«A versão d' O Rei
Lear, que agora
se publica, apareceu inicialmente nas "Obras de Shakespeare", editadas em
fascículos pela
Tipografia Scarpa em
Lisboa, que, para
o efeito, se assumiu como editora do
projecto. [...]
O texto d' O Rei
Lear, então publicado, não figura sob o nome do seu verdadeiro
tradutor. Não é possível
estabelecer se se trata
de um pseudónimo ou
de alguém que
tivesse emprestado o nome para
o efeito. Como
director literário e organizador da edição,
soube sempre quem
era o tradutor e entrei no estratagema editorial
com pleno
conhecimento da situação.
Ao leitor menos
avisado poderá parecer
estranho todo
este esquema
da dissimulação da autoria da versão
portuguesa. A verdade é que
o nome do tradutor não
se podia revelar na altura.
Tratava-se do Dr. Álvaro Cunhal. Sob as condições da ditadura
salazarista, que suprimira todas as liberdades políticas
e exercia a coerção policial
sobre os cidadãos,
o seu nome
era anátema
para o regime. Para mais, o Dr.
Álvaro Cunhal encontrava-se na Penitenciária,
e tudo quanto
a ele se referisse era
zelosamente controlado pelas autoridades no sentido
de apagar a sua
presença. Fica assim
esclarecida a questão
da autoria da tradução e do 'mistério' que a
rodeou.
O texto entregue
impunha-se pela sua
qualidade literária
e conformava-se plenamente com o critério que havíamos adoptado para
a publicação das "Obras de Shakespeare".
Nele se nota o rigor
da expressão e a fidelidade
ao original. As subtilezas e
complexidades, que se nos deparam no texto
inglês, são
examinadas nas notas onde se explica e fundamenta
a versão adoptada. Por
mais de uma vez
se pressente nos comentários
do tradutor a inclinação para
o desenvolvimento dos temas tratados,
mas que
a natureza do trabalho
empreendido exclui à partida. A seriedade, que
preside à elaboração do texto, revela uma preparação
cuidada para
a tarefa da tradução.
O tradutor documentou-se convenientemente
e reflectiu demoradamente sobre a obra.
A questão do poder e a sua representação
nas tábuas de um
palco continuam a ter
uma importância excepcional
no que toca
ao seu aspecto
dramático. O teatro
de Shakespeare, mais do que para ser
lido, é para ser visto e ouvido,
e o texto tem, por
isso, de sugerir
uma dimensão visual
na alusão semântica
que transmite ao leitor/espectador. Esta parábola
da arte de reinar e dos
afectos, que condicionam ou perturbam a escolha
do governante, tem raízes profundas na cultura e no imaginário popular.
Frisa o tradutor que
este drama
'é admirável exemplo
da obra dum grande
artista assente
no espírito criador
do seu povo,
da fusão do génio popular.'
História bem conhecida e repetidas vezes sem conta, ela faz parte
do repertório intelectual
do espectador comum,
sendo a sua encenação
acessível a um
largo público.
O perfil psicológico
do rei Lear, a sua
aposta na sucessão,
ao querer dar o reino à filha que mais o
amasse, dão sinal de megalomania, que
é má conselheira em
matéria política.
Mas a junção
do drama familiar
com o problema
da governação oferecia ao público uma intimidade que
permitia ver de dentro,
os chamados bastidores da História, o que
este só
capta nos seus
efeitos exteriores,
julgados como consequência política. A sageza na vida
e na arte de governar, que se ganha com a experiência,
abandona o rei
Lear, deixa-o à mercê das paixões, da vaidade
pessoal e da egomania, levando à tragédia, cuja magnitude se impõe em
toda a sua
complexidade na sucessão das cenas que
constituem a narrativa do drama. A sintonia entre
o tema e as vivências
do tradutor é perfeita e revela-se nas páginas da versão
portuguesa. [...]»
Luís de
Sousa Rebelo