terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Cuco

 


ESSE NEGÓCIO DE ÉTICA E MORAL é invenção humana. Na floresta, na natureza, não existem tais coisas. E não é de espantar que nossa espécie, fazendo parte da natureza que não é moral, produzir seres morais como nós? Alguns dirão que isso é prova de que fomos criados de forma especial, por Deus. Um argumento bonito mas que para mim levanta outra questão: Como Deus pode ter uma moral? Deus é capaz então de praticar algo imoral, algo que vá contra sua moralidade? Se Deus for incapaz de fazer algo imoral, então ele não é um ser moral e se ele é capaz de fazer algo imoral, não pode ser moralmente perfeito.

E lá tô eu outra vez enveredando por filosofias e teologias. Não quero ir por aí. Mas a citação é para ilustrar a curiosa moral (ou não moral) do Cuco, esse pássaro que tem hábitos reprodutores sui generis. O Cuco pratica o Parasitismo de Ninhada: eles não constroem ninhos próprios nem criam seus filhotes. A fêmea busca ninhos de outras espécies de pássaros, como canoros, e deposita seus ovos neles.

Olha só isso! O feminismo radical contra os filhos foi inventada pela fêmea Cuco e não por alguma acadêmica progressista de cabelo azul e sovaco cabeludo. Fico pensando o que leva a fêmea Cuco fazer isso. Por quê a Seleção Natural criou nelas tal instinto nada moral pelos padrões humanos, apesar de fêmeas humanas também fazerem coisas parecidas...

E olha os requintes de imoralidade da Cuco: Para não ser descoberta, elas botam ovos que imitam a cor e o padrão dos ovos da espécie hospedeira. Existem diferentes populações de cucos com ovos de cores diferentes, cada uma especializada em um tipo de hospedeiro.

Mas o mau-caratismo não para na mãe Cuco, pois os filhos seguem o exemplo. Assim que nasce, o filhote de cuco instintivamente empurra os outros ovos ou filhotes para fora do ninho...

No alto da minha moralidade judaico-cristã eu já estou aqui a odiar os cucos. Aliás, não, odiar pode não ser moralmente justificável. A não ser que você odeie o que todo mundo odeia, tipo uva passa no arroz de Natal.

E olha como a ave que levou o golpe é tonta: a ave hospedeira, sem perceber a diferença, passa a criar o filhote de cuco como se fosse um dos seus, alimentando-o até que ele se torne independente.

Isso que é parasitismo bem sucedido!

E os filhotes cucos crescem bem rápido, em poucos dias já são maiores que seus pais adotivos e ludibriados, e migram sozinhos para o sul no inverno e voltam na primavera para reiniciar os atos nada éticos de darem seus filhos para outras criarem.

E se foi Deus também quem criou os cucos, gostaria de perguntar a Ele porque resolveu colocar neles tal prática. Mas se na natureza não há moralidade,  Deus resolveu não levar a moral tão à sério assim, a não ser com a espécie humana. Eita que lá estou eu a teologizar de novo!


E olha como são bonitinhos. Bonitinhos e ordinários, diria Nelson Rodrigues.


(...)

Mas até que olhando bem, eles tem um olhar meio bizarro...






quarta-feira, 26 de novembro de 2025

As Dores do Mundo

 

Alma e mente se comunicando e ponderando sobre as dores do mundo, que são na verdade, nossas dores. Alma seria o nosso sentimento e a mente a nossa razão? Sentimos a dor e refletimos sobre ela. O mundo está sempre em mudanças (nem sempre para melhor). Tudo evolui, inclusive as sociedades. O que nos deixa pasmos é que depois de tantos milênios de evolução social, ainda tenhamos no mundo tantas diferenças abissais. Não acredito em zero diferenças. Não é possível. Todo ser humano é um universo próprio. Mas certamente, gostaríamos de ver  e de ter um mundo menos injusto.

Escrevi o comentário acima no blog do poeta Jaime Portela para seu poema O Mundo Doi-me

Depois fiquei pensando na expressão "as dores do mundo" e lembrei-me que esse é o título de um dos livros do filósofo Artur Schopenhauer. O livro é considerado uma das obras clássicas da filosofia alemã, abordando reflexões sobre a existência e propondo uma nova forma de pensar sobre a dor e a felicidade.

O principal argumento do filósofo é de que a existência é a própria dor. O mundo como um lugar de expiação. Viver é sofrer. O filósofo chegou à conclusão de que a vida nada mais é do que uma busca incessante por satisfazer desejos que logo após serem satisfeitos, geram novas frustrações e novos desejos. O  ciclo dos desejos a serem satisfeitos é infindável e isso é dor. Diz o autor que

O bem, a felicidade, a satisfação são negativos porque não fazem senão suprimir um desejo e terminar um desgosto (...), em geral, achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa, ao passo que as dores a excedem sobremaneira...

