sábado, 29 de novembro de 2025

O GOSTO PELO CINEMA


por Jorge Silva Melo

Éramos para ir ao cinema.

Mas como nem ela nem eu, que nos conhecemos num cineclube, andamos agora muito informados e já ambos vimos os grandes êxitos que são capa das revistas, em vez de correr para as Amoreiras e escolher conforme os horários, desta vez decidimos ler os jornais.

Era sábado e havia muitos.

E em todos os jornais se falava de muitos filmes.

Ela deu um grito:

- Olha, um filme do Blake Edwards.

- Quem é?

- Não te lembras?

- Não.

- A mim o nome diz-me qualquer coisa, mas não sei bem.

- Vê lá o que é que diz aí no jornal.

Ela começou a ler. Em voz baixa. Depois, corou, olhou para mim, passou-me o jornal.

- Tenho que tomar outro café - disse ela - ainda não estou acordada.

Eu li:

Não apenas o retrato de um corpo na sua inadequação às normas do equilíbrio social mas sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.

- Se calhar é giro - disse eu, sempre cobarde.

- Apetece-te?

- Não há outra coisa?

E na minha cabeça: sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.

Olhei em redor. Estava todo o café a ler a mesma página do jornal. A senhora perfumada Heno de Pravia que pousara o saco das compras, o par de namorados high-tech, o rapaz simpático que já cruzei em duas manifestações da extrema-esquerda, a rapariga que ainda usa na lapela o dístico Marcelo Ponto. Eles deviam estar a perceber esta frase. Tenho que voltar a estudar, a reciclar-me. Tive muito boas notas na Universidade mas foi nos anos sessenta, aquilo era tudo políticas

Sobretudo uma arqueologia desse mesmo corpo em desequilíbrio nunca resolvido face ao desejo que o habita.

(Meu caro João Lopes: esta frase é tua!

Foste tu que a assinaste no Expresso de sexta-feira, 15 de Dezembro de 1989. Sabes que sempre estimei a tua frontalidade, a tua rara delicadeza, a tua pertinácia. O teu amor ao cinema. Sabes que és o único crítico de cinema regular cuja opinião me interesse e me toca.

Espero que saibas que copiar-te esta frase não é mesquinha malevolência.

Mas para que é que escreves coisas destas que, porque mal escritas, não querem dizer absolutamente nada?)

A minha amiga acabou o segundo café.

- Ah, aquele filme inglês!

- Mas é no Quarteto, não é? - perguntei eu.

- Que é que tu tens contra o Quarteto?

- Eles é que devem ter qualquer coisa contra mim. Quando lá vou, o filme está sempre dessíncrono, muitas vezes desfocado, o projeccionista diz que é da máquina, eu passo o meu tempo a levantar-me para ir protestar contra as condições de projecção... e nunca me devolvem o preço do bilhete...

Estava eu nesta azeda tirada quando a minha amiga corou de novo. Peguei no jornal.

- É de outro crítico - disse ela.

A fractura do espaço que aqui se encena magistralmente tem o seu complemento de profundidade nas vozes que, cantando, reactualizam a memória e lhe dão locomoção física; enquanto em Tempos Difíceis...

- O que é a locomoção física?

- Eu sou de Letras.

- E que é isso dos Tempos Difíceis?

- Não percebo.

- Não é o filme do João Botelho?

- É.

- E a que propósito? O filme do João Botelho foi reposto?

- Bom era.

- Então?

- Há-de ser lá coisa que o rapaz tem contra o Botelho. Como toda a gente disse bem ele só agora é que sai da casca.

- Mas lê isto sobre o filme inglês: não há em Terence Davies uma realidade anterior à reprodução, ela nasce de um contrato difícil entre o que se constrói a cada momento e o que é destruído na reelaboração do instante.

- Terence Davies, quem é?

- Deve ser um chato. Faz contratos difíceis, pelos vistos.

E na mesma respiração:

- Podíamos era ir ver o filme do César.

- Cinema português???

- Parece que é diferente. E não te lembras do César?

Estava sempre no Monte Branco com aquela rapariga...

- Vê lá o que é que dizem aí.

Ela começou a ler, encomendou imediatamente outro café.

- Acho que não. Deve haver aí politiquice.

Eu li. Era uma nota de um outro crítico ainda sobre o filme do João César Monteiro e falava era de um inquérito feito no «JL».

Como não compro o «JL»... e o jornal que lia não o imprimia em anexo...

E dizia coisas como: O debate das ideias e a saúde da reflexão sobre o cinema português devem vir para a praça pública sem o recurso a este tipo de processos que, no fundo, não servem o que mais importa.

- Percebes isto? Que tipo de processos?

- Mas do filme? O que é que diz?

- Não fala.

Não fomos ao cinema.

Acabámos por comprar um édredon nas barraquinhas da Praça de Espanha e por ir dar uma volta à chuva.

E chovia quando ela me disse:

- Vou escrever uma circular aos críticos.

- Tás maluca? Ainda te batem...

- Não. Eu acho é que eles devem andar muito sozinhos. Todo o tempo a escrever. Já devem ter deixado de perceber para que é que serve a crítica e por que é que são necessários. Não devem já saber que eu - eu, eu, eu - preciso deles! Vou-lhes dizer assim: eu preciso deles porque não posso ver tudo e não posso fiar-me só na publicidade. Os críticos são necessários porque não são attachés de Imprensa e se um filme, mesmo muito publicitado, é mau, eles podem dizê-lo.

- Mas isso foi há muito tempo, quando os críticos eram contra a sociedade de consumo.

- Lá estás tu com esquerdismos.

- Não é esquerdismos. É História.

- O que eu que é dizer-lhes que gosto deles e que preciso deles. Para me orientar. Para não enfiar barretes, para estar mais ou menos informada.

E em cada nota, eu não preciso que eles digam muitas coisas - não precisam de puxar assim muito pela cabeça. Só preciso que me digaam:

a) é um filme que trata de quê?

b) e de que modo?

c) se é um filme que vale sobretudo pela realização - e quem é o realizador e o que é que ele fez e se é dentro do género de coisas que fez ou antes pelo contrário. E a realização é original? Ou académica? Ou...?

d) se é o argumento que vale a pena, e porquê.

e) ou se é um dos actores ou o trabalho da música ou...

f) ou se é um entretém e nesse caso se o é de facto;

g) ou se é um projecto de importância industrial...

h) ou se é um filme diferente dos outros e porquê...

i) ou se é igual aos outros mas mesmo assim...

É tão simples.

E para eles, eu acho que lhes simplificava a vida! Mas devem andar tão sozinhos...

E depois de dizer isto, deu uma valente palmada na testa (a energia dos três cafés...)

- O que eu devia fazer era um inquérito. E pedir-lhes que eles só pusessem cruzinhas. Duzentas perguntas-chave e pronto. Não queres ajudar-me? Vá lá!

Disse ela.

E eu sorri.

Gosto dela. É uma pessoa com boa vontade.

*

E eu faço hoje minhas as experiências e as palavras destas minhas duas ingénuas personagens. Que muito devem ter ouvido, como eu, O Gosto Pela Música de João de Freitas Branco.

NB: Todas as citações são tiradas do jornal EXPRESSO de 15/12/89.


in «Diário de Lisboa», 29 de Dezembro de 1989.