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19 de fevereiro de 2012









































Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro

5 de fevereiro de 2012




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


1-7-1916
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis

http://www.youtube.com/watch?v=dAjS2mAGdps&feature=related

25 de janeiro de 2012





Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Ricardo Reis

27 de agosto de 2011






Vai alta no céu a lua da Primavera

Penso em ti e dentro de mim estou completo.



Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.

Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.



Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,

E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,

Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,

Isso será uma alegria e uma verdade para mim.




Alberto Caeiro, O Pastor Amoroso

12 de agosto de 2011





Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

Fernando Pessoa, 23-10-1931




13 de junho de 2011



Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...

Álvaro de Campos

,

29 de dezembro de 2010







Não me digas mais nada. O resto é vida.

Sob onde a uva está amadurecida

moram os meus sonos, que não querem nada.

Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.



Sob os ramos que falam com o vento,

inerte, abdico do meu pensamento.

Tenho esta hora e o ócio que está nela.

Levem o mundo: deixem-me o momento! (...)



Não digas nada que tu creias. Fala

como a cigarra canta. Nada iguala

o ser um som pequeno entre os rumores

com que este mundo...



A vida é terra e o vivê-la é lodo.

Tudo é maneira, diferença ou modo.

Em tudo quanto faças sê só tu,

em tudo quanto faças sê tu todo.




Fernando Pessoa

13 de junho de 2010




[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 4 Ago. 1923]

Meu querido Côrtes-Rodrigues:
Há não sei quantos anos que lhe não escrevo: há tanto tempo que teria agora tanto que contar-lhe que não posso contar-lhe. Só quando falarmos — quando, encontrando-nos, falarmos longamente — poderei contar tudo quanto há a contar desde que nos perdemos de vista e de escrita.
V. o que tem feito? Notícias suas, de certo modo, tenho-as sempre tido, ou pelo Rocha (que acaba de me transmitir as saudades que me envia) ou pelo Duarte de Viveiros.
Esta carta é apenas para lhe escrever — escrever dizendo seja o que for, tornar a falar-lhe, ainda que por escrito... Tanta saudade — cada vez mais tanta! — daqueles tempos antigos do Orpheu, do paùlismo das intersecções e de tudo mais que passou! V. não imagina, apesar da enorme influência que ficou do Orpheu diminuído, moral e intelectualmente tudo.
V. tem visto a Contemporânea. É, de certo modo a sucessora do Orpheu. Mas que diferença! que diferença! Uma ou outra coisa relembra esse passado; o resto, o conjunto...
Escreva-me v., escreva-me sempre que possa. O meu endereço é o mais simples possível: apenas Caixa Postal 147, Lisboa. Se extraviar esta carta e esquecer portanto o 147, lembre-se que basta pôr: Fernando Pessoa - Caixa Postal — Lisboa. Mesmo sem número me chega às mãos.
Dê-me notícias suas, extensas se puder.
Um enorme abraço saudoso e amigo do

Sempre e muito seu

Fernando Pessoa

4-8-1923.


Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues.
(Introdução de Joel Serrão.)Lisboa: Confluência, 1944

13 de junho de 2009






Não digas nada!
Não,nem a verdade!
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
_______________
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.


Fernando Pessoa

13 de junho de 2008



Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Ah, quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens!
Dormita!
É a véspera de não partir nunca!



Álvaro de Campos

18 de agosto de 2007

Carta a Mário de Sá-Carneiro


Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...
Você acha-me razão, não é verdade?

13 de junho de 2006


Fernando Pessoa (1888-1935)



Quero ser livre insincero
Sem crença, dever ou posto.
Prisões, nem de amor as quero.
Não me amem, porque não gosto.

Quando canto o que não minto
E choro o que sucedeu,
É que esqueci o que sinto
E que julgo que não sou eu.

De mim mesmo viandante
Olho as músicas na aragem,
E a minha mesma alma errante
É uma canção de viagem.

Fernando Pessoa

.

13 de junho de 2005

Desenho de Almada Negreiros

Fernando Pessoa (1888-1935)



Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas

.

31 de março de 2005

Voam gaivotas rente ao chão.
Dizem que é a chuva a ir chegar.
Mas não, neste momento não:
São só gaivotas rente ao chão
Só a voar.

Assim também se há alegria
Dizem que assim que a dor que vem.
Talvez. Que importa? Se este dia
Tem aqui a sua alegria;
Que é que a dor tem?

Nada: só o rastro do futuro,
Quando vier, ficará triste.
Por ora é o dia bom e puro.
Hoje o futuro não existe.
Há um muro.

Goza o que tens, ébrio de seres!
Deixa o futuro onde ele está.
Poemas, vinho, ideais, mulheres —
Seja o que for se é o que há,
Há para o teres.

Mais tarde... Mas mais tarde sê
O que o mais tarde te for dando.
Por ora aceita, ignora e crê.
Sê rente à terra, mas voando,
Como a gaivota é.

Fernando Pessoa

Nota: Nem me atrevo a dizer que este é, possivelmente, o poema de Pessoa de que mais gosto, até porque talvez não seja verdade. Até porque posso reler a qualquer altura um outro poema e "lê-lo" pela primeira vez - e ser esse (re)lido o eleito. E por que é que se há-de ter um poema preferido de Pessoa?

.

9 de setembro de 2004

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei-de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas