Mostrar mensagens com a etiqueta Miguel Torga. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Miguel Torga. Mostrar todas as mensagens

23.12.11

NATAL 2011


PRESÉPIO?
Que esperança sobra de tantas promessas iludidas? Que estrelas se incendeiam no negrume das palavras vãs? Olho este povo mandado para a emigração, olho os meus filhos que já emigraram. Onde fazer o presépio?
Imóveis numa torre distante os sinos da infância. Em silêncio eterno os mortos amados. Frio de dezembro. Não fosse o Amor e nada mais restaria. É ele o meu menino Menino.
BOAS FESTAS  a todos!


NATAL
Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.
 (Miguel Torga, 1974)


PARTO
venham ver o presépio: há pouca luz.
a figura do pai desapareceu.
despedaçou-o há dia um obus.
a mãe secou o leite. não comeu

mais do que umas raízes e algum lixo.
já nem lágrimas tem para as desgraças.
não há vaca nem burro. nenhum bicho
na azinhaga apodrecem as carcaças.

não virão os reis magos. não se engana
 a agenda traficante que combina
o que pode valer a vida humana
em armamento e gramas de heroína.

no céu, mais um clarão de morte avança
de cauda tracejante que desponta.
nasceu estropiada uma criança.
e deus, se acaso existe, faz de conta.
(Vasco Graça Moura)


..................................................................


21.9.08

FIM DO VERÃO

Rasgou-se a folha do tempo. Nova página espera, como se os dias procurassem outra dimensão e as noites já não coubessem no sopro das horas.
Palavras regressam. iluminadas de outras brisas, como gente que tem saudades e traz recordações do sul.
Escorre a luz pelas tardes. Imperceptível, o Verão saiu e é de água que o tempo agora fala. Os lagos da memória guardam astros e sombras, sinais do vento ou de quando o sol se erguia mais alto e mais quente, e cada manhã trazia silêncios e perfumes.
É o Outono que aí vem? Já é o Outono?
Transfigura-se o verão. Mais doce, mais serena, chega a luz de Setembro envolta nas folhas que caem.
Hoje é o LUGAR ONDE guardamos alguns poemas que falam do Outono.


SE DESTE OUTONO

Se deste outono uma folha,

apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
Eugénio de Andrade



CANÇÃO DE OUTONO



Perdoa-me, folha seca,

não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo,

e até do amor me perdi.



De que serviu tecer flores

pelas areias do chão,

se havia gente dormindo

sobre o próprio coração?



E não pude levantá-la!

Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraqueza

é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estão

velando e rogando àqueles

que não se levantarão...



Tu és a folha de outono

voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade

- a melhor parte de mim.

Certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento,

menos que as folhas do chão...

Cecília Meireles



UMA NÉVOA DE OUTONO

Uma névoa de Outono o ar raro vela,

Cores de meia-cor pairam no céu.

O que indistintamente se revela,

Árvores, casas, montes, nada é meu.



Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.

Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono.

De sentir é só a janela a que eu assomo.



Amanhã, se estiver um dia igual,

Mas se for outro, porque é amanhã,

Terei outra verdade, universal,

E será como esta [...]

Fernando Pessoa

TRISTÃO E ISOLDA

Sobre o mar de Setembro velado de bruma
O sol velado desce
Impregnando de oiro e espuma
Onde a mais vasta aventura floresce.

Tristão e Isolda que eu sempre vi passar
Num fundo de horizontes marítimos
Trespassados como o mar
Pela fatalidade fantástica dos ritmos
Caminham na agonia desta tarde
Onde uma ânsia irmã da sua arde.

Tristão e Isolda que como o Outono,
Rolando de abandono em abandono,
Traziam em si suspensa
Indizivelmente a presença
Extasiada da morte.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Os mortos aconchegam-se, no Outono,
Aonde, sendo mais secas,
As folhas juntam o pródigo tesouro
Da tristeza.
O seu distúrbio, em torno
Dos negros troncos, festeja
O fragilíssimo lugar, o modo
De estar cedendo, a transparência
Ao movimento universal do sono
Que acorda adequação de inteligência.
E é desse lado que os mortos
Sua inocência irrequieta
Avivam. E aventam o ouro
Outonal das folhas secas.

Fernando Echevarría



OUTONO

Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga

18.12.07

OS NATAIS DE MIGUEL TORGA




Casa de Miguel Torga em S. Martinho de Anta (Vila Real). Aqui passava o Natal, na casa – entretanto restaurada – onde vivera a infância



O ano de 2007 foi o do centenário do nascimento do grande prosador e poeta Miguel Torga. (1907 - 1995) ao qual já dedicámos esta página em Janeiro de 2006.
Assinalamos o fecho das comemorações dessa efeméride com uma pequena antologia dos versos escritos pelo poeta, entre 1937 e 1990, sobre o tema do Natal.
São vinte e cinco, ao longo dos seus Diários. Pena temos de não caberem aqui todos.
Escolhendo-os, homenageamos o homem de letras e desejamos Boas Festas aos nossos leitores.



HISTÓRIA ANTIGA (1937)

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.



NATAL (1948)

Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce…
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.



NATAL (1953)

Um Deus à nossa medida…
A fé sempre apetecida
De ver nascer um menino
Divino e habitual.
A transcendência à lareira
A receber da fogueira
Calor sobrenatural.


RETÁBULO (1954)

Estranho Menino Deus é o dum poeta!
O que nasce e renasce há muitos anos
Na minha noite de Natal, fingida,
Mal corresponde à imagem conhecida
Das sucursais do berço de Belém.
É uma criança tímida que vem
Visitar os meus sonhos, e, ao de leve,
Com mãos discretas, tece
Um poema de neve
Onde depois se deita e adormece.


NATAL (1962)

Um anjo imaginado,
Um anjo dialéctico, actual,
Ergueu a mão e disse: - É noite de Natal,
Paz à imaginação!
E todo o ritual
Que antecede o milagre habitual
Perdeu a exaltação.

Em vez de excelsos hinos de confiança
No mistério divino,
E de mirra, e de incenso e oiro
Derramados
No presépio vazio,
Duas perguntas brancas, regeladas
Como a neve que cai,
E breves como o vento
Que entra por uma fresta, quezilento,
Redemoinha e sai:

À volta da lareira
Quantas almas se aquecem
Fraternamente?
Quantas desejam que o Menino venha
Ouvir humanamente
O lancinante crepitar da lenha?


LOA (1969)

È nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.


.
NATAL (1974)

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.


NATAL (1982)

Solstício de inverno.
Aqui estou novamente a festejá-lo
À fogueira dos meus antepassados
Das cavernas.
Neva-me na lembrança,
E sonho a primavera
Florida nos sentidos.
Consciente da fera
Que nesses tempos idos
Também era,
Imagino um segundo nascimento
Sobrenatural
Da minha humanidade.
Na humildade
Dum presépio ideal,
Emblematizo essa virtualidade.
E chamo-lhe Natal.


NATAL (1987)

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.

Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.


NATAL (1988)

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti


ÚLTIMO NATAL (1990)

Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.