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quarta-feira, maio 29, 2024

CNEC 68/40 - 6/10

 

Antigamente teria sido um edifício imponente. O velho Silo alojara lojas no rés-do-chão e os vários andares serviam de parque.

Com o tempo fecharam as lojas e anunciava-se a sua demolição.

Eram poucos os que ali vinham e praticamente todos evitavam o velho elevador preferindo as escadas. Tinham havido um ou dois acidentes com aquele e desaparecimentos inexplicáveis.

Seria o seu ar desarranjado ou a sombra desses boatos que o deixavam parado, mas ele tinha fome e aguardava que algum solitário o chamasse.

Numa tarde de chuva um casal de idade levou para ali o carro. O senhor andava devagar agarrado à sua dignidade, a senhora recorria já a uma bengala. Seria para eles difícil ir pelas escadas e chamaram o elevador. Ruidosamente subiu da cave até eles, abriu a porta e deixou-os entrar.

Ouviu-se então um “segurem o elevador” e a senhora com a bengala impediu a porta de fechar, para que entrasse um casal jovem de dois rapazes enamorados. Juntos desafiavam o mundo felizes na sua paixão recente.

Queria o elevador devorar os primeiros convencido que nenhuma falta faziam, mas um acidente que envolvesse também o novo par, podia até precipitar a destruição do prédio. Hesitou e parou com um estremecimento entre dois andares.

Querem ver que isto parou? Comentou um dos rapazes, enquanto pressionava o botão de alarme, sem que alguma resposta obtivesse.

O outro sofria de claustrofobia. A senhora apercebendo-se, agarrou na mão dele e disse-lhe com uma voz doce: serão só uns minutos de certeza.

O marido puxou do telemóvel para pedir ajuda e para que se acalmassem resolveu contar como sobrevivera a um quase acidente de avião.

A história não fazia sentido e prolongou-se mais de uma hora até que mesmo o elevador se entediou.

Vagarosamente levou-os ao rés-do chão e deixou-os sair ilesos.

 

quarta-feira, maio 22, 2024

CNEC 68/40 - 5/10

  

Namoravam há três anos e Romeu não tinha qualquer dúvida que era com Eva que queria passar o resto da sua vida, mas para ele estava tudo bem como estava. Moravam juntos, mas podia escapulir-se a chatices e jantares com a família dela e ir ficar antes com os seus amigos. Afinal, não eram casados.

Já Eva sonhava com a festa, e queria ter filhos, mas depois de casada.

Todavia, não queria ser ela a declarar-se. Queria o quadro completo, em que ele até dobrasse um joelho e lhe oferecesse um anel.

Se lhe mostrava fotografias de vestidos ou cerimónias ele parecia nem as ver. Tinham ido a dois ou três casamentos de amigos comuns e ele saíra-se com piadinhas sem graça sobre os enforcados.

Eva preparou então um plano infalível. Para lhe causar ciúmes, inventou um colega do trabalho, o João. Face ao desinteresse de Romeu, foi exagerando nas qualidades e no interesse que aquele lhe votava, até que a certa altura conseguiu que desconfiasse de alguma coisa. Quando aguardava que a insegurança o conduzisse finalmente ao acto mais esperado, Romeu disse-lhe que queria conhecer o João.

Foi preciso arranjar um João. Felizmente a empresa onde estava era bem grande e trabalhava lá o primo do cunhado de uma amiga que por coincidência se chamava mesmo João.

Tiveram de encontrar-se algumas vezes para que o preparasse sobre tudo de maravilhoso que o João tinha dito e feito. Ele foi super simpático e disponível, aderindo ao que ela lhe pediu.

Chegou finalmente o dia para o apresentar ao Romeu.

Este foi muito desagradável para com o João. Eva sentiu-se envergonhada. Não gostou dos ares de posse que Romeu então lhe demonstrou.

Dias depois, convidou-a para um jantar especial. Adivinhou que ele se ia declarar, mas antes fugiu com o João.

quarta-feira, maio 15, 2024

CNEC 68/40 - 4/10

 

Perfilavam-se orgulhosos cientes da sua importância.

Logo seriam escolhidos.

 

Tinha só uma pequena ideia do que o esperava.

Rumores e boatos seriam mais de mil, mas fosse como fosse, estaria à altura dos acontecimentos.

Chegara ali com alguns dos seus colegas num transporte fechado.

Quando dera por si, vira-se num espaço pouco iluminado e barulhento, rodeado pelo cheiro delicioso a pipocas. Sabia que iria acolhê-las, com sal ou açúcar e seria ele a levá-las depois. Viu tal suceder com os primeiros da fila. Bípedes chegavam até, lá esperavam em linha, recebiam os primeiros das filas, com diversos tamanhos, já a envolverem as pipocas e seguiam em direção ao mundo.

Ao chegar a sua vez, viu-se qualificado como pequeno (de certeza que não pensava assim de si próprio, ao ver-se como único e tão especial como todos ou outros) logo o esqueceu ao ver-se preenchido pelas pipocas doces. Sentia o seu calor morno e o cheiro do açúcar. Firmemente agarrado por quem o escolhera para transportar as pipocas, percebeu que afinal seguiam para outra sala mais escura, que pouco a pouco se enchia de bípedes iguais a ele, talvez sacerdotes, que de forma organizada se foram sentando, todos voltados para o altar.

