonces: es Francisco un papa de izquierdas o de derechas? No cabe ninguna duda de que hoy, en muchos sentidos, Bergoglio se halla politicamente más a la izquierda que sus predecessores en la silla de san Pedro; tampouco de que la izquierda se siente próxima a él por su énfasis en la igualdad, en la justicia social y en la solidaridad con los desfavorecidos, así como por su rechazo a lo que alguna vez llamó el "ultraliberalismo individualista" y el "hedonismo consumista". Desde esta perspectiva, no sería inexacto considerar su papado como una reacción frente al conservadurismo de Juan Pablo II, que mezcló la defensa de la cristandad tradicional con la connivencia o el apoyo a ideologías políticas reaccionarias y sufocó o relegó la vocación social de la Iglesia.» (pp. 56-57)

A propósito do humor de Bergoglio:

«En el otoño de 2021 aparicieron en las paredes del Vaticano unos pasquines escritos en dialecto romanesco donde se le acusaba de haber decapitado a la aristocrática y tradicionalista  Orden de Malta por forzar la dimisión de Matthew Festing, su reaccionario prior. Un periodista del diario alemán Die Zeit le interrogó al respecto, y el papa elogió la belleza de los pasquines, añadió que eran claramente "obra de una persona muy cultivada". "Alguien por aqui?", preguntó el periodista, refiriéndose al Vaticano. "No", replicó Bergoglio. "He dicho una persona cultivada". Chesterton hubiera aplaudido.» (p. 64)

Sobre o louco de Nietzsche:

«El loco de Nietzsche es un demente que enciende un farol en pleno día y corre al mercado gritando: "Busco a Dios! Busco a Dios!" La gente se ríe del loco, mientras él se pregunta, retóricamente: "Que adónde se ha ido Dios? Os lo voy a decir", se contesta. "Lo hemos matado: vosotros y yo. Todos somos su asesino!" Y a continuación suelta un epigrama como un grito terrible cuyo eco todavía no se ha extinguido: "Dios ha muerto, e nosotros lo hemos matado!" Ese grito es de alegría o de pena? Hace feliz al loco la muerte de Dios, la liberación de la eterna autoridad suprema, el final de aquello que siempre ha impuesto normas y limites, pero también ha otorgado sentido a todo? Está satisfecho el loco con ese crimen? No: está desesperado: para el loco, la muerte de Dios no es un acontecimiento gozoso: es un acontecimiento atroz, que no depara al mundo alegría sino desolación. "Cómo hemos podido hacerlo?", se pregunta el loco, incapaz de dar crédito a aquella enormidad. "Cómo hemos podido bebernos el mar? Quién nos prestó la esponja para borrar el horizonte? Quê hicimos cuando desencadenamos la Tierra de su Sol? Hacia dónde caminará ahora? Hacia dónde iremos nosotros? Lejos de todos los soles? [...] Cómo podremos consolarnos, asesinos entre los asesinos? [...] No es la grandeza de este acto demasiado grande para nosotros?" Éste es el loco de Nietzsche: un loco sin Dios, pero también un loco que no está loco, o no del todo, uno de esos locos lúcidos que, como don Quijote, son más lúcidos que los cuerdos porque ven más allá que los cuerdos, más allá de lo que son capaces de ver los hombres comunes y corrientes, aquellos que solo saben reírse de él.» (pp. 84-85)

Sobre os abusos sexuais:

«-Entonces cómo vamos a exigirle a un pobre cura perdido en medio de África que sea siempre sublime, que no ceda a sus impulsos? No es pedir demasiado? No es, de algún modo, pensar que el cura es capaz de hacer aquello que los demás no podemos hacer? No es esto una forma secreta de clericalismo? No es lógico que este cura, en un momento de debilidad, acabe haciendo de mala manera cosas que hubiera debido hacer de buena manera? En fin, padre Spadaro [sacerdote jesuíta, exercendo o cargo de subsecretário do Dicastério para a Cultura e Educação desde 2024]: el sexo no forma parte del amor? Cómo es possible que la Iglésia tenga una relación tan complicada con él, a menudo tan poco saludable y tan retorcida, por no decir tan perversa?

- Me has hecho muchas preguntas ...

El reproche, formulado con una sonrisa indulgente, es justíssimo, y me disculpo por mi vehemencia (o por mi charlatanería). Ahora el padre Spadaro no tiene necesidad de reflexionar; sin duda lo ha hecho mientras me escuchaba.

- Lo primero: no se debe confundir el problema de los abusos con el celibato - dice - . Son cosas distintas: los abusos ocurren sobre todo en la familia. No tienen nada que ver con el celibato.

