Volamantis

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Capítulo VI: Algumas Palavras Sobre Volamantis



Diário de Volamantis, 25.550° dia.

70 anos.
70 matizes.

A melodia das ondas vai se unindo às vozes das gaivotas, materializando uma sinfonia minimalista que dá forma à alvorada.
Caminho pela praia deserta num amanhecer âmbar, quase sépia.
Olho para trás e perco de vista o quanto já andei — as pegadas na areia desaparecem no horizonte.

Olho para cima e percebo os primeiros raios da manhã travando um paciente embate com as nuvens tempestuosas, numa resiliência usual que só a luz solar possui.
Meu ritual matinal diário está feito.
Me sinto pronto para começar o dia.

Sento-me em frente ao piano.
Meu velho companheiro, presente em minha família desde muito antes de meu nascimento — o mais próximo de uma herança que Malaquias havia me deixado.
Decido improvisar qualquer coisa, na intenção de destravar os dedos.
Com o tempo, uma velha melodia invade a minha mente, tornando irresistível não arriscá-la no piano.
Longe de ser um exímio pianista, consigo finalizar algo próximo de um rascunho musical minimamente aceitável, ainda na parte da manhã.

Me dirijo à janela.
O céu agora se veste de um tom turquesa, quase ciano.
O sol, agora livre das cinzentas cortinas celestes de outrora, faz questão de mostrar todo o seu esplendor, orgulhoso.

Inspiro.
Respiro.
Transpiro, me sentindo mais inspirado do que o normal.

Olhando para minha sala, é possível ver uma imensa coleção de discos, livros e retratos.
Relatos indiretos de toda uma vida voltada à investigação de meus mundos interiores e seus habitantes.
Suas vozes.
Algozes de outrora, mas que agora se revelam verdadeiras chaves para compreender todas as lacunas de meu inconsciente.
Ciente estou, contudo, de que talvez todas essas respostas não passem de meras ilusões.
Sim, é possível.
Mas são ilusões realmente belas.

Decerto, os últimos anos foram um tanto gentis comigo — talvez até mais do que eu merecesse... ou esperançasse.

Exatamente como Parsival havia previsto, meu caso foi reaberto e meu antigo processo foi anulado e refeito.
Graças a um novo julgamento, fui absolvido por falta de provas — sendo, por fim, inocentado.

Após o desaparecimento de meus 6 alter egos, a calmaria tomou o lugar deste mar até então tão agitado.
Sigo em tratamento, mas as velhas vozes de outrora nunca mais emergiram destas águas.

E que assim continue.

As feridas causadas pelos crimes de Malaquias, contudo, ainda permanecem de alguma forma comigo.
Ora se manifestando através de amargas memórias, ora através de inesperadas doenças.

O sol se põe, convidando a lua para brilhar no palco em sua ausência.
A cidade repousa após mais um dia de trabalho.
Suas bocas se aquietam, seus olhos se fecham.
Dilúculo silêncio.

Levanto-me da cama vendo a madrugada cair.
Numa insônia usual — presente singelo que o câncer me trouxe — vago sem rumo pela casa, como se pudesse encontrar o sono perdido debaixo de algum móvel.
Foi apenas o que bastou para que a exaustão do dia finalmente me fizesse visita.

No sofá, perdido em pensamentos, uma inquietação nas pontas dos dedos me acomete.
Instintivamente, uno as palmas de minhas mãos.
Consciente e inconsciente.
Luz e sombras.

De súbito, palavras se materializam em minha mente, num fluxo de pensamento quase que sobrenatural.
Escrevo-as no papel com a mesma rapidez que as mesmas adentraram minha caixa craniana — elas, arredias, escapavam-me como areia.

