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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Festa do Livro - Palácio de Belém, Lisboa (Setembro 2017)

"O Segundo Olhar" e "O Jogo das Comparações", junto das edições da Companhia das Ilhas.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

TESTAMENTO


Se já não te puderes virar na cama
porque maleitas e ossos te impedem. Se
quase inerte és apenas um escoadouro de soros. Se jazes
entre fezes e urina ou sequer sem forças para as expelir. Se tudo
te custa desde respirar e já só um torpor injectável
te torna indistintos os dias e as noites com imagens cada vez
mais enubladas em vozes e ruídos descarnados, exige
que respeitem a casa do teu ser, corpo  
onde habitaste o teu tempo de vida. Deixem-no
fechar as portas e janelas serenamente
sem um dédalo de fios e tubos a enredá-lo
na sua merecida caminhada para um limpo nada.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

ESTENDAIS

 

Em alguns Invernos mais chuvosos,
em Miragaia que foi a Madragoa de
Pedro Homem de Mello, o Douro
salta a margem e entra pelos arcos
onde se demora no rés-do-chão
das casas, por duas madrugadas.

Mas são os estendais, à janela
agitados pelo vento nas abertas da chuva,
que nos trazem a urgência e a constância
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,
onde os poliésteres aboliram os felpos, os linhos,
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol
e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam
heróicas barrelas na espuma inocente do sabão.



I.L.
in O SEGUNDO OLHAR, Companhia das Ilhas, 2015

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

sexta-feira, 24 de abril de 2015

OS LIVROS, ONTEM E TODOS OS DIAS


OS LIVROS

Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva,
dos rios e dos mares, das fontes,
dos húmidos beijos dos
amantes, mas também


morrem despedaçados num
qualquer temporal que parte
as vidraças e lhes tolhe as páginas
numa brutal invasão líquida.

E falam do fogo
das paixões, de estrelas
a arder no infinito,
mas o convívio das chamas
é-lhes vedado, apesar
da torpe ignorância
a isso os ter condenado
tantas vezes.

Quantos naufrágios e incêndios
os destruíram, para depois
ressurgirem múltiplos,
audazes amigos tão antigos e
tão novos.



I.L.
in COISAS QUE NUNCA, &etc Lisboa 2010

sexta-feira, 17 de abril de 2015

GÜNTER GRASS


GLÓBULOS VERMELHOS


Mas nua...
e reduzida somente a proporções
fazes-me pena.
Por isso tento mudar-te o joelho de lugar.
Dá-me que pensar a tua espinha côncava.
Não compreendo porque és tão feia
nem porque sou incapaz de deixar de te olhar
para contemplar, por exemplo, o prado verde ou o rio
que são tão naturais
e não possuem clavículas.



Amo-te
como é possível.
Vou compor um ballet
para os teus glóbulos, os brancos
e os vermelhos.
Quando cair o pano
tomar-te-ei o pulso e verei
se o esforço valeu a pena.






PONTUAL


No andar inferior
uma jovem mãe bate
no seu filho
em cada meia-hora.
Por esse facto
vendi o meu relógio
e guio-me somente
pela mão dura
do andar inferior,
os cigarros contados
ao alcance da mão;
o meu tempo está bem medido.




Trad. de Egito Gonçalves
in Cadernos de Poesia HÍFEN nº5, Porto, Março 1990.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

PUER NATUS EST NOBIS


 

Dos contos de fadas da
minha infância, este da Divina
Criança era dos mais maravilhosos. Não
faltaram os exóticos magos guiados
pela mística estrela, a noite gelada, os
mansos animais, o desvalido ermo, a pobreza
transformada em glória. O bem
sucedido parto de uma virgem, tantos séculos
antes das pesquisas genéticas. O pior
foi quando quiseram contar o Tempo
a partir desta história. Podiam ter escolhido
outra, com um fim menos cruel. Antes
a da Cinderela ou a do Príncipe Sapo, onde
todos viveram felizes para sempre. Sempre?
E o que é

 
Sempre?




I.L.
in A Disfunção Lírica, & etc , 2007

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SCORPIUS


Segundo o Zodíaco, inicia-se hoje o signo astrológico do Escorpião, que vai de 23 de Outubro a 22 de Novembro. Para celebrar este nosso signo, relembro aqui, um ciclo já publicado em 2000 no livro "Um Quarto Com Cidades ao Fundo" da extinta editora "Quasi".