Cedo este incendiou-se. Seria talvez uma janela para o mundo? Cores intensas sucederam-se, acompanhadas de sons diferenciados, às vezes ensurdecedores. Alguns dos bípedes riam, outros proferiam expressões de espanto ou adoração. Enquanto isso o seu bípede começou a devorar as pipocas.

Quando não restava mais nenhuma, o altar apagou-se. Desfeita a ordem todos se precipitavam para a saída.

Foi então que, horror dos horrores, o bípede que o trouxera ali, o dobrou e amachucou e o lançou para um balde escuro.

Terminaria ali a sua vida se não fosse salvo pela reciclagem…

 

quinta-feira, maio 09, 2024

CNEC 68/40 - 3/10

Meu Caro Mundo

 

Escrevo esta carta como uma expressão de admiração por sua constante inquietação. Devo confessar que observar a sua agitação é um deleite para mim, pois vejo as sementes da tentação florescendo em cada esquina da sua existência.

Você e eu, estamos entrelaçados em uma dança eterna. Onde há luz, eu lanço sombras. Onde há esperança, sussurro dúvidas. É uma relação fascinante, não acha?

Você, Mundo, é um terreno fértil para meus planos. Sua busca incessante por poder, riqueza e prazer é um convite aberto para minha influência. Suas guerras, suas injustiças, suas ambições desenfreadas – todas elas são notas em uma sintonia da qual eu sou o maestro invisível.

Você me fascina com sua capacidade de autodestruição disfarçada de progresso. Suas tecnologias que aproximam as pessoas também as afastam. Seus ideais de liberdade muitas vezes se transformam em correntes mais apertadas. Cada passo adiante parece ser seguido por dois passos para trás.

Mas não me interprete mal. Não estou aqui apenas para criticar. Na verdade, sou um catalisador do seu livre-arbítrio. A escolha foi sempre sua. A liberdade de decidir entre o certo e o errado é o que torna nossa relação tão intrigante.

Enquanto você luta com suas contradições, suas guerras internas e suas buscas intermináveis, estarei aqui, observando e, às vezes, dando um pequeno empurrão. Minha presença é constante, mas minha influência depende de suas próprias escolhas.

Portanto, Mundo, continue com sua jornada tumultuosa. Continue a desvendar os mistérios do universo. Saiba que estarei ao seu lado, presente em cada beco escuro da sua existência, desafiando sua moralidade e testando sua força.

Com ardente curiosidade

O Diabo

quarta-feira, abril 24, 2024

CNEC 68/40 - 2/10

 

 

Pouco se lembrava da tia-avó. Vinha-lhe à ideia uma senhora magrinha e baixinha, que pouco falava, mas parecia bondosa.

Teria estado presente em festas dos avós até que estes morreram.

Não sabia sequer que ainda era viva, até ser confrontado com a notícia de que tinha morrido e que ele era o único herdeiro.

Havia um valor depositado no Banco, “o poucochinho que ela poupou”, disse-lhe o Notário com um ar triste e sério.

Era preciso entregar a casa arrendada ao senhorio. Entrou lá pela primeira vez para escolher o que era para dar - praticamente tudo, móveis e roupas velhos. No entanto, descobriu também num guarda-fatos, um álbum de fotografias.

Apesar de não saber bem o que fazer com ele, resolveu trazê-lo consigo.

Na sua casa e com mais tempo pegou nele. As fotografias eram bem antigas. A preto e branco, mais amarelo que branco, pela acção do tempo, chegaram até ele imagens de desconhecidos, em fatos domingueiros e poses rígidas. Seriam da sua família? Pais, avós ou tios da tia-avó? Seria ela a criança que a mãe forçava a estar na cadeira? Via-se a mão direita da senhora de vestido comprido e de corpete a prender pelo ombro a menina que não olhava para ele, mas para o lado. Quereria fugir dali ou descobrir o que ficava além?

Até que na penúltima página se viu a si próprio. Tinha um corte de cabelo diferente e as mesmas roupas e pose dos demais, mas o olhar era diferente de todos os outros. Dir‑se‑ia que sorria e lhe ia piscar o olho.

Por essa fotografia, não deitou o álbum fora. Queria descobrir quem era aquele homem, tão parecido consigo.

Descobri-lo fê-lo também sentir que algo o ligava aos fotografados, a razão para ter sido o álbum precioso para a tia-avó.

 

 

quarta-feira, abril 17, 2024

CNEC 68/40 - 1/10

 

É louca.

Espreitou-a pela janela fechada.

Dançava na rua descalça, não parecia sentir os pés feridos pelas pedras nem a chuva gelada.

Pareceu-lhe que ria, julgou ouvir o seu riso.

É louca.

Porquê avó, porquê tia?

Não é conversa para crianças, vai brincar com a tua boneca.

Mas ouvia-as a falar, a avó, a tia e outras mulheres.

Até fora boa rapariga, mas fraca da cabeça.

Não o dizia, mas pensava, porquê?

Uma prima mais velha contou-lhe um dia, como vez após vez o seu ventre não segurava os bebes que perdia. O homem dela largou-a e passou a fingir barrigas.

É louca.

Terminadas as férias voltou para casa da mãe. Não voltou à aldeia, em férias divididas pelo divórcio dos pais.