Silencio.

- Está seguro? - pregunto.

- Uno no abusa de menores porque no está casado.

- No, pero quien no está casado también tiene sus necesidades sexuales y, si no las satisface por las buenas, es lógico que pueda acabar satisfaciéndolas por las malas. Para la Iglesia, el matrimonio da salida a las pulsiones sexuales, pero si las mantienes encerradas...

- Insisto: son cosas distintas. La mayor parte de los abusos de menores de dan em familia, con personas casadas que abusan de los menores. Así que... Y otras dos cosas que hay que separar son la homosexualidad y la pederastia: son dos problemas diferentes. En cuanto al celibato, es verdad: puede ser duro, difícil de asumir. Pero no creo que el marimonio sea la solución de todos los problemas... Eso lo vemos en otras religiones, el protestantismo o el anglicanismo o la Iglesia ortodoxa, donde les sacerdotes pueden casarse. Así que no creo que sea la solución. Aunque es verdad que hoy, en la Iglesia católica, el problema se plantea con más fuerza que nunca. De todos modos, insisto, el celibato no está ligado al abuso.

- Se refiere al abuso de los niños. Pero el abuso no es solo de los niños: es también de las mujeres. El celibato tampoco guarda ninguna relación con el?

Por toda respuesta, Spadaro resopla, indeciso.

- Está seguro de que tampoco guarda relación con la pederastia? - porfío -. Un hombre no puede encontrar una válvula de escape a sus urgencias sexuales en las relaciones con niños?

- No lo sé. - Spadaro me enseña las palmas de sus manos, como si tratase de protegerse con ellas -. No soy un experto: quizá es mejor hablar con los expertos. Pero yo entiendo  que son dos cosas distintas: una es tener propensión hacia los menores y otra es ser una persona que siente la soledad, que necesita satisfacer sus necesidades y más bien buscaría a alguien de su edad, no a un niño.

- Sí, ésa es la conclusión a que llegaron los expertos reunidos por el papa. Pero, con franqueza, no mi parece muy convincente; ni a mí ni, por cierto, a bastantes sacerdotes, que viven en sus carnes el problema. Insisto: un sacerdote tiene los apetitos sexuales que todos tenemos y, si no encuentra forma legítima de darles salida, al final la salida puede ser ilegítima. Con mujeres o con niños dóciles a su autoridad. Es lógico. Y yo me pregunto si a un cura se le puede exigir lo que no se le exige a ningún otro ser humano, y me pregunto también si esa exigencia no es una manifestación de clericalismo.

- El riesgo existe, es verdad - acepta Spadaro -.  Creer que el cura está por encima del deseo sexual es un error y sería en efecto una forma de clericalismo. Sí. Lo que yo digo es que los abusos a niños los cometen tanto los célibes como los casados y por lo tanto el celibato y los abusos de menores son problemas distintos. Otro asunto es la soledad del sacerdote...» (pp. 110-111-112)

O encontro com o cardeal Tolentino:

«Con el cardenal Tolentino ocurre algo insólito: la conexión es instantánea. El cardenal es poeta y la conexión la crea la poesía; o más exactamente: un poeta; o más exactamente: un poema. Cuando me recibe en la sede del Dicasterio para la Cultura y la Educación, en el palazzo delle Congregazioni, plaza Pio XII, junto a la basílica de San Pedro, al cardenal le falta tiempo para bromear sobre la aspereza de la vida de los escritores y las servidumbres de la vida literaria - los viajes, los festivales, las lecturas públicas -; luego menciona a un poeta surealista portugués, amigo suyo: Mário Cesariny.

- No se si lo conoces.

- Por supuesto.

El cardenal clava en mí unos ojos ilusionados.

- No puede ser.

Mi respuesta consiste en recitar un poema de Cesariny que de joven recitaba a voz en grito en mis noches alcohólicas:

Al final lo que importa no es la literatura

ni la crítica de arte ni la cámara escura.

Enardecido como un poeta adolescente, el cardenal se suma a mi recitado, pero en seguida me deja seguir solo, como si quisiera comprobar que me sé de memoria la pieza de su compadre; hasta que llego a mi estrofa favorita:

Al final le que importa es no tener miedo: cerrar los ojos frente al precipicio

y caer verticalmente en el vicio.

