Christiane Torloni chegou inquieta para a para a entrevista com Marie Claire. Enquanto se acomodava em uma das poltronas do Tuca, o Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, trocou o tênis por um sapato de salto. Na mochila, objetos de ensaio, o texto de seu novo espetáculo e uma garrafa de água, que deixou ao alcance das mãos. “Quis que a entrevista fosse aqui, no teatro, porque aqui é minha casa”, determinou.
Filha de Geraldo Matheus e Monah Delacy, fundadores do Teatro de Arena e expoentes de uma geração, conta que cresceu em um lar construído pela disciplina, já que naquele tempo estava em jogo o sustento da família. Desde cedo, foi educada com os pés no chão, ciente de que o sucesso é efêmero e que só o trabalho duro renderia frutos. “A conquista de uma carreira é uma conquista silenciosa, dolorida, anônima, sem aplausos.”
Foi no intervalo da rotina exaustiva de preparações para um novo espetáculo que ela relembrou as memórias de uma vida dedicada ao ofício. A atriz está em cartaz com Dois de Nós, ao lado de Antonio Fagundes, Thiago Fragoso e Alexandra Martins, uma comédia romântica que discute tempo e amor, velhice e juventude. Foi uma oportunidade para se reconectar com José Possi Neto, diretor que fez o vigor físico da atriz aparecer – hoje, os dois dançam no palco e fora dele, em uma amizade que já dura mais de três décadas.
Torloni se declara uma sobrevivente. Muito cedo, enfrentou a dor inenarrável de perder o filho Guilherme, fruto de seu casamento com o diretor Dennis Carvalho, ainda na primeira infância, “uma miséria”, como ela define. Na época, chegou a deixar o Brasil e se mudou para Portugal, onde se dedicou aos estudos de grandes dramaturgos. Em 2023, a violência do luto reaparece: a morte do pai, que ela narra com ternura. “Foi também uma oportunidade de fazer os ritos, se despedir, falar eu te amo.” O legado permanece vivo na figura da mãe, que ainda dá broncas, conselhos e aponta os caminhos, mesmo aos 94 anos de uma vida também dedicada às artes.
Quando fala, Torloni parece por vezes arredia, mas os olhos vertem o brilho de uma diva. Foi assim que se tornou uma das atrizes mais queridas pelo público, lotando plateias e protagonizando novelas de sucesso. Foi Helena em Mulheres Apaixonadas (2003), Diná em A Viagem (1994), Haydeé em América (2005), Tereza Cristina em Fina Estampa (2011) e Maria Callas no espetáculo Master Class (2016), quando foi superpremiada. “Sucesso é uma ilusão, glória é uma ilusão, ter milhões de seguidores também é uma ilusão”, avalia.
Torloni não se tornou ícone apenas pelo que interpreta, mas também pelo que diz. É uma cidadã inquieta. Caminhou nas Diretas Já, onde se tornou uma das líderes do movimento. Não satisfeita, decidiu “reflorestar” seu pensamento. Partiu em busca de proteger a Amazônia e diz que o pensamento dos povos originários guarda a chave para um futuro mais coletivo. “É impossível a gente achar que essa colonização deu certo”, defende. Com o documentário Amazônia – O Despertar da Florestania (2018), transformou seu interesse em luta, ecoando o pensamento ancestral. Sua angústia se amplifica porque não sente nas novas gerações a coragem necessária para manter a floresta – e a democracia – em pé.
“Tenho esperança no novo. Só que o novo não pode achar que é a inteligência artificial quem vai fazer o que ela tem que fazer.” A Marie Claire, a atriz também avalia o amor aos 67 anos e diz que segue lutando para ser mais gentil com sua história, aprendizado que está construindo com a ajuda do budismo. Depois de quatro casamentos – e um funeral, como ela fez questão de lembrar – afirma que os relacionamentos só prosperam com liberdade. “Enquanto continuar me surpreendendo, vou continuar me apaixonando.”
MARIE CLAIRE O que o teatro lhe ensinou?
CHRISTIANE TORLONI Cheguei ao teatro dentro da barriga da minha mãe. O teatro me faz levantar todos os dias, me descobrir. Faz renovar e curar. Se eu estiver em algum lugar do mundo que eu esteja meio atrapalhada, não vou procurar hospital, não vou procurar farmácia, vou procurar um teatro. É o lugar que restaura a alma das pessoas. Sou uma prova viva disso. Mas é um lugar perigoso, porque faz com que as pessoas mudem, cresçam.
MC Ser atriz foi uma escolha?
CT Eu tentei ser tudo, menos atriz, mas não teve como. É um apelo vocacional. Quando você se torna ator, você muda de classe, mas não é de classe social, é de dimensão. Tive uma infância extraordinária, porque pude conviver com figuras fundadoras do teatro brasileiro. Cacilda Becker frequentava minha casa! É como começar a tomar vacina desde pequenininho. Você aprende que sucesso é uma ilusão, que glória é uma ilusão, que ter milhões de seguidores também é uma ilusão. A construção de uma carreira é silenciosa, dolorida, anônima, sem aplausos. Não tem nada mais efêmero do que o trabalho da gente. Começa quando abre o pano. Quando fecha o pano, acabou.