Não soube o que aconteceu àquela mulher, a louca. Se se curou ou morreu e não pensava nela há anos.

Mas ali, lembrou-se.

Depois de consultas e esperas em salas cheias de grávidas, confirmando-se que o tempo o permitia, deram-lhe um comprimido.

Não hesitou. A decisão estava tomada. Não era programado ou desejado, ninguém o queria, não havia tempo nem dinheiro. Tão fácil assassinar um filho que não o seria. Avisaram-na das contrações para expelir o feto.

Foi até lá só

e regressou

sozinha.

No seu carro, antes de ligar o motor, pensou, está feito.

Lembrou-se então da louca, a dançar à chuva, louca pelos bebes que perdera e queria. Por instantes, pareceu-lhe que fora certo e com sentido, algo devia marcar que tinham existido, que não eram nada.

Depois enfiou essas ideias e memórias na gaveta fechada das mágoas adiadas para que a vida siga.

Até um dia.

quarta-feira, março 20, 2024

CNEC 67/39 - 10/10

 

 

Estávamos no Verão, mas o céu era de azul carregado e o sol nunca parecera tão distante e indiferente ao que se passa na Terra.

Pouco dormira naquela noite e quando me levantei tudo me pesava.

Estacionei o carro não muito perto, mas apesar dos meus passos arrastados, era como que puxado para aquele edifício cinzento. Nenhum cataclismo me iria impedir de lá chegar, nenhum motivo surgira para o postergar.

Reparei então na jovem à minha frente. Dir-se-ia que saltitava e quase não acreditei quando percebi que íamos para o mesmo local.

Vi como sorria à funcionária que lhe veio abrir a porta e desaparecia lá dentro.

Pouco depois fui eu que cheguei à porta e tive de entrar.

Era a minha primeira vez ali. Respondi às questões em falta para completar a minha ficha e sentei-me à espera.

Parecia impossível como lá fora a vida continuava. Ali dentro tudo parecia ter parado. Cada vez mais distante do antes, não conseguia sequer sonhar com o depois, tanto me preocupava o durante.

A funcionária veio dizer que era a minha vez e fiquei em choque. Não vira a jovem saltitante sair. Não percebia como podia ter passado por mim sem que eu reparasse nela, e sem assistir à sua saída não tivera mais alguns necessários segundos para me preparar para a minha iminente entrada.

A funcionária conduziu-me à sala, indicou-me a cadeira onde me sentei, senti o cheiro do desinfectante, vi-me rodeada de brocas e instrumentos parecidos próprios daquela sala de horror.

Veio então a Srª Drª e nela reconheci a jovem saltitante. Estava desvendado o mistério, como conseguia ela sorrir assim.

Sem queixas, nem cáries, não foi tão demorado o durante.

Lá fora o mundo mudara e esperava-me um dia bom, mesmo que chovesse, haveria sol leve, quente e brilhante.

quinta-feira, março 14, 2024

CNEC 67/39 - 9/10

 

 

 

Durante anos ele marcou a passagem do tempo, sem se enganar ou se atrasar um segundo que fosse, sublinhou todas as horas, “dong, dong, dong”, um som melodioso e audível, companhia de todos os dias

Tinha o seu lugar na sala de estar, pendurado na parede, entre os quadros de molduras douradas e paisagens bucólicas. Espreitou as visitas que se sentavam nos sofás. Reparou como foram rareando, assim como o tom do tecido rosa dos sofás ia ficando esbatido e os cortinados menos transparentes.

O Rique, filho do casal, foi estudar para fora, formou-se doutor, passou a morar longe.

Ao Sr. Doutor que pouco parava em casa, a reforma caiu mal, também ele desapareceu.

Ficou só a Dona Ema. Era ela que lhe dava corda, cada dia, pelas três da tarde, logo a seguir ao “dong, dong, dong” com que a saudava. Ouvia os seus passos leves, via-a a olhar para si, sentia as suas mãos suaves a trazerem-lhe força para continuar sempre, sem se atrasar.

Até àquele dia.

A humidade infiltrara-se pela parede, escondida pelo papel de parede rosa e pela estante, foi corroendo o estuque do parafuso que o suportava. Antes das quinze horas, e a casa no maior silêncio, viu-se a cair no chão desemparado, com estrondo.

A Dona Ema queria socorre-lo, mas já não andava muito bem. Não ligara aos suores frios, à dor no braço. Estava tão frágil que o inesperado foi suficiente para a fazer cair sobre o sofá. Quem iria valer-lhes aos dois?

Por sorte vivia ao lado uma amiga. Mais que o estrondo, estranhou a falta do “dong, dong, dong”. Ligou à Dona Ema e ao 112.

O médico disse depois à D. Ema que por pouco que se salvara, mais uns dias, seria tarde demais.

O relógio avariado foi também concertado.

 

quinta-feira, março 07, 2024

CNEC 67/39 - 8/10

 

De manhã o pai disse:

- Vamos à praia!

Tivera uma pequenina esperança que no fim-de-semana a pudessem deixar tranquila no seu canto.

Havia sol, mas estava ainda fresco e podia levantar-se a nortada. Se assim fosse, não poderiam estar lá muito tempo. Ao menos isso.