1.
Nessa voz grave ao fundo do espelho
procuras os pianíssimos da
secreta criança. Duas pinças estendem-se
para a boca partindo das narinas. Apesar disso
o pescoço continua ágil cumprindo a sombra.
Reflectem-se ainda os sustos dos dias luminosos
e as tenazes do medo, a urina soltando-se,
o amor invadindo um pequeno vulto
atento à morte. Adolesce esse animal incauto
num crescendo de palavras escarlate, solta
um fluxo hemorrágico de extermínio
e expulsa o sentido
para os países onde se nasce de dia.


2.
Perguntava-lhe sempre, quem
distribuía as migalhas aos pardais do terraço,
certo que seria dela esse gesto dúctil de nutrição
de pequenos seres urbanos
que se demoram nos telhados do inverno.


Mas ela só amava
os animais negros e furtivos
os insectos selvagens e as serpentes marinhas.


3.
Tinha sempre o mesmo sonho,
dois insectos, um mar negro de pinças,
escamas esmagadas, lembrava-se
que um deles recuava antes que o outro,
uma fúria em filamentos,
lhe esmagasse o ventre
de anéis.


4.
Eles respiram num enlevamento transferido
para a zona da tempestade,
na profunda implosão das narinas
circula o ar, que outros
designaram de suspiros. Os membros
excedentes ao núcleo caminham num crescendo
reptilíneo, ao encontro da voz
que descendente
retoma a fila dos minutos mansos.


5.
Nas oscilações entre a vigília e o sono
a respiração de um desperta o outro. Ambos
se chegam para o seu lado da cama
com um grande vazio ao meio,
um simulacro de repouso na esperança
de permitir ao outro que adormeça e o deixe livre
para se voltar muitas vezes, convertido
numa estátua de sal.


6.
Quem não acordou
num quarto com uma velha porta
desconhece nas frinchas os milagres
da luz da manhã. Esse jorrante fogo
de artifício doura e apaga
o uivar vespertino
do último crepúsculo.


7.
Repara como ainda os cabelos
me nascem espessos e deslizam
no dorso. As minhas coxas são longas,
os pulsos não se entumesceram
e a minha sombra não habita os mapas.


8.
Pelo interior dos braços tantos deltas
se despenham como puros óleos, aceso
cálice de macerar violetas
vindo de um oratório antigo.



I.L.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Vítor Nogueira


ANZOL


Ao fim da tarde, o cardume desagrega-se. Inteiro,
procuro reunir os meus pedaços. É a sensatez
de não abandonar o esconderijo, a prudência
com que a ave canora evita o pássaro-da-morte.

Porém, noites há que me rebentam nos ouvidos.
Todas as experiências, todos os bocados de papel.
Um anzol à minha espera, a cidade é paciente,
não perdoa. Tem a astúcia da ave de rapina.

Bem sei: na vida, o primeiro golpe de génio
acontece no momento em que avaliamos
as nossas limitações. Mas, por muito calculistas
que sejamos, podemos realmente conhecer-nos
quando o abrigo se torna insuportável.



in BAGAGEM DE MÃO, Ed. & etc , Julho 2007, pág. 46.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Herberto Helder

irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas no
                                                                    futuro, nem
visitas extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e
                                                                         das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é
                                                                  insondável,
estou mais pobre do que ao comêço,
e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,
não peço piedade, apenas peço:
não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como
                                                                                       era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda - trepai por ela acima até à
                                                                  vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que há-de medrar melhor na memória do mundo


in Servidões,Assírio & Alvim 2013 Porto, p.90 e 91.


Nota: Finalmente, graças à generosidade de um amigo, que me emprestou um exemplar de "Servidões", tenho acesso a esta magnífica obra. Sim, porque não há só especuladores na troika; guardadas as devidas proporções, também há agiotas em Portugal; quanto mais não seja para fazerem uns cobres com o açambarcamento da edição de um livro de poesia.
          Este poema que transcrevo fez em mim o efeito do "Poema em linha recta" de Álvaro de Campos. Grande, enorme, inimitável Herberto Helder, que me fazes esquecer a mesquinhez
de tanta coisa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Vasco Graça Moura

sobre a minha cidade

sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te
as esquinas do tempo, a imagem de fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre

a minha cidade e suas pedras, seus espaços
de árvores graves; e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a
poluição dos homens; e o que foi

violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário ser: costumes e conflitos,

maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu
tiveste gratidão, a viste.

que percorreste as pontes que da minha
cidade a ti me trazem, entre
gaivotas alastrando e músicas diferentes,
e foste nascer nela.

in "visto da margem sul do rio - o porto", Porto, Modo de Ler 2012.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Mamografia de Mármore

in Expresso - Caderno de Economía, 26 de Janeiro 2013

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A.M. Pires Cabral

CÃES QUE BRINCAM

I

Dois cães brincam na relva.