Celebramos esos versos salvajes con una carcajada común.» (pp. 118-119)

A conversa prossegue com o cardeal Tolentino sobre literatura e a ilha da Madeira, e a certa altura há uma referência ao escritor português Valter Hugo Mãe:

« El cardenal José Tolentino de Mendonça es portugués (de Machico, en la isla de Madera), habla un italiano com resonancias portuguesas y se comporta con una dulzura y una humildad portuguesas; fisicamente es pequeñito, muy moreno, casi calvo. Ha publicado tantos libros eruditos como su predecesor en el Dicasterio, el cardenal Ravasi, con quien años atrás hablé sobre literatura y religión en el palazzo di Spagna; su poesía le ha valido todos los premios de su país. "Ojo con él", me dijo meses después de nuestro encuentro el escritor Valter Hugo Mãe. "Es el mejor poeta actual de mi lengua. Merecería ser premio Nobel. Y Papa".» (p. 120)

[Permita-se-me um aparte: Não sei se Javier Cercas está a gozar connosco, com Mãe, com Tolentino ou se é mesmo ignorância]

Continuando com Tolentino:

«- Nosotros, los occidentales, tenemos una historia difícil de lucha entre razón y fe - dice el cardenal con su voz densa, aterciopelada -. Pero yo, como europeo, considero que esa lucha non conduce necesariamente al ateímo. Dostoievski, por ejemplo, decía: "Mi fe surge del horno de mis dudas". Así que podemos pensar que incluso las preguntas más extremas que la razón occidental ha hecho pueden ser un componente de la fe. Y seguramente la fe del papa Francisco no es una fe que se no hace preguntas. Yo creo que a él le gusta tanto hablar con laicos porque comprende los retos, las dificultades de la fe. También creo que la razón puede purificar una fe demasiado fácil. Creer no debe ser demasiado fácil. Flannery O'Connor decía: "Creer es más difícil que no creer".» (p. 132)

Sobre a Ucrânia:

«Al llegar a mi dormitorio de la Casa Paolo VI me tumbo en la cama a leer los periódicos con mi iPad. En El País leo una noticia a toda página sobre el papa, o más bien sobre el papa y sobre la guerra que devasta Ucrania desde hace año y medio. "El papa Francisco enfurece a Ucrania al elogiar el pasado imperial ruso", reza el título; y la entradilla: "Líderes religiosos y políticos piden explicaciones al Vaticano en una nuova polémica protagonizada por el pontífice y sus palabras próximas al discurso del Kremlin". Lo ocurrido es un ejemplo de la famosa imprevisibilidad de Bergoglio: tras un discurso por videoconferencia dirigido a jóvenes católicos de San Petersburgo, el papa improovisó unas palabras en las que los animaba a sentirse orgullosos de su pasado ruso; el problema es que, en vez de citar a Pushkin y Dostoievski, el papa evocó a Pedro el Grande y Catalina II, los mismos representantes de "la gran Rusia" - expresión venenosa utilizada también por el papa - que esgrime Vladimir Putin para justificar la invasión de Ucrania. Es obvio que la improvisación de Francisco fue malinterpretada o tergiversada tanto por los ucranianos (que abominaron de ella por considerarla una defensa de Putin) como por los rusos (que la celebraron por idéntico motivo): el papa no pretendía aplaudir la invasión rusa de Ucrania ni animar a los jóvenes ctólicos rusos a sumarse a ella; no es menos obvio, sin embargo, que sus palabras fueron como mínimos torpes y sus ejemplos como mínimo infelices, y que él mismo se ha ganado a pulso todos los malentendidos con la tibieza de su postura frente a esa guerra: baste recordar que en junio de 2022, cuatro meses después del inicio de la invasión rusa, Francisco declaró que ésta "había sido quizá provocada o no evitada" por la OTAN. Un hecho parece en cualquier caso transparente: el papa Francisco padece unos recelos antiamericanos y una mentalidad de la guerra fría - ambos del todo comprensibles en un latinoamericano de su generación - que le ciegan a la obviedad de que la guerra de Ucrania es, en lo esencial, una simple, salvaje y anunciada agresión imperialista ejecutada friamente por un tirano que sueña con reconstruir con la Rusia actual el imperio abolido de los zares.» (pp. 138-139)

[Neste ponto há que reconhecer que o papa Francisco tinha toda a razão. Javier Cercas deve estar confuso, o que se lamenta num escritor tão laureado como ele, ou então, na pior das hipóteses, ainda que não de todo descartável, trata-se de um avençado de George Soros ( György Schwartz).]

