A presente edição de Dual integra-se num novo plano de publicação da Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Para além da fixação definitiva do texto, a cargo de Luis Manuel Gaspar, regressa-se à edição autónoma de cada um dos livros de poemas da autora, de acordo com critérios definidos em Nota final. Assim, a Obra Poética de Sophia em três volumes, que a Editorial Caminho publicou entre 1990 e 2003, deixa de existir, cremos que com vantagem para os leitores, em nome de uma mais adequada difusão da obra da autora.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN nasceu no Porto, a 6 de Novembro de 1919. Entre 1936 e 1939 frequentou o curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que não concluiu. Foi Presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Escritores e Deputada à Assembleia Constituinte, pelo Partido Socialista (1975). A sua obra reparte-se pela ficção e pela poesia, embora seja nesta última que a sua inspiração clássica dá ao seu verso uma dimensão solar e luminosa, que permite ouvir nitidamente a palavra com todo o peso da sua musicalidade limpa, ao encontro do modelo clássico. Entre as suas obras poéticas contam-se Coral (1950), Mar Novo (1958), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994) e O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997). Em ficção publicou Contos Exemplares (1962) e Histórias da Terra e do Mar (1983). Da sua literatura infantil destacam-se O Rapaz de Bronze (1956), A Menina do Mar (1958), A Fada Oriana (1958), O Cavaleiro da Dinamarca (1964) e A Floresta (1968). Em 1999 é-lhe atribuído o Prémio Camões, pelo conjunto da sua obra, e em 2001 ganha o Prémio Max Jacob de Poesia. Foi condecorada pela Presidência da República com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada, em 1998. Faleceu em Lisboa, a 2 de Julho de 2004.
In Eduardo Lourenço's words, the author of this preface, "Dual," refers to the pilgrimage's space of light and reason. "In the West, in memory, Greece's very name conveys, and with it, poetry, in the form of prose. When, in her nubile age, Sophia learned to read, to see, to breathe the world."
“Em ti eu celebrei a minha união com a terra” (12).
“Patas dos corcéis da tempestade Tão concisas tão duras e tão finas Puro rigor de espigas — arquitrave Medida amor e fúria se combinam” (17).
“Desde a orla do mar Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim Desde a orla do mar Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas E nadei de olhos abertos na transparência das águas Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa Para fundar no sal e na pedra o eixo recto Da construção possível” (20).
“ (…) Murmurei o teu nome O teu ambíguo nome
Invoquei a tua sombra transparente e solene Como esguia mastreação de veleiro E acreditei firmemente que tu vias a manhã Porque a tua alma foi visual até aos ossos Impessoal até aos ossos Segundo a lei de máscara do teu nome
Odysseus - Persona
(...)
Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo [que é olhado por um deus Aquilo que o olhar de um deus tornou [impetuosamente presente -
Na manhã de Hydra No café da praça em frente ao cais vi sobre as mesas Uma disponibilidade transparente e nua Que te pertence
O teu destino deveria ter passado neste porto Onde tudo se torna impessoal e livre Onde tudo é divino como convém ao real” (54-56).
“Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo O meandro do rio o fogo solene da montanha E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre Emergiam em consciência que se vê Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia - Esta existência desejávamos para nós próprios homens Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem O estar-ser-inteiro inicial das coisas - Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece E também à treva interior por que somos habitados E dentro da qual navega indicível o brilho” (65).
“Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste «acontecer». O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto. É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir. Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador. (…) É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível — como a película de um filme — ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e esse aparecer” (76-77).
Houve partes deste livro que apreciei bastante. No entanto, pensando neste livro como um todo, não é propriamente o meu estilo de poemas. Gosto deles crus, de palavras violentes e que deixam uma interpretação aberta. A escrita, no entanto, é de uma qualidade que não pode ser ignorada, e a forma como a autora descreve o seu processo criativo e poético no fim do livro é algo extremamente bonito, e com que, se me atrevo a dizer, me relaciono um pouco.