Na cozinha a mãe preparava parte da merenda, sumo de laranja e sandes de paio. Jaime, o mais novo de sete anos que detestava a escola e era sempre difícil arrancar da cama, saltou como se tivesse uma mola. Rique dois anos mais velho também aderiu ao plano. Só ela pelos vistos preferiria ficar em casa. Se ao menos se esquecessem dela.

Tralhas enfiadas no carro, o Rique fez questão de a ir buscar e de que no carro ficasse entre ele e o Jaime.

O pai, no lugar do condutor, olhou para eles do espelho retrovisor para confirmar que estavam todos e ligou o motor.

Apanharam filas de trânsito e calor, mas nada de vento e conseguiram um bom lugar no estacionamento. Jaime e Rique empurraram-na praia abaixo, enquanto os pais traziam as toalhas, guarda-sol e merenda.

Os miúdos quiseram ir molhar os pés, o pai foi com eles, e esqueceram-se dela na areia, ao lado da mãe que ficou a estender as toalhas.

Talvez pudesse dormitar um pouco debaixo do sol.

Foi então que ouviu ladrar e cada vez mais perto. Um monstro peludo veio até ela e, horror dos horrores, mordeu-a!

“Ai quem me salva, estou perdida”

Veio a mãe em seu socorro:

- Cão mau, larga a bola! E ele largou-a.

Estava meio rebentada, mas iam concertá-la disse o pai.

Talvez não fosse tão mau andar a correr antes com os miúdos, mesmo que a pontapeassem, pelo menos não a mordiam.

quinta-feira, fevereiro 29, 2024

CNEC 67/39 - 7/10

 

Talvez não jogassem grande coisa.

Talvez fossem um pouco chatos a pedir para que os deixassem jogar.

Mas ainda assim, tinha sido uma grande injustiça!

Disseram-lhes que estavam fora, que tinham de ir embora, não os queriam ali a pedinchar, como se eles pedinchassem, e expulsaram-nos do recinto.

Ficaram de fora.

Grandes estacas de madeira contornavam todo o campo e do velho portão de ferro não tinham vista, ficava demasiado longe e de lado para lhes permitir ver alguma coisa.

Do lado das estacas mais próximo, conseguiam ouvir gritos de passa a bola, imaginavam a poeira levantada pelos chutes de rapazes na bola e nas canelas uns dos outros, os empurrões, a animação quando algum se aproximava da baliza, os gritos de festejo “golo”, “golo”.

Queriam estar lá. Se não a jogar, pelo menos a ver, a torcer e a participar.

Foi então que o Jaime reparou em dois buracos nas estacas, ao mais alto não chegavam, ao mais baixo tinham de se pôr de gatas. Foi o que experimentaram fazer e de quase irmãos, solidários na expulsão, quase passavam a inimigos, porque o buraco não dava para que por ele espreitassem ao mesmo tempo.

O Jaime teve então uma ideia e para compensar um último empurrão mais forte, ofereceu-se para ser ele a ficar primeiro de gatas. Subiu-lhe para as costas e sentiu-se um rei. Via o campo todo. Enfim podiam os dois ver o campo todo, à vez, de cima ou de baixo. Não os tinham vencido, ele o Jaime é que ganharam a todos eles, hoje viam o jogo, e amanhã talvez conseguissem jogar.

quinta-feira, fevereiro 22, 2024

CNEC 67/39 - 6/10

Era bem pequeno quando uma queda o separou da família. Não sabia se teria já nascido com tal defeito nas asas ou se o mesmo foi consequência da queda. 

Ao recuperar a consciência teve a noção de que a mãe os irmãos estavam lá em cima, tentou piar para lhes chamar a atenção, mas ou não o ouviram ou pior, quiseram ignorá-lo, certos da sua morte iminente.

Suspeitou que poderia ter sido a mãe a expulsá-lo e a precipitar a sua queda, mas não queria acreditar nisso.

Tinha fome e frio. Sabia que corria o perigo de ser apanhado por predadores. Até simples e minúsculas formigas tinham reparado nele. Fugiu-lhes a rastejar, arrastando as asas que mal abriam.

Queria viver, mas as forças abandonavam-no. Talvez a morte fosse um manto claro e quente que o levasse para onde poderia voar.

Resignava-se a aceitar que morria quando foi apanhado. Foi a primeira vez que de perto viu um humano. Este tinha luvas grossas, mas foi com gentileza que o agarrou e levou para outro mundo.

Soube mais tarde que tivera a sorte de ser apanhado por um Cuidador, Paul Mesqsky.

Paul tentou tudo para o ajudar. Queria devolvê-lo à vida selvagem. Foi quando percebeu que seria impossível que sobrevivesse sozinho que o adoptou e o baptizou de Gav.

Paul começou a levá-lo consigo para onde ia e foi assim que Gav se tornou o primeiro e único gavião na Antártica. Felizmente por um curto período de tempo porque lá estava um gelo.

Na sua curta vida Gav não apenas sobreviveu quando tudo parecia contra si como inspirou outros salvamentos. 


Ou



Alcunha “Gavião”.

Porquê?

Pela forma como trepa por casas e prédios. Dir-se-ia que voa.

Mas não voa.

Não, não voa.

Olhou-o de longe. Muito magro, mal vestido. Comum, tão vulgar como os demais que para ali estavam.