Onde o autor se confessa ex-toxicodependente:

«Karl Marx observó famosamente que la religión es el opio del pueblo. En lo que a mí respecta, acertó de lleno: la prueba es que, cuanto abandoné el catolicismo a raíz de la lectura de San Manuel Bueno, mártir, me lancé en busca de drogas alternativas; la más potente, eficaz y duradera ha sido la literatura, pero he consumido muchíssimas otras, incluido el alcohol, el tabaco, la marihuana, el hachís y la cocaína. De unos años para acá, sin embargo, la que más me pone (aparte de la literatura) es correr, así que cada mañana corro durante cincuenta minutos; se trata de una droga brutalmente adictiva: si no corro un día, me pongo nervioso; si no corro dos días, me pongo nerviosísimo; si no corro tres días, me entran ganas de practicar el canibalismo.» (p. 140)

Após as reuniões no Vaticano para se familiarizar com os organismos da Igreja Católica e com o pensamento do Papa, e para lhe ser explicado o objectivo da visita de Francisco e os procedimentos inerentes, Javier Cercas embarca no avião papal. 

«De modo que aquí estoy yo, ateo y anticlerical, laicista militante, racionalista contumaz e impío riguroso, volando en dirección a Mongolia con el anciano vicario de Cristo en la Tierra, esperando que termine de saludar a los vaticanistas y que llegue mi turno para poder interrogarle sobre la resurrección de la carne y la vida eterna, para que me diga si mi madre verá a mi padre más allá de la muerte, para escuchar su respuesta y llevársela a mi madre. He aquí un loco sin Dios persiguiendo al loco de Dios hasta el fin del mundo.» (p. 211) 

Durante o voo, o autor terá obtido alguns minutos a sós com o Papa, assunto que abordaremos no fim.

Em Ulan Bator, capital da Mongólia, Javier Cercas encontra-se com diversas personalidades locais e visita diversos locais religiosos e profanos. Francisco é recebido solenemente pelo presidente Ukhnaagiin Khürelsükh e pelos dignitários oficiais. O autor conversa com o cardeal Giorgio Marengo, bispo italiano da Prefeitura Apostólica de Ulan Bator e com o célebre missionário padre Ernesto Viscardi.

Além do budismo e do xamanismo, preponderantes, existem confissões cristãs na Mongólia: católicos (poucos), protestantes (os mais representados), mormones, evangélicos, ortodoxos.  

A visita do papa à Mongólia mostra o interesse de Francisco pelas pequenas comunidades católicas longínquas, mas também é certo, que nunca tendo podido visitar a Rússia e a China, o Papa aterrou entre os dois países, o que encerra sem dúvida um significado não despiciendo na diplomacia pontifícia.

Não cabe obviamente neste texto a descrição da estada da comitiva papal na Mongólia.  

De regresso ao Vaticano, Javier Cercas volta a encontrar-se com algumas das personalidades com quem se avistara antes da partida. E com outras pela primeira vez, como é o caso da sua reunião com o cardeal Víctor Manuel "Tucho" Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. Escreve o autor:

«El Gran Inquisidor.

Así es como llamo para mis adentros a Víctor Manuel "Tucho" Fernández, prefecto del Dicasterio para la Doctrina de la Fe, antiguo Santo Oficio, antigua Inquisición, desde que Fazzini me anunció que tal vez podría conversar con él. El Gran Inquisidor: como el personaje de Los hermanos Karamázov (o de la leyenda que Iván Karamázov le cuenta a su hermano Aliosha en la novela de Dostoievski), aquel individuo que le exige a Jesucristo resucitado que regrese a su tumba para que la Iglesia pueda seguir administrando su legado y convertiendo su mensaje emancipatorio de amor en un mensaje de terror y sumisión nacido de un concepto del hombre espeluznantemente lúcido y enteramente opuesto al de Jesucristo ("Para el hombre no hay preocupación más constante y atormentadora", dice el Gran Inquisidor, "que la de buscar cuanto antes, siendo libre, ante quién inclinarse").

Lo cierto sin embargo es que, al menos a primera vista, el Gran Inquisidor de Francisco no pede ser más opuesto al Gran Inquisidor de Dostoievski. Es último es un anciano de casi noventa años, aalto, sombrío e intimidante, de cara enjuta y ojos hundidos, que viste un hábito monacal viejo y tosco; tiene unas pobladas cejas canosas y su mirada centellea "con siniestro fuego"; no menos siniestros son los auxiliares, los esclavos y la guardia que lo acompañan. El Gran Inquisidor de Bergoglio, en cambio, se presenta solo en la sala de reniones que Fazzini nos ha cedido y, si no fuera por su clergyman yo nunca habría adivinado al heredero de Torquemada en este tipo calvo, longilíneo y sonriente, con un no sé qué de pingüino (ou tal vez de cigüeña, o tal vez de una mezcla imposible de pingüino y cigüeña), un hombre que me estrecha la mano buscándome los ojos con una curiosidad afable.» (pp. 435-436)

Do longo diálogo com o cardeal retenho:

«Padre Fernández, podría explicarme a qué se dedica hoy el Santo Ofício?

