domingo, 31 de março de 2013



é insuportável o choro da distância
a terra vermelha fez-me o barro de ti
é certo que a vala comum surge
na tua mão ausente e na intermitência
que são os teus olhos com que choro

a promessa é turva como a tua voz
relevo sobretudo a palavra marido
e junto-me a ti periclitante a cada soluço
a cada mudança horária que chegou a hora

o amor liquidifica os corpos na penumbra
é insuportável o choro da distância
a folha autoriza-me a tinta e vens despida
à beira do abismo acenas com o teu nu
fazes aquele estrondo da morte vigilante

traduz-se inconveniente o rumor de nós dois
mas que estória é essa, perguntamos em uníssono
é insuportável o choro da distância

declaradas que estão as últimas lágrimas
de quando era insuportável sermos próximos.

nuno travanca



quinta-feira, 21 de março de 2013




entoas um silêncio de cem vozes

perdidas e tensas

dispersas e rudes



e cem vozes são o quanto mais eu posso

céptico não ouvir

nuno travanca

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Noronha da Costa



 











 
na escuridão vermelha


 
recupera a imagem da decadência

ainda que traído pelo vómito
  

é também um começo, pensa


e no que se alonga em mulheres,

no peripatético bar, ante bar
 
constrói-se trágico, com pausas de nicotina

e mede bem o seu olhar de presa


é um monstro, pensa

 

enquanto anoitece, junto à janela do carro

o seu bafo quente embacia o vidro

 

talvez assim alguém possa decifrar

o seu vício

 

esse dia é hoje

 
 
nuno travanca

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

dois últimos cálices de cognac e o funeral, 
valendo a fina traça do agora velho
 
a voz explicada atrapalha
a inocência da brusquidão e da amargura
 
da palavra
 
após bebericar as farpas
 
após bebericar as vogais longamente
pendura um amigo de copos pela noite fora
 
este sabe inteiramente a cognac
e um leve travo a missa de sétimo dia


nuno travanca




quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

ecoa grito trêmulo
no redor transformado



coxeando até ao fundo

- para se abeirar da idade



pende vestes claras ao reflexo lunar



como cortá-lo, pensa



fingir-se falcão, voar e cuspir
febre pelos olhos



julgam-no definitivamente enfermo, pensa



alcançam-lhe lume embutido em garrafa de soro

até ao fundo, dizia ainda novo
  
ele chega em casa

confuso e rubro
 

o vermelho de o querer morto

poderá lavar-lhe o sangue de hoje


nuno travanca


terça-feira, 2 de outubro de 2012



pelo caminho
o cenário vai rompendo
as largas avenidas dão a lugar nenhum
mas ficam
para sempre

e um dia.

nuno travanca

sexta-feira, 28 de setembro de 2012



se algum dia pensares em ser uma doença
avisa-me
para que eu possa fechar todos os médicos
num quarto escuro
e andar em volta de ti até ganhar contágio
 
tenho um pedido a fazer:
se algum dia pensares em ser uma doença
por favor, sê contagiosa
 
nuno travanca







não gosto de vodka

gosto de biscoitos gelados de baunilha
gosto de noites inteiras de vinho tinto
e poemas do eugénio – hoje deu-me para aqui
talvez saudades
 
agrada-me o travo doce do martini
uma vez que já não posso gin –
por causa da idade e da inocência

e sobretudo gosto do teu sorriso gosto mesmo
gosto das tuas escolhas também

gosto de me sentir miúdo às vezes
cuido que talvez seja para poder gin
gosto de dizer palermices – um génio no métier

e gosto de acabar um poema
tal qual o comecei

é que eu verdadeiramente
– não é por mal 
não gosto de vodka

nuno travanca




já era tarde quando entraram
fecharam a porta à chave
fecharam a campainha à chave
fecharam a boca à chave
fecharam o gesto à chave
fecharam o sorriso à chave
o soluçar do choro à chave
fecharam a entrada do metro
a cidade inteira à chave
e a luz, água, gás, à chave
cada recanto das suas viagens à chave
fecharam os estores à chave
as memórias à chave
fecharam o forno à chave
fecharam a cama à chave
fecharam-se completamente à chave

a alegria de viver à chave
e quando deram conta já era tarde
para abrir o que fosse

quando
a chave se fechou à chave 

 
nuno travanca



só para não abrir o guarda-chuva
às vezes dou-me ao trabalho de sorrir

outras não o levo
trago-te a ti sempre chova que não chova

poupas-me o trabalho

que às vezes me dá
sorrir
 
nuno travanca