Soube depois que o Gavião se metera em problemas. Falara demais, tornara-se um alvo. Lá fora não sabem das mortes na prisão. Não sabem como é sobreviver ali.

Se o mundo fosse diferente. Se também ele não andasse por ali perdido a contar os dias. Se ele fosse outro. Será que iria avisar o Gavião? Avisado já ele estava. Será que o poderia ajudar? Não via como. Tornar-se-ia também ele um alvo.

Soube que lhe tinham batido. Viu-o esmurrado, as marcas na cara, revelava as do corpo pela forma com andava.

Talvez agora o deixassem em paz.  Afinal daquela sova não contara nada.

Ouviu depois que iam terminar o trabalho. Estava marcado. Não passaria daquele dia.  Viu-o no pátio. Ele sabia. Tinha o olhar de um animal encurralado.

Houve um momento em os seus olhos se encontraram. Viu-o tão comum e pequeno, igual a si.

Algo lhe passou pela cabeça. Já tinha tido ataques antes quando falhava a medicação. Agarrou-se a um dos guardar antes de cair. Fingiu. Tão bem que a certa altura nem sabia se fingia.

A ele levaram-no para a enfermaria. Ninguém reparou que alguém aproveitara a confusão. Trepou pelos muros. Será que voou? Não, ele não voava. O Gavião fugiu e ninguém mais o apanhou, pelo menos que ele soubesse. Virou lenda na prisão. O incrível Gavião que conseguira sair dali, como se evaporasse no ar, como se voasse. Mas ele não voava.


Ou (texto de N.)

A Aldeia era pequenina e rodeada por montes verdes que pareciam estender-se para sempre. No centro, destacava-se uma igreja majestosa. Com uma aura mágica, cortava o vale ao meio e a sua torre erguia-se até ao céu. Lá no alto morava um gavião, abandonado há muito tempo pelos pais, e que nunca aprendera a voar.

 

O gavião era o único pássaro, símbolo da liberdade, pois só ele conseguia voar bem alto e espiar para lá das montanhas, trazendo notícias do mundo exterior para a aldeia. Era o papel que os seus pais tinham desempenhado, antes de desaparecerem misteriosamente.

 

O burburinho sobre o gavião fazia parte do dia a dia da aldeia, com todos temendo que ele pudesse cair a qualquer momento. Naquela época, tanto humanos quanto animais falavam. O pároco da igreja, um velho gato chamado Dom, estava muito preocupado com o seu querido gavião e decidiu liderar uma discussão entre os aldeões. Propôs que alguém mais experiente deveria ensinar o gavião a voar. Os humanos, por sua vez, sugeriram diferentes soluções, sendo a mais aclamada a ideia de fazer vários experimentos com o gavião até descobrirem como ele poderia voar por si mesmo.

 

Os humanos, em maioria, conseguiram convencer os ratos, que concordaram com a decisão. Assim, começaram os experimentos, que os humanos chamavam de científicos. Os outros animais, exceto os ratos, mantiveram-se atentos e solidários aos direitos do gavião. No entanto, de nada adiantou, pois, a decisão fora tomada em assembleia.

 

Após muitos experimentos, os humanos aprenderam tudo o que havia para aprender sobre voar. Um belo dia, decidiram ensiná-lo na arte de voar. Explicaram-lhe todos os pormenores: as asas, as patas, o corpo e até mesmo o que fazer se ele encontrasse dificuldades.

 

Chegou o momento em que o gavião, com todos os ensinamentos na mente, iria voar do alto da torre para a liberdade da aldeia. Subiu ao parapeito e encheu o peito de ar, tal como lhe tinham ensinado. A raposa, ainda atenta, alertou para a possibilidade de não funcionar. Mas as vozes dos ratos foram mais fortes: "Salta, salta!" E o gavião voou! Não muito alto, é certo, mas voou! Infelizmente, acabou por cair e morrer à entrada da igreja.

 

O gato, horrorizado com tamanha insensatez e pela perda do seu querido amigo, gritou alto e bom: "Vocês são uns humanos estúpidos e terríveis que nos trarão todas as desgraças do mundo!" Mas o que se ouviu foi apenas um miado triste e doloroso, como se a fome e a miséria tivessem invadido a pequena aldeia, perdida no meio do vale, e que até hoje ninguém jamais ouviu falar.

 

quarta-feira, fevereiro 14, 2024

CNEC 67/39 - 5/10

 

Não lhe pagaram. Como era possível? E até se riam dele. A indignação nem o deixava falar.

 

Lembrou os últimos dias para se tentar acalmar.

Estava rodeado de idiotas, incapazes de reconhecer o talento.

Se Beethoven ali caísse, seriam bem capazes de o mandar dar uma volta, rejeitá-lo-iam por não compor com o ritmo da moda, não ter a imagem de um ídolo.

Idiotas, surdos e cegos para o verdadeiro talento, procuravam cópias das estrelas do momento, completamente incapazes de reconhecer o génio, o original e único, mesmo que lhes mordesse o traseiro.

Arquitetou então um plano que acreditara ser sem falhas.

Queria tanto vingar-se que durante anos e anos estudou tons inaudíveis para os homens – humanos adultos - e o seu efeito em animais dito irracionais, especialmente ratos.

Os seus estudos foram coroados de êxito e logo pô-los em prática.