MC O quanto há dos seus pais em você?
CT A lição principal era disciplina, a segunda era disciplina, a terceira era disciplina. Todo mundo era muito duro mesmo, de grana. Eu só percebi quando eu entrei na adolescência. Mas, eu também percebi a riqueza que a gente tinha muito cedo. Essa fortuna que ladrão nenhum leva. Porque ela vem de quem cultiva o belo, o delicado, onde se cultiva a coragem. Você pode ter muita grana e entrar numa casa que ela parece uma lápide de cemitério. Com meus pais, aprendi a humildade.
MC A televisão foi responsável por te apresentar para o grande público. Com o passar dos anos, o seu interesse pelas novelas foi diminuindo?
CT Dei muita sorte na minha vida. Meu primeiro trabalho foi em 1970, na TV Tupi. Quando fui para a Globo, ela era chamada de Vênus Platinada. Era a época de Walter Clark do Boni [ex-diretores da Globo, responsáveis pela criação de um padrão de qualidade nas produções da emissora]. Era a indústria dos sonhos, era feita por gente boa. Eu tive a oportunidade de crescer com uma empresa que também estava crescendo. Tive a oportunidade de interpretar textos de Ivani Ribeiro, Manoel Carlos, Janete Clair, Dias Gomes. Mas, eu boto o pé na televisão e não tiro o pé do teatro. Eu não fui me desinteressando pela televisão. É que fui fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, conciliava fazer uma novela, em seguida fazia um filme, depois eu fazia outro filme, depois eu voltava a fazer uma novela. Fiz meu último trabalho [a novela O Tempo Não Para (2018)], mas veio a pandemia e emendei outros projetos. Neste momento, a televisão realmente não me interessa. Eu tenho recusado papéis porque não tenho vontade de fazer o que já fiz. Ou você dá um salto pra uma coisa que você ainda não fez e vai experimentar ou você fica perdendo seu tempo. Então, é melhor fazer outras coisas.
MC No final de 2023 perdeu seu pai, Geraldo Matheus. Como viveu esse luto?
CT Tem pessoas que são pai de um monte de gente, que fizeram uma diferença enorme não só na sua vida. Esse foi meu pai. Papai e mamãe ficaram juntos 70 anos. Isso é maluco, porque agora a gente vive em tempos líquidos, relações líquidas, amizades líquidas, carreiras líquidas. Eu fui filha e testemunha dessa história. Meu pai deixou o nome dele e uma fortuna que é a sua história, que ele deixou para mim, deixou para o meu irmão, para a minha mãe. Num país em que você vê as famílias se liquefazendo por questões ideológicas, meu pai era um sujeito de muita ética. Um homem bonito, um sujeito honesto, um cara que nunca nos meteu em armadilhas e roubadas, nem filosóficas, nem ideológicas, nem políticas, nem financeiras. É um super legado. O luto é parte da vida. Ele não é uma maldição, não é um raio. Eu pude ficar ao seu lado todos os dias que ele ficou hospitalizado, a gente rindo. E teve uma hora que ele se foi, o sopro saiu. Foi também uma oportunidade. De fazer os ritos, se despedir, falar eu te amo.
MC Você também perdeu um filho. Mais de três décadas depois, a ferida cicatrizou?
CT É uma tragédia, porque é um acidente, é uma miséria. Você sabe que vai passar a vida inteira fazendo compressas no seu coração. A gente tem uma lembrança do Guilherme que é uma lembrança linda, porque era uma criança linda, mas é uma história que não teve o seu futuro. Você vê tudo que tinha ali para acontecer, ele provavelmente seria um desenhista maravilhoso, tinha vários talentos.
MC Seus pais ficaram juntos por 70 anos, até a morte. Você também viveu grandes amores, teve quatro casamentos. Ainda é possível se apaixonar?
CT Se eu soubesse a resposta, abriria uma clínica e ficaria rica [risos]. De novo, preciso dizer que tive sorte, porque foram encontros muito legais. Mas, sinto que as pessoas ficaram mais desinteressantes — ou não ando transitando no lugar certo. Às vezes você não se surpreende mais. Isso é um perigo. Quando a gente para de se surpreender, a gente deve ficar muito desconfiado com a gente. Não é o mundo que tá esquisito, é alguma coisa dentro de você que mudou, uma chave, e você não acha mais graça nas coisas. Enquanto eu continuar me surpreendendo, vou continuar me apaixonando, mas em outros formatos, provavelmente, porque você não reproduz o que já cruzou o seu caminho. Mas, sinto que há uma temeridade quando as pessoas percebem que você é um espírito livre.
MC Você assusta os homens?
