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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Um objeto

Maria Helena Linhares 

Não sou moldável, mas ocupo um espaço razoável. Sou feliz porque me considero imprescindível para o meu dono, até ando muito próxima ao seu coração. Aliás muitas vezes até penso que o coração que bate tão perto de mim, faz parte de mim, porque o meu dono, ou está afanosamente a trabalhar, num stress horrível, ou em horríveis correrias, dum lado para o outro, ou pára, esgotado, e aí perde-se a afagar-me, vezes sem conta, a cabeça sempre a pensar...
Limpa-me inúmeras vezes, amorosamente, como se outra coisa não soubesse fazer na vida. Sim, ignorada nunca sou.
Ele fala comigo, até a dormir, porque eu também necessito de descansar, e faço-o a uma distância de um braço dele.
...somos um só!
Como se o descansar só fosse possível comigo tão perto.
O restante tempo é gasto sempre a girarmos, em correrias loucas, no meio das maiores barafundas possíveis.
Este homem, mesmo quando foi premiado – ouvi dizer - e subiu a um palco e falou no meio do maior silêncio e depois se ouviram muitas palmas, mesmo ali, teve que me exibir, a mim, como um troféu! Tive um medo horrível, será que me iria leiloar?
Mas não! Todos me olharam com muita admiração, o meu dono recebeu uma taça e eu voltei para o meu lugar habitual, perto do seu coração…
Perguntaram-nos (a mim e a ele, pois somos um só) – para onde corremos mais frequentemente:

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Olhó Noticias, olhá Flama

Maria Helena Linhares

Habituara-me a ver a sua figura a deambular dentro da estação, não a lançar o pregão como os outros vendedores faziam: olha o Século, olhó Notícias, olhó Record. Mas a murmurar, (penso agora, talvez por falta de forças) o que desejava ser o mesmo pregão: Olhó Notícias, olhá Flama.
E lá se ia arrastando, com as costas muito dobradas, ajoujadas ao peso do enorme sacão onde transportava todas as notícias do mundo...
Não andava, arrastava os pés, calçados com enormes alpercatas feitas de restos de
"Senhora dos jornais!"
pneu, vestida com uma enorme bata azul que, nas costas, a amarelo, devia dizer Jornais, pois pouco mais se via que o J. O resto, escondido pela mercadoria, espreitava fora do saco. Na cabeça, um lenço escuro, colocado às três pancadas, com as pontas atadas sob o queixo, não com a pretensão de embelezar mas para esconder o cabelo maltratado.
Usava uns enormes óculos, com lentes de fundo de garrafa, e, pela sua pouca visão, arrastava os pés e o corpo pesado, vergado pela carga que, sem querer, arrastava também os que apressadamente se atravessavam no caminho pesado daquela vida sofrida.
Exalava um cheiro a álcool que tresandava e incomodava os demais. Crianças e adolescentes inconscientes às vezes empurravam-na para lhe provocarem os impropérios e pragas que saíam da sua boca enfurecida.
Eu não conseguia achar qualquer graça àquela espécie de brincadeira, para mim não tinham qualquer piada pois levava à letra o que a minha mãe recomendava – com vinho ninguém se meta – mas cobardemente não fazia frente aos outros.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sonho

Maria Helena Linhares

Éramos um grupo de crianças, saltitante e garrido. Pertencíamos ao antigo ensino primário – da 1ª à 4ª classe.
Rapazes e raparigas, as meninas mais vistosas, mais enfeitadas, algumas com laçarotes na cabeça.
Eles, mais estouvados, empurrando-se uns aos outros, cavaqueando, ou atrás da bola que iam chutando pelo caminho...
Eram tempos felizes... mas para mim não o eram tanto. Dentro de mim havia como que um vazio, um desconforto, por um desejo tão contrariado que me provocava uma tristeza profunda, um desalento imenso!
Íamos andando rumo à escola e ia mirando disfarçadamente algumas colegas, pensando com os meus botões que elas é que tinham razões para serem felizes e rirem às gargalhadas por tudo e por nada.
Ah, se eu fosse uma delas como seria
plenamente feliz!
Mas eu era orgulhosa e não revelava a nenhuma amiga o meu sentir, a razão da minha tristeza.
Ah, se eu fosse uma delas como seria plenamente feliz!
Iria rir tanto, tanto, de boca escancarada, e adeus tristezas: — correria contra o vento, ainda mais
do que ele, andaria às voltas, de mãos ora na cabeça, ora postas nas saias para que elas não esvoaçassem... ai como eu iria ser tão feliz! Mas não, a minha mãe explicava, desdobrava-se em fazer-me compreender o incompreensível, mas qual quê? Quanto mais o fazia, menos eu compreendia. Porque não podia ser como a Celina, a minha vizinha? Seria fácil, tão fácil, eu prometia portar-me muito bem, estudar mais, mais isto mais aquilo...
Não! Não sejas teimosa e cala-te! O assunto morreu aqui! Não há mais conversa!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Um grito

Maria Helena Linhares

Não era cedo nem tarde... antevia-se que o sol ainda iria demorar a desaparecer na linha alaranjada e cintilante do horizonte.
Fazia ainda bastante calor, antevendo um novo dia estival, reforçando o sentimento de calmaria, motivado pelo cansaço das correrias e brincadeiras na praia.
- Aí o  meu menino!
De repente um grito, seguido de exclamações aflitivas.
 – Ai o meu menino! Ai que se afoga! – clamava a jovem mulher, tentando em vão agarrar o corpinho minúsculo da criança que se ia afastando das mãos estendidas da mãe, entre os baldões de água e areia.
Mas já outras mãos acorriam e pressurosas entravam na água e corajosa e firmemente agarravam o menino que gritava e estrebuchava buscando a progenitora...
Esta, ajoelhada no meio da água, soluçava agora já agarrada ao filho recuperado.

E o sol continuava a brilhar, e a tarde retomou a calma. Mas no ar perdurou o som daquele grito. O grito que causou espanto. O grito que salvou.

Maria Helena Linhares ©2014,Aveiro,Portugal
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