O núcleo do pensamento de Schopenhauer é a VONTADE. A Vontade é uma FORÇA IRRACIONAL, cega, que nos impulsiona a todo momento todos os seres. Somos manifestação dessa Vontade metafísica e como a Vontade nunca encontra onde repousar, a inevitável consequência é o sofrimento. 

Não queremos todos a "felicidade"? Sim, e esse desejo é vão. É uma ilusão, pois nunca existirá felicidade plena, apenas momentos breves de um alívio do sofrimento. A dor, esta sim é real e positiva, o prazer é passageiro, vazio, ilusório. 

Isso me fez lembrar de alguns versículos do Eclesiastes (meu livro preferido da Tanak (Antigo Testamento), ao lado do livro de Jó): 

É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério! O coração do sábio está na casa onde há luto, mas o dos tolos, na casa da alegria. 

(Eclesiastes 7:2-4)


A dor nos faz refletir, a alegria nos faz esquecer que somos pó. 

Essa condição nos atinge até mesmo quando não estamos sofrendo, pois constantemente somos tomados pelo tédio. E aí lembrei-me da música do grupo Biquini Cavadão:


Sabe esses dias

Em que horas dizem nada

E você troca o pijama

Preferindo estar na cama...


Sim, sabemos. Todos sabemos.


Sentado no meu quarto

O tempo voa

Lá fora a vida passa

E eu aqui à toa

Eu já tentei de tudo

Mas não tenho remédio

Pra livrar-me desse tédio...

Até mesmo quando não temos plena consciência de que estamos vivendo no tédio das nossas rotinas, ainda assim o tédio está lá e em algum momento ele pulula como uma alergia de pele. 

A existência é um pêndulo...ora oscila para o sofrimento, ora oscila para o tédio. A felicidade é uma intrusa.

Schopenhauer faz uma crítica voraz à sociedade, que ele via como superficial e hipócrita. O que tem valor para as pessoas são suas ambições sociais, seus status, ser reconhecido. E isso tudo não passa de doce ilusão que aumenta a infelicidade na proporção direta em que as buscamos.

Por isso, a vida em sociedade intensifica a dor.

Qual o remédio de Schopenhauer para a dor, o sofrimento e o tédio? Valorizar a solidão e o afastamento dos prazeres mundanos. A solidão seria mais saudável, pois conviver diariamente com outras pessoas sempre traz conflitos e frustrações. 

Mas o filósofo dá uma saída: A VERDADEIRA PAZ ESTÁ EM REDUZIR OS DESEJOS. Preferir uma forma simples de viver e cultivar a própria interioridade. 

Os críticos de Schopenhauer o acusam de ser um "pessimista radical", porém, há algo que o filósofo vê como positivo: A BASE DA MORAL DEVER A COMPAIXÃO. Quando reconhecemos o sofrimento alheio como sendo nosso sofrimento, desenvolvemos empatia.

A compaixão é a forma de aliviar - mas não extinguir - as dores do mundo.

Schopenhauer vê também na arte uma busca de alívio, especialmente a música. Ela teria o poder de suspender temporariamente o domínio da Vontade, e assim, experimentamos uma redução da dor.    

Porém, não há como escapar - esse alívio será sempre momentâneo. 

Podemos negar a Vontade, reduzindo os desejos, evitando paixões e buscando uma vida mais austera que diminua o sofrimento. Nesse aspecto, o filósofo se aproxima das tradições orientais, com o budismo.

Concluindo, podemos discordar do "pessimismo" de Schopenhauer, mas nunca poderemos negar que ele estava certo ao definir a existência como sofrimento. Já começamos a vida, chorando...as dores do mundo estão aí, a todo momento batendo em nossa porta.

Para finalizar (olha o que teu poema me fez escrever, Jaime!), trago a nossa poetisa Cecília Meirelles para a conversa, pois aparentemente, ela deveria concordar com tudo o que disse o filósofo:



És precária e veloz, Felicidade.

Custas a vir e, quando vens, não te demoras.

Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,

e, para te medir, se inventaram as horas.



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É claro que você pode negar o pensamento de Schopenhauer e defender o hedonismo, que defende que a busca pelo prazer ou a busca pelo bem-estar deve ser o mote da vida humana. Mas isso pode ser papo para uma outra crônica de filosofia de botequim. 

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Ilustração: GPT