Disputam entre si, como se fosse
um apetecido despojo de batalha,
um trapo que um deles descobriu algures.

Um trapo que a seu tempo foi julgado inútil
e jogado fora - mas que, como se vê,
tem afinal enorme utilidade.


II

Os cães são ainda muito jovens
e pouco experientes. Fazem da posse
do trapo velho uma questão de honra,
e não sabem
que não é realmente com um trapo
mas sim com a vida-ela-mesma
que estão a brincar, quando se roubam
com ardor o trapo e correm estouvados
com ele nos dentes, embatendo nas coisas.

Ou será que acham que
vida e trapo são uma coisa só?


III


Há nos cães que brincam,
que arruaçam e arremetem
e rosnam e sacodem entre os dentes
um trapo que pelos vistos não é
um trapo simplesmente -

há neles um equívoco que convém desfazer.

Eles não brincam com um trapo.
Nem tão-pouco com a vida,
como acima se disse precipitadamente.
Visto tudo a frio, nem sequer
se pode dizer que brinquem.

A vida, sim, essa é que brinca neles
até se cansar deles e os pôr de lado.


in Cobra-D'água, Livros Cotovia, Lisboa 2011

quarta-feira, 25 de julho de 2012

José Ángel Cilleruelo

  A CASA


 Verão livros amontoados e sem ordem.
 Muito lidos, os romances de Joaquín Belda
 Assustarão a alguém. Não vão achar diário
 Nem sublimes escritos com intimidades.
 Não há quadros no quarto. Não há outra ilusão
 Além de uma esferográfica que ainda escreva,
 Um envelope, um selo... E quando procurarem cartas
 Apenas verão velhos recortes de jornal.
 Os cadernos que me ofereceram em Málaga.
 Péssimas fotografias de família. Onze
 Versos casuais de um soneto inexistente.
 E um feixe de razões para o esquecimento.
 Quando abandonar a casa o último dia
 Pouca vida mais nela encontrarão.


 trad. de Joaquim Manuel Magalhães.
 in Hífen 9 - Poesia Hispânica, Porto, Setembro de 1995.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Florbela, Adília & Pessoa


 
 
 
Nota: Neste poema publicado em 2005, fiz comparecer Pessoa, Florbela e Adília Lopes. Esta última no seu conhecido livro "Florbela Espanca
espanca", glosa um soneto da popular autora, onde esta afirma: "Eu quero amar, amar perdidamente", contrapondo um simétrico "Eu quero foder/foder achadamente". A expressão Possessio maris que evoquei para título deste poema é uma epígrafe da "Mensagem" de Fernando Pessoa e significa, em latim, "possesão dos mares". Sabe-se que a "possessão" implica também ser possuído. Pessoa descreve isso muito bem, no poema "Mar Português" do livro citado: "Ó mar salgado, quanto do teu sal/são lágrimas de Portugal!". Esta possessão pode igualmente ser convocada pela paixão amorosa realizada ou não. Lembrei-me de isto hoje, a propósito de alguns comentários no facebook, muito enjoados com a poesia e a figura de uma das nossas mais
conhecidas autoras: Florbela Espanca (1894-1930).


POSSESSIO MARIS


            para Adília Lopes

É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica e virtuosamente
foder e ser fodido. Assim

tão cruamente seja dita
a bíblica prática do conhecimento
dos corpos livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse acto de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.


I.L.
( in Logros Consentidos, Ed. & etc, 2005
Lisboa, p.18 )

quarta-feira, 18 de abril de 2012

POESIA & RESISTÊNCIA






[Resposta ao inquérito sobre Poesia e Resistência realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para a LyraCompoetics]


INQUÉRITO


A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?