Conseguiu atrai-los, aos ratos, mais e mais, chegavam de todos os lados. Invadiram a cidade, tudo roíam, comida, móveis, roupas, o que apanhassem pela frente e nada lhes escapava. Já a eles ninguém os apanhava, corriam entre móveis, infiltravam-se pelas paredes e soalhos.

Momentos felizes esses, mas escondeu a sua satisfação quando foi ter com os governantes desesperados.

Apresentou-se então como salvador.

O seu talento como flautista seria finalmente reconhecido porque iria livrá-los dos ratos.

Acordado um valor, atraiu todos e todos os ratos para o rio.

 

E agora não honravam o prometido! Pior, riam-se dele, porque nenhum rato morto viram.

Tanta raiva deles sentia que lhe parecia que ia explodir.

 

Foi então que lhe ocorreu se a magia da flauta poderia também funcionar com… crianças.

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

CNEC 67/39 - 4/10

 

Quando despertou teve logo a sensação que algo de estranho se passava.

Como nas últimas madrugadas, os primeiros raios de rol irrompiam pelas cortinas não corridas. Ouvia o barulho dos saltos da vizinha de cima a aprontar-se para o trabalho e mais ao longe o do trânsito intenso na via rápida.

Levantou-se sem saber o que seria.

Foi só no duche que o percebeu.

Era seu hábito entoar alguma música que meio alheadamente escolhia. Mostrando-se o dia como de sol e céu azul lembrou-se do “Volare”, com o “Nel Blu di Pinto di Blu”

Abriu a boca e…

nada…

Nem um som…

Tentou pigarrear e nada se ouviu. Apenas o indiferente barulho da água do chuveiro o cercava.

Enxaguou-se, vestiu-se e sentou-se.

O que seria aquilo? O que se passava? Poderia talvez ligar para a Linha de Saúde. Não, não podia, não ia conseguir dizer nada. Nem podia ligar um amigo ou para o 112.

Seria sintoma de recente gripe? Mas não estava já curado?

Mal como estava, vou trabalhar, decidiu.

Não se cruzou com ninguém conhecido no prédio, na rua ou no metro. Chegou cedo. Viu o colega Carlos com o ar aborrecido habitual. Em vez do seu jovial bom-dia, acenou-lhe. O Carlos não pareceu reparar no diferente cumprimento.

Chegou ao seu cubículo, ligou o computador e começou a enviar e a classificar o correio.

Foi almoçar ao sítio habitual. A funcionária trouxe-lhe o prato do menu. No meio da confusão não pareceu notar que ele com nenhuma palavra contribuía para o elevado voluma de som na sala.

Passou pelo supermercado, fez compras, chegou ao fim do dia.

Talvez faltasse algo na sua vida para que ninguém se apercebesse que estava afónico.

Se não passasse no novo dia, teria de mudar e

nunca mais poderia cantar no duche…

quarta-feira, janeiro 31, 2024

CNEC 39/67 - 3/10

 

Na vida de alguns de nós podem existir momentos determinantes, que poderão definir como seguiremos ou não com as nossas vidas, se iremos ser tranquilos ou ousados, conformados ou desafiantes.

Na minha vida existiu um momento assim.

Tinha dezoito anos e sai com o meu melhor amigo para estrearmos o seu carro "novo". Este era um Fiat já com alguns anos que o tio lhe ia vender.  Fomos até à tasca da vila sem precisarmos de boleia dos mais velhos. Emborcámos umas cervejas, falámos dos nossos planos para o Verão. Sentia que a minha vida estava finalmente a começar, era adulto, podia tomar decisões por mim.

No regresso para experimentar o carro, o Miguel deu-lhe gás.

Numa curva tudo se precipitou, ele não conseguiu virar e eis-nos a descer a ribanceira. Pela janela aberta irrompiam ramos de arbustos e silvas que me cortaram os braços e a cara, a adrenalina disparou, parecia ter o coração a mil, até que o carro virou, demos três ou quatro cambalhotas, e seguro pelo cinto vi-me quando finalmente paramos, preso ao que passara a ser o tecto.

Pensava que o Miguel estava ao meu lado, mas vi-o a abrir a porta do meu lado, e a soltar-me o cinto:

- Mexe-te, tens de subir até à estrada, daqui ninguém nos vais ver!

Fiz como me disse. O caminho que fizéramos no carro em instantes, parecia nunca mais terminar. Cheguei lá acima sem forças, mas um carro viu-me e parou. Então apaguei.

Quendo recuperei a consciência estava no Hospital. Doía-me tudo, mas senti e vi que continuava a ter braços e pernas. Vi uma enfermeira e perguntei-lhe como estava o Miguel.

Ela pareceu surpreendida e respondeu-me:

- Mas não se lembra? Ele morreu na hora, o volante esmagou-lhe o tórax, não havia nada a fazer.

quinta-feira, janeiro 25, 2024

CNEC 67/39 - 2/10

 

 

Sem lentes de contacto, deixei os óculos ao lado do computador porque não preciso deles para ver ao perto, e olho pela janela.

O mundo lá fora é uma tela impressionista, tons de azul para o céu, verde das poucas árvores, cinzentos e dourados da rua e edifícios.

As pessoas são pontos escuros, reveladas pelo movimento.