CT Não sei se assusto. Acho que as pessoas têm medo, de modo geral, de uma coisa chamada liberdade. Quando elas chegam muito perto disso,têm reações, às vezes, ‘panicadas’. Elas não sabem como controlar. Eu encontrei pessoas que eram muito maiores do que eu. Isso me dá um tesão enorme. Em vez de me dar medo, é o contrário. É um foguete e eu quero ir junto. Isso me atrai. Mas a gente vive numa sociedade de temor, né? Se não fosse, a gente não teria tantos evangélicos, religiões que aprisionam o espírito das pessoas. Com o tempo, você vai ficando cada vez mais você. Isso é bom
MC Você se encontrou no budismo? Aprendeu a ser mais gentil com você mesma?
CT Acho que aprendi pouco. Tenho que aprender muita coisa ainda. Sou uma péssima budista, uma miserável perto de tudo que tenho que aprender. O ator tem essa questão da impermanência, atuar faz com que as suas placas tectônicas estejam sempre em movimento. Convivi com isso a vida toda, com meus pais, com atores, com diretores... não é fácil, ainda mais dentro de uma sociedade cada vez mais machista.
"Sucesso é uma ilusão, glória é uma ilusão, ter milhares de seguidores é uma ilusão"
MC Por que você acha que a sociedade é mais machista?
CT Eu gostaria de dizer que evoluímos, mas basta ver as estatísticas de feminicídio. Por alguma razão, acho que o tecido social do Brasil se degradou muito. Respeito todas as correntes, quem está defendendo as mulheres, as mulheres negras, as mulheres negras gays, as mulheres negras trans. É um esforço enorme. Eu fico tão impressionada com o que ouço. Mulheres lindas, mulheres bem resolvidas financeiramente, falando de abuso de todos os sentidos, intelectual, social, sexual, financeiro... sinto que piorou muito. É um embate, é como se os homens sentissem que estão perdendo o trem da história.
MC Após participar do Diretas Já e de movimentos pela preservação da Amazônia, você ainda tem esperança?
CT A gente tem que ir pra frente. Mas, esse congresso é o espelho do Brasil. Me lembro quando teve o impeachment da Dilma [em 2016], pensei: ‘São essas pessoas que me representam?’. Não, essas pessoas não me representam ou eu tô morando no país errado. No entanto, eles foram eleitos pelo voto direto. O Bolsonaro também foi eleito pelo voto direto. O que dá uma angústia enorme é você perceber que a nova geração não está fazendo o que tem que fazer. Todas as gerações têm o seu dever geracional. É pra isso que você existe. Você não nasceu por acaso em um lugar. Olha como está o Rio de Janeiro, dividido entre a milícia e os traficantes. Se todo mundo sabe, por que não se resolveu? A quem interessa não resolver? Eu tenho esperança no novo. Só que o novo não pode achar que é a inteligência artificial que vai fazer o que ela tem que fazer. Eu sou atriz, mas sou cidadã. Tudo é política. Fui educada assim. É preciso ficar atento, porque tudo que você faz tem uma reação coletiva. Por isso, nos últimos anos, fui me interessando por outra maneira de contar a história, a dos nossos povos ancestrais.
MC Como surgiu esse desejo de se aproximar da Amazônia e dos povos originários?
CT É impossível a gente achar que essa colonização deu certo. As pessoas acham que atrás de um celular estão cumprindo sua missão. Porra! Precisamos ler o Ailton Krenak. Esses dias, estava lendo o Descolonizando Afetos [livro da ativista indígena Geni Núñez]. Eu podia ter lido isso há 40 anos, sabe? Temos todo um caminho de reaprendizado. Por mais bem-intencionados que tenham sido os nossos pais e avós, eles ensinaram aquilo que eles aprenderam. E, de modo geral, somos todos filhos de colonizadores. Quer dizer, eu tenho uma parte da família que era charrua, foi laçada no sul do Brasil. A outra era espanhola, outra era italiana. Então assim, eu sou filho de colonizadores e colonizados. Só que agora, no século XXI, eu estou fazendo essa escavação. Sei que eu ainda posso me descolonizar um pouco mais, ficar um pouco mais livre e ter relações mais livres, ter considerações sobre o mundo mais livres, perspectivas mais livres. Porque eu acho que os indígenas pensaram o planeta de uma forma mais organizada, muito mais feliz, muito mais interessante do que a gente vive.
MC Você já disse muitas vezes que se considera uma sobrevivente. Ao que você continua sobrevivendo?
CT A palavra não é mais sobreviver. Consegui superar fases difíceis da minha vida. Mas quando ouvi o apelo da floresta, entendi que eu tinha que, acima de tudo, reflorestar minha mente. E isso está me tomando um tempo magnífico. Falar sobre a florestania [ideia que propõe uma evolução do conceito de cidadania para englobar uma vida em comunhão com a floresta] não é falar de um conceito, mas encontrar outra perspectiva de olhar a vida. Acho que a ideia do reflorestamento assusta as pessoas. Por isso que o vagabundo vai lá, queima, derruba, mata, assassina. Porque morre de medo de ser livre. E, acima de tudo, morre de medo de ser coletivo.