Cláudio Portella
Caio
Porfírio, 50 anos de Literatura
"Estou com dois novos livros de Caio Porfírio Carneiro, o primeiro deles é 'Trapiá'
(4ª edição / 2003 - Ribeirão Gráfica e Editora, 210 págs., R$ 25,00), seu primeiro
livro de contos, publicado originalmente em 1961. O que tenho nas mãos é a quarta
edição". Apesar de passados 42 anos permanece atual, de uma atualidade que beira,
ou ultrapassa, o pós-moderno.
Trapiá é um livro de temática regionalista. Estão nele elementos do sertão.
Ali está o coronel com toda a sua empáfia e seu particular senso de justiça,
como vemos nos contos 'Milho empendoado', 'Come gato', 'Macambira' e 'Ventania'.
Está também o caboclo em sua rusticidade típica, natural, sem estereótipos,
encontrado nos contos 'A dívida' e 'O padrinho'.
O novo, o atemporal em Trapiá é a linguagem. A marca que Caio imprime em sua prosa.
Não gosto de metáforas. Mas vou usar uma, até porque tem tudo haver com o regional.
Pense num gado ferrado com CP. É isso, a linguagem de Caio é um gado, um animal
vivo, marcado, impossível de não diferenciar.
Nada de seguir os passos de Guimarães Rosa, nada de trilhar (muito embora esteja
mais próximo dele) os caminhos de Graciliano Ramos. Caio sabe bem o que faz,
fugia do lugar comum, sabia que para retratar algo não é necessário
caricaturá-lo.
Em Trapiá, quando o sertanejo fala, sua língua é a portuguesa, não um arabesco
medonho, a ingenuidade de querer 'pintar' o auto-retrato do matuto tirando uma
fotografia. Aliás, dizem que foto não tem alma.
Ler a quarta edição de Trapiá é ir além da paisagem, penso até que a paisagem
é mero acaso, o que conta é o ponto que o autor acrescenta, é o elemento que,
nós críticos, temos enorme dificuldade em explicar: o estilo próprio.
Maiores & menores: o novo Caio
Como falei, faz 42 anos que Caio Porfírio lançou seu primeiro livro de contos.
Este ano o contista lança Maiores e menores (Alpharrabio Edições, 91 págs.,
R$ 18,00). Apesar de passear pelo o romance, novela, literatura juvenil e até mesmo
poesia. Caio se consagrou como contista. Arrisco-me até em dizer que é hoje um
dos melhores contistas vivos do país.
ontramos nesse novo livro de contos um autor que finalmente pôs arreio na
técnica de escrever histórias curtas. Digo histórias curtas levando em
conta que o conto seja uma narração menor que o romance. Na apresentação
do livro há uma definição de conto pelo autor bastante perspicaz: 'O conto é conto
quando conto é. Acabou. Digo tudo e não digo nada. O mais é o mais.'
Digo sempre que estilo é para ser cultivado, regado a cada livro. Caio fez
exatamente isto em seu novo livro. Os contos são pincelados. Nada é demais,
nem de menos. Ao que me parece, há em cada conto uma equação matemática
devidamente estudada.
O livro não tem escola. É um livro de contos escritos no final
do século XX e ponto. Definições não cabem, até mesmo porque o
tempo de definir já passou, estamos no tempo de mostrar:
'Chamava-se Maria Magdalena de Souza Hermenegilda Aranha
Nogueira Ramos Paes Leme Caminha Noronha de Almeida. Magdalena com G.
Nome tão extenso aproximou-me daquela moça amorenada, nova, alegre,
espigada. (...) - Pois veja como são as coisas. Eu, ao contrário de
você, chamo-me apenas José Dico. Pode? Fui registrado assim. Você não
dá bola para nome tão grande e eu me encolho com nome tão pequeno e feio.
(...) - Não venha me dizer que não pulou a cerca durante o tempo em que
andou casada com os três coitados... - Dei alguns pulos. Pus alguns
chifres, mas não o suficiente para que eu me tornasse uma distribuidora
deles. - Então empatamos. No fundo, pelo que vejo, somos dois cínicos. -
Você acha? - Acho. - Sabe que você tem razão? E sabe outra coisa, querido? -
O que é? - Vamos tomar um lanche? Sentados temos muito mais tempo para
agredirmos um ao outro. Que tal? - Topo a briga. Não vou dar aula hoje. -
E nem pense que eu quero receber de você alguma lição. - Ensinar a você?
Santo Deus. (...) - Puxa, como você é bonita... - Você acha? E cadê o seu
tesão? - Ele vem por aí... (...) - Santa, que cacetão. E está olhando para
mim. Que susto. - Gostou? - Não experimentei ainda. - Pois vamos ver. (...) -
Pensa que sou passiva? Vai ver. (...) - Quero ver agora se você é macho.
Mete em mim essa vara ou bota ela no ombro e vai pescar noutra lagoa. -
O meu pinto não tem anzol. - Anda, macho. Deixa de frescura. Começa a
trabalhar. (...) - Professorzinho de merda. Nem ensinar a transar sabe
direito. Vem, vem ver se eu sou analfabeta. Vem... vem... - Estou indo,
porra... Você quer que eu lhe atravesse e o meu pinto saia nas suas costas?
Isto é um pênis, não é uma lança de guerra. - A batalha é grande.
Continua guerreando com essa lança enferrujada. Vem, vai... (...)
O atendente, que me conhecia, balançou a cabeça de admiração: -
Foi a mulher mais bonita que o senhor trouxe aqui. Que peixão. -
Respeite. É baronesa. Sabe como é o nome dela? Puxei o papel do bolso: -
Maria Magdalena de Souza Hermenegilda Aranha Nogueira Ramos Paes Leme
Caminha Noronha de Almeida, ouviu bem? E mais: Magdalena com G. Ela é
nobre, sabe o que é isso? Nobreza. Realeza, meu amigo, realeza. Saí
pisando firme, feito um verdadeiro lorde, pensando em adquirir, não
sabia onde, uma cartola, um par de luvas brancas e um bengala.'
(Do conto Realeza)
Caio Porfírio
Carneiro, 75 anos, mais de meio século dedicado à boa literatura, no
conto.
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