O dia amanhece.
Numa mesa, no meio da sala de estar, um pedaço de papel repousa.
A velha e surrada mesa — à dessemelhança de seu dono — ainda se mantinha altiva e firme, mesmo após anos de batalha.
Através de uma caligrafia um tanto irregular — à semelhança de seu dono — é possível vermos um poema escrito apressadamente na pálida folha.
Um epitáfio, direcionado a si próprio.
Sobre o papel, podia-se ler as seguintes palavras:



Na união de minha face volar,
Tal qual um mantis; louva-deus,
Nostálgico, desato-me a rezar
Nesta missa dedicada a todos os meus eus.

Início e fim partilham do mesmo momento.
Eis o diário de minha vida emocional.
Testemunhem aqui o último memento
Na dissolução desta centelha tridimensional.

Abrindo meu paraquedas paracósmico
Em meio à queda livre metafísica,
Vacilo no desfecho escatológico.
Sou apenas um personagem nesta jornada mítica.

Sem ter laços notórios,
Sem ter pertencido a algo ou alguém,
Constantemente condenado por anseios contraditórios,
Sempre fui falho na arte de me fazer bem.

Já me sabotei, me subtraí,
Me perdi, me traí.
Já me criei e recriei,
Me reescrevi, concluí.
E, me afogando nesse mar de pretensões,
Finalmente me compreendi.

Eu sou Volamantis,
Aquele que a morrer me atrevi,
E este é meu epitáfio
Que a todos os meus eus escrevi.



Abro os olhos.
Às 10 da manhã o dia me nasce.
Banho-me, como me batizasse, num profético ritual.
Às 11 da manhã meu reflexo renasce.

Deste momento em diante, me torno meu novo nome:
Volamantis, aquele que, com as palmas das mãos unidas — quase como um louva-deus —, reza.
Rezo, não tanto para uma divindade, Deus ou alguma força externa a mim; mas certamente para meus d’eus, meus eus internos — como forma de conciliar-me com estes e fazer as pazes com todos os meus passados; minhas vozes; meus aspectos internos.
Pacificando meus paraísos e infernos.
Meus universos.

Mais um dia amanhece.
De Nigredo, Rubedo resplandece.

Olho para o céu, após me despedir de meu piano.
O astro rei se mostra particularmente radiante hoje.
É dito que a luz solar leva cerca de 8 minutos para chegar à Terra a partir da superfície do Sol.
Acho de bom tom saudá-la, após sua breve jornada até aqui.
Sigo em diante, na certeza de que minha viagem de retorno até Solara será igualmente breve.

Ondas vem e vão.
Passo a passo, meus passos na areia se tornam passado.
Desapareço num devaneio.
Me somo à paisagem, até por ela ser tomado por inteiro.
Ondas vem e vão.

Assim como no princípio, às águas retorno.
Água amniótica do útero da mãe pangeia, de onde toda vida surgiu.
Mergulho-me na vastidão oceânica.
Mergulho em mim.
Re-nasço — no exato momento de minha morte.

Aqui, o vermelho é mais vermelho.
O laranja é mais laranja.
O amarelo é mais amarelo.
O verde é mais verde.
O azul é mais azul.
O anil é mais anil.
O violeta é mais violeta.

Resplandeço numa fagulha de múltiplas cores; centelha iridescente, cujas diferentes matizes se fizeram reluzentes durante toda a trajetória deste feixe de luz.
Eu sou Volamantis.
Embora a esta altura minha identidade já não mais fosse crucial, eu sou Volamantis.

Uma pacífica onda me atinge, me relembrando a essência invisível que permeia toda a existência.
Neste pequeno fragmento do tempo, eu sou um com a totalidade.
Um no todo.

Na ambiguidade da atemporalidade, aprecio a aprazível alvura da alvorada.
Acalento.

Assim, amanheço — num campo de ressignificadas verdades.
E são verdades realmente belas.

-

Recepcionado por um abraço materno.
Rememoro aquele nostálgico perfume de inverno.
Rodeado daquilo que, por essência, é eterno.
Realizo que o paraíso sempre foi um lugar interno.



Passagem.

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from Volamantis, released September 18, 2025

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