Mi interlocutor responde sin vacilar.

- Históricamente, el Santo Ofício buscaba preservar la integridad de la fe, impedir que se produjeran errores doctrinales - cuenta -. Y, claro, es verdad: en su momento llegó a extremos terribles, como el de Giodano Bruno, quemado vivo en la hoguera, o como los de la Inquisición española, solo superada en crueldad por la Inquisición calvinista, mucho peor que la nuestra... Inquisición y Santo Ofício eran lo mismo, en aquella época. Luego, con el tiempo, la Inquisición desapareció y el Santo Ofício mantuvo esa función de cuidado de la integridad de la fe. Y a principios del siglo XX, cuando la Iglesia dio sus batallas contra el Modernismo teológico y acabó condenándolo, el Santo Ofício (y más tarde el actual Dicasterio para la Doctrina de la fe) funcionó casi como un servicio de inteligencia, como un sistema de control; no se quemaba ni se torturaba a nadie, como en tiempos de la Inquisición, pero también era una fuente de sufrimiento y de miedo...» (p. 440)

Também:

«- Cual va a ser la misión del Santo Ofício durante su mandato? El papa le ha encargado renovarlo?

El prefecto apura el vaso y lo deja frente a él.

- Hace un par de meses, a principios de julio, el papa me mandó una carta. En ella me decía que era necesario hacer algunos cambios en el dicasterio, de tal manera que se convierta en un lugar de fomento del pensamiento teológico y la investigación... Nada de salir a la caza de herejes y herejías. - "El dicasterio que presidirás", escribió Bergoglio en esa carta, "en otras épocas llegó a utilizar métodos inmorales. Fueron tiempos donde más que promover el saber teológico se perseguián posibles errores doctrinales. Lo que espero de vos es sin duda algo muy diferente" -. Si a alguien se le acusa de algo, el dicasterio debe ser un espacio de debate con esta persona, un instrumento que nos permita averiguar se tiene una inquietud legítima que tal vez hay que tener en cuenta, o si algo que a simple vista parece un error puede ser en realidad un intento de desarrollar un aspecto o un problema que ha sido olvidado, o que no ha sido suficientemente pensado en la Iglesia. Cosas de ese tipo... En definitiva, lo que el papa me ha pedido es una reconfiguración del dicasterio en esa línea más abierta, ponderada y tolerante: sustituir las sanciones por el diálogo, la persecución por la reflexión.» (pp. 446-447)

Continuando:

«Admiro el pragmatismo humilde del Gran Inquisidor de Bergoglio - que horrorizaría al Gran Inquisidor de Dostoievski -, pero a mí el argumento de Pascal me sigue pareciendo de una mezquindad hedionda: un win-win hipocritón y ventajista de merchachifle de Dios.

Me explico.

Existe una ética religiosa y una ética laica, una ética cristiana y una ética atea; hay quien piensa que la primera es superior a la segunda: al menos desde que perdí a la fe en Dios gracias a Unamuno y a Nietzsche (o por culpa de ellos), yo pienso exactamente lo contrario. la oposición entre una y otra ética se encierra en dos versículos casi calcados, uno de un evangelio auténtico y otro de un evangelio apócrifo, uno obra de san Mateo y otro de Jorge Luis Borges. El versículo de san Mateo dice:

Bienaventurados los de limpio corazón, porque verán a Dios.

Por el contrario, el versículo de Borges dice:

Bienaventurados los de limpo corazón, porque ven a Dios.

Del futuro de san Mateo al presente de Borges: ahí radica la diferencia minúscula y descomunal entre ambas éticas.» (p. 457)

No fim do livro, Javier Cercas transmite à mãe o que o papa Francisco lhe disse na breve conversa do avião, e que ele filmou. Transcrevo algumas frases:

- Con la resurrección de Cristo se plantó la semilla de la resurrectión de toda la humanidad. Con el bautizo entramos ya en ese mundo.

- Como dice san Pablo,"si no creemos que Jesucristo resucitó, vana es la fe". (p. 474)

Não cabe neste texto, que vai já muito longo, a descrição integral da conversa com o papa.

* * * * * 

Trata-se de um livro indubitavelmente muito bem escrito. que combina a crónica e o ensaio com a biografia e a auto-biografia. Todavia, a repetição de vários temas, sem necessidade aparente, alongando (inutilmente) a obra com o risco de quebrar o ritmo enunciado, conduz o leitor a pensar que Javier Cercas o fez com o deliberado propósito de publicar um volume particularmente extenso.