Os carros, volumes maiores e mais coloridos, movem-se mais depressa.

 

Em criança podia atravessar esta rua de olhos fechados porque quase não havia trânsito e ainda não havia veículos elétricos.

Pelo som, apercebia-me da vinda e da velocidade dos automóveis, para calcular a distância e o tempo que levariam a chegar até onde estava.

Agora não me atreveria a fazê-lo. Os novos carros lembram crocodilos, passam pelas ruas como se estas fossem rios, empurrados pela corrente, escondidos na ausência de som.

 

Só quando tinha dezanove anos é que vi o meu rosto. Desde os nove, dez anos a ter de usar óculos e com a miopia a aumentar progressivamente, só com aquela idade é que comecei a usar lentes de contacto. Sem óculos já não conseguia ver o rosto inteiro e com eles, os meus olhos ficavam muito pequenos.

Quando adolescente, por não gostar de me ver com óculos, andava com eles na mão, só os colocando para confirmar o número do autocarro que queria apanhar. Em resultado não reconhecia ninguém.

Uma vez vi num saco de lixo um grande cão preto, suspeitando da sua estranha imobilidade, usei de todo o cuidado para passar por ele.

 

Quando atualizava as lentes, maravilhava-me o pormenor e detalhes que tudo em redor adquiria – conseguia ver os contornos dos paralelepípedos na rua e as pessoas dentro dos carros.

 

Coloco os óculos e olho de novo pela janela.

Desaparece a tela impressionista, e regressam os detalhes no mundo diferente.

 

 

quinta-feira, janeiro 18, 2024

CNEC 67/39 - 1/10

 

Tinha de ir a casa da mãe.

E já não sabia bem porquê.

Teriam combinado antes?

Talvez na noite anterior ela lhe tivesse telefonado. À partida não devia estar a precisar de nada, só de companhia.

Não se lembrava do que teriam conversado, se lhe ligara para casa ou para o telemóvel. Ele não se ajeitava bem com o telemóvel, já tinha perdido dois ou três e ia depois à procura de um que não fosse muito moderno para que o soubesse usar. Procurou nos bolsos do casaco para concluir que se calhar tinha perdido mais um.

Era estranho porque não se lembrava da última vez que tinha estado com ela, a última vez que lhe dera um beijo ou a abraçara. Sentia até um buraco ou aperto no coração ao pensar nisso.

Havia algo que o afligia, mas não conseguia lembrar-se do que era.

E não conseguia andar tão depressa como gostaria. Sobretudo o pé direito doía-lhe, fazia-o coxear, a dor subia-lhe depois pela perna, até à coluna. Porque razão lhe apertaria tanto a bota? Olhou para baixo esperando ver nos seus pés as botas castanhas habituais, mas a do pé direito viu que era preta.

O seu colega no quarto é que tinha umas botas pretas. Às tantas levara-lhe uma bota. Riu para si mesmo ao imaginar o André a andar de botas trocadas. Tal como ele agora.

As ruas confundiam-no. Alguém tinha arranjado os passeios, mas muitas das lojas de que se lembrava tinham fechado para dar lugar a habitações locais e mini-mercados com estrangeiros. Queria pedir informações, mas se calhar nem o iriam perceber. Deviam falar outras línguas.

Às tantas calhou ver-se refletido numa montra…tão velho, talvez com mais idade que a mãe tinha quando morrera.

Lembrou-se então do que lhe doía e regressou ao Lar.

quinta-feira, novembro 23, 2023

CNEC 66/38 - 10/10

 

Na sombra do crepúsculo, onde o sol se despede

Entre a morte e a vida, uma ponte se estende

Caem as folhas, sussurrando segredos

Há uma jornada eterna no fim dos medos

 

Entre o silêncio e o eco, dançamos na névoa.

A morte, um suspiro, a vida uma prova.

No pulsar do tempo, entre lágrimas e risos.

Somos estrelas cadentes em voos esquecidos.

 

Na dança da aurora, a vida desperta.

Cores vibrantes na jornada incerta.

O sol acaricia, a esperança floresce.

Em cada batida, a vida se estabelece

 

Mas na sombra da lua, um eco se ergue.

A morte, uma sombra, que ao longe nos segue.

Ciclo inevitável onde o fim se entrelaça.

A luz da manhã, a escuridão embaça

 

Entre o nascer e o pôr do sol

a vida é um conto, a morte, um farol

Cada passo é um verso, cada escolha, um compasso.

pudéssemos perder-nos num último abraço

quarta-feira, novembro 15, 2023

CNEC 66/38 - 9/10 - Um jantar corre mal

 

Certifiquei-me de que tinha os ingredientes e trouxe o marisco e o peixe fresco encomendado e reservado na Peixaria de manhã.

Piquei a cebola e o alho para a panela larga, reguei-os com azeite, juntei o pimento vermelho em pedaços, as lulas e os camarões, sal, pimenta, piri-piri, orégãos (o segredo) e tomate picado.

Confirmei as horas antes de lançar os mexilhões e pouco depois o arroz. O tamboril e a pescada só deveriam juntar-se-lhes quando o arroz estivesse quase pronto.

Aproveitei para completar as entradas: tomate cereja com queijo mozarela, tostas com pasta de atum, e só então foi para a panela o peixe.

Levei para a mesa pratos, copos e entradas.

Eram então vinte e dez minutos.

Marcara com ele vinte horas, já prevendo e desculpando um ligeiro atraso até dez minutos.

Fui à janela na esperança de o avistar ou o seu carro, imaginando que pudesse estar a estaciona-lo.

Liguei-lhe e não atendeu, teria o telemóvel desligado e fui directa para as mensagens. Desliguei.

Esperei alguns minutos e voltei a ligar: “Onde estás? Já tenho a comida pronta!” Tentei dizê-lo com uma voz simpática, mas não me parece que tenha conseguido.

Desliguei o disco do fogão e esperei…

Eram já quase nove horas quando ouvi que chegava.

Em silêncio aguardei que percebesse como o meu prato especial ficara completamente estragado.

Quando começou a comer as entradas como se nada se passasse, explodi contidamente.

Discutimos.

O que era para ser dos melhores, revelava-se o pior jantar de sempre.

Amuei num canto e ouvi que encomendava uma pizza.

Tratou ele de se desfazer do conteúdo da panela.

Fui atraída para a sala pelo cheiro bom quando a pizza chegou.

Talvez o meu mal fosse fome, porque arrelia passou com a primeira fatia.

Decidimos que o próximo arroz cozinhava ele.

 

quarta-feira, novembro 08, 2023

CNEC 66/38 - 8/10

 

O dia anunciava-se cinzento e pesado, em vez de branco e leve.

Mais de mil candidaturas que reduzi a três. Eliminei os que me pareceram pouco sérios ou desesperados. Os três que restavam eram humanos. Apesar de ser uma rena e não querer discriminar os meus pares não conseguia ver os meus colegas ou qualquer outro na função do Pai Natal.

Disse para mim mesmo, Rudolfo, enquanto recrutador de recursos humanos, tens pela frente, uma tarefa quase impossível, encontrar um substituto para o insubstituível Pai Natal. Mas porque decidiu demitir-se? E tão em cima do Natal…

Escolhi homens gordinhos, para o idoso, com cabelos brancos e barbas compridas.

Entrei na sala onde me esperavam. Não pareceram surpreendidos por me verem, nota positiva para eles, até perceber que não viam era muito bem.

O primeiro tinha enviado uma fotografia antiga, já não tinha barba, cabelo ou barriga. Rejuvenescera, explicou ter feito também uma cirurgia para os problemas de calvície e novo cabelo ia crescer.  Sem nada lhe ter perguntado anunciou pretender reinterpretar o Pai Natal aparecendo como alguém comum, máscara de meia na cara, e sem brinquedos. Despachei-o logo. Desconfio que ele pretenderia era assaltar as casas.

Pedi ao segundo para entrar. Parecia estar tudo bem com ele. Estava disponível na Noite de Natal porque se divorciara, os filhos estavam crescidos, já não acreditavam, tinham emigrado para a França e Alemanha, com grandes empregos e carros, só regressavam no Verão. Pedi-lhe para repetir o Oh Oh Oh. Fê-lo de forma tão desanimada que tive de o rejeitar.

Entrou o último. Apercebi-me que era um urso disfarçado. Respondeu estar disponível, conseguiu um Oh Oh Oh mais animado embora ligeiramente assustador.

 Fiquei com o seu contacto para apresentar a sua candidatura ao Director Geral, Pai Natal, enquanto não se demite, ele que decida…

 

quarta-feira, novembro 01, 2023

CNEC 66/38 - 7/10

  

A Catarina estava desactualizada ou então odeia-nos. Disse-nos para virar à direita onde havia um precipício e depois amuou, repetindo “quando puder inverta a marcha”. Não desistia de nos matar e tivemos de a desligar.

Tentei entender-me com um mapa antigo, ia dizendo ao Max, vira à direita, vira à esquerda, até que a certa altura ele parou o carro para examinar o mapa. Estava ao contrário e não era sequer daquela região.

Estávamos perdidos há horas e escurecia.

À nossa volta, da estrada estreita, só via árvores e arbustos e pareceu-me ouvir ao longe uivos de lobos esfomeados.

Max também parecia tê-los ouvido quando em voz bem baixa me disse, olha vamos em frente.

Só que também o carro estava contra nós. Max virou a chave várias vezes, mas o motor não pegou.

Ele manteve-se paciente:

- Experimentemos aquele caminho a ver se nos leva a algum lado.

Guardei para mim o receio de nos poderia levar aos lobos e segui-o.

Pouco tínhamos andado quando começámos a ouvir música popular.

Vinha de uma cabana de madeira que parecia meio abandonada.

À medida que nos aproximávamos avistámos também vultos de figuras que dançavam.

Pela música devia ser uma festa popular num lugar estranho. Mas o popular seria uma festa de bruxas pelos disfarces com que estavam, de feiticeiros, vampiros e lobisomens.

Rodearam-nos para dar-nos as boas-vindas. No entanto, senti que estavam demasiado perto. Puxei da cruz que comprei no Vaticano (da vez em que não me deixaram entrar no Museu porque o meu vestido deixava os joelhos à mostra) e eles recuaram. Agarrei na mão do Max e fugimos dali para fora.  

Conseguimos encontrar o carro e com a cruz firmemente segura na mão direita, o motor pegou. Fugimos dali e nunca mais fomos passear para aqueles lados.