Respondem os poetas:




A associação destes dois vocábulos “poesia e resistência” corresponde, usualmente, numa certa vulgata algo superficial, ao conjunto de poéticas ou aos denominados textos de intervenção, que têm por objectivo a denúncia de um regime político criminoso e repressivo.
Parece, não sei se por definição ou dúvida, que a poesia desde tempos imemoriais foi sempre uma forma de resistência aos discursos dominantes, às tarefas esclavagistas, ao torpor repetitivo das horas, às finitudes de todo o género. Desde as velhas tradições orais, do rimance e da canção de gesta, que graças a oportunas recolhas vêm resistindo até à actualidade, podemos igualmente relembrar as canções de trabalho que ainda hoje perduram na cada vez mais parca ruralidade portuguesa.
A poesia é, decerto, um outro olhar para além do senso comum, e de todos os condicionalismos sociais, morais, estéticos ou outros. Como disse Artur Rimbaud, La liberté libre não pode ser assenhoreada por nenhum mandato. Quando me acerco de um novo poeta quero ser surpreendida, entrar numa mundividência que desconhecia, sair daquele livro de poemas com algo jamais lido. Por isso, o poema será tanto mais surpreendente, quanto mais altere a percepção do leitor. Com isto se preservará da usura do tempo e para além de respeitáveis e necessários comprometimentos circunstanciais a poesia resistirá.
É, no entanto, possível aliar, simbioticamente, várias “resistências” num só texto. Citarei, por exemplo, Paul Celan, no conhecido poema Todesfuge (Fuga da Morte), que conseguiu ser resistente a todos os títulos:
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete
(trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)
Na nossa Literatura, é de sublinhar a lírica da resistência à ditadura desde final da década de trinta até 1974, tendo alguns autores sofrido até penas de prisão (Jaime Cortesão, Miguel Torga, Casais Monteiro, Borges Coelho e Veiga Leitão). Outros incluíram no seu discurso poético a denúncia da iniquidade da repressão, cantando O dia inicial inteiro e limpo da liberdade recuperada (Sophia de Mello Breyner).
Para terminar este breve depoimento, quero deter-me em dois exemplos maiores que não costumam ser conotados com o binómio “poesia e resistência”: um deles será Fernando Pessoa que, com a sua heteronímia conseguiu ultrapassar os condicionalismos de uma voz unívoca, de um só sujeito lírico, construindo um “drama-em-gente”, onde todas as inter-subjectividades são possíveis. O outro exemplo é do século XVI, mas, surpreendentemente, parece aplicável ao Portugal da actualidade:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(Os Lusíadas, Canto X, Est. 145)
Mas, como se verifica, já estamos no século XXI e resistimos à austera, apagada e vil tristeza quinhentista, lendo estes geniais decassílabos.


I.L.
Dezembro de 2011


sexta-feira, 13 de abril de 2012

Antologias breves



Vem do grego antigo, como quase tudo, a palavra "antologia". Sendo que "anthos" significa "flor" e o resto da palavra: "conjunto", "reunião". Assim, as "reuniões" ou compilações de textos de um autor costumam ser suculentas brochuras, para que a amostragem seja o mais elucidativa possível, duma obra ou temática.

No caso da Poesia, que é um género literário que pende mais para avocação da intensidade e contenção, em oposição à quantidade do que qualquer outro género, as antologias bem fornidas de lombada e inclusas páginas, são frequentes. Só que nunca são lidas na íntegra, a não ser por eventuais ensaístas ou outros estudiosos do texto poético. Os parcos leitores folheiam escassas páginas e colocam na estante, se é que as estantes não-virtuais ainda se vão continuar a usar.

As convencionais antologias de poemas recorrem, muitas vezes, a certos estratagemas: têm, por exemplo, umas protecções, no início e no final, chamadas prefácios e posfácios, geralmente encomiásticos, que se destinam a recomendar e a explicar, ao presumível e desinformado incauto, as virtudes e potencialidades do livro e do autor. Depois há mais uns truques gráficos e de custos editoriais, tipo: papel com boa gramagem, um poema por página, mesmo que sejam dísticos, texto só impresso nas páginas pares ou ditas nobres, etc. Já vi obras mais que escassas em títulos e textos aparecerem antologiadas em grossos volumes, numa legitimação de papel de boa gramagem e pouco mais de substantivo. Está bem que o denominado aspecto gráfico é importante na edição do texto poético, mas deixem a poesia ter o seu corpo-a-corpo com o presumível leitor. Ela já tem suficientes imagens dentro das palavras para nos iluminar os sentidos. Autonomizem-se dos padrinhos prefaciadores e posfaciadores. Gozem as antologias breves, escolhendo as palavras e o gosto delas, a  vosso bel-prazer. Essa liberdade, que nem sempre existiu, ainda é nossa.