17.3.25

Trump e a paz

21:40


Não acredito numa palavra de Trump, não acredito que queira a paz, nem que lhe interesse minimamente o respeito pelo direito internacional. Quando Trump afirmou, em campanha, que conseguia a paz entre a Ucrânia e a Rússia em 24 horas, estava, claro, a mentir – o que não se estranha.

 

No entanto, temos de admitir que Trump demonstrou que era possível agir para empurrar a Ucrânia e a Rússia para uma negociação. Trump é uma marioneta de Putin - compreende-se, eles são, superficialmente parecidos em termos de desrespeito pela democracia. Por isso mesmo, Trump não vai procurar uma paz justa, vai procurar beneficiar – mais precisamente, lucrar – com todo o processo. Até por isso, seria melhor que outros tivessem tomado a iniciativa de levar a Ucrânia e a Rússia para a mesa das negociações.

 

Então, porque é que Biden não tomou essa iniciativa? Porque é que a União Europeia não tomou essa iniciativa? Teria sido preferível que essa necessidade – provocar negociações para a paz – tivesse sido preenchida por gente mais fiável do que Trump. É incompreensível que tenham ficado à espera de Trump para que esse passo fosse dado.

 

Tudo isto tem, na base, um problema: o chamado "Ocidente", com a derrocada da União Soviética, passou a desprezar as preocupações de segurança da Rússia. A arrogância "ocidental”, convencida de que podia "entalar" a Rússia, encostá-la à parede, aproveitando esse momento de aperto, foi uma atitude míope. O "Ocidente", literalmente, enganou Gorbatchev, aproveitando a fraqueza do seu país nesse momento, e tirou tudo o que podia da situação, numa mesquinhez de vistas curtas, desprezando as garantias que sugeriu ao homem da perestroika.

 

Qualquer estadista que tivesse feito a escola primária das relações internacionais sabia que isso não podia durar no longo prazo. A Rússia, por muitas fraquezas que tenha, é uma potência com um pé na Europa e a Europa só pode ser segura para todos se todos sentirem que têm garantias de segurança. Cercar sistematicamente a Rússia, encostar-lhe armas às suas fronteiras, é irresponsável.

 

A Rússia é uma ditadura horrível. Mas nunca foi com isso que o "Ocidente" governamental se preocupou. O "Ocidente" foi oportunista, foi irresponsável, distraiu-se do ponto básico: só há segurança para nós se houver segurança para todos. A Rússia desprezou o direito internacional ao invadir a Ucrânia e o "Ocidente" esteve certo em colocar-se do lado do invadido. Certo. Mas não chega. Era preciso ter começado a preparar uma saída razoável para todas as partes. Era preciso ter levado a sério o futuro, não apenas a crise presente.

 

A guerra é um limite existencial. A guerra é a suprema irracionalidade. A guerra é o motor por excelência do sofrimento humano. É insuportável ouvir falar de "vamos dar a vida por isto e por aquilo" - sendo que só dizem isso aqueles que nunca irão à guerra ficar estropiados e morrer. Ter esperado que chegasse Trump para começar a pensar como acabar com a guerra, foi simplesmente uma irresponsabilidade e uma desumanidade. Não alinho nos falsos pacifismos ingénuos, não é desarmados e à mercê das armas dos outros que podemos contribuir para a paz; se não tivermos força nada podemos determinar de positivo no avanço para a paz. Precisamos, na Europa, dos nossos próprios meios para nos autodeterminarmos - mas temos de usar da nossa força para construir uma segurança comum, porque não existe segurança só para um dos lados.

Parece que quase todos os dirigentes políticos da Europa esperaram pela chegada de Trump para compreender isso. Desgraçadamente.


(A ilustração acima foi gerada por Inteligência Artificial, a pedido.)

Porfírio Silva, 17 de Março de 2025
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15.3.25

Por uma radical defesa das instituições


Deixo aqui, para registo, o editorial que publiquei ontem (14/03/2025) no Acção Socialista.

***

Há algumas semanas, aquele que chefia o partido de extrema-direita no nosso país, acossado por mais um dos escândalos de grosso calibre que têm minado uma larga fatia do seu grupo parlamentar, recorreu à sua manobra habitual: partir para o insulto para tentar desviar a atenção. Um dirigente do seu partido estava acusado da prática de sexo com menor a troco de dinheiro e o presidente da agremiação, em vez de começar pela sua casa política a “limpar Portugal”, decidiu insultar, repetidamente, dois antigos deputados, antigos ministros, antigos dirigentes socialistas: Paulo Pedroso e Eduardo Ferro Rodrigues, este último ex-Secretário-Geral do PS e recente (2015-2021) Presidente da Assembleia da República. Os insultos foram proferidos nas instalações da Assembleia da República e foram distribuídos entre o próprio hemiciclo, no plenário, e os Passos Perdidos. 

O atual Presidente da Assembleia da República (PAR), José Pedro Aguiar-Branco, não se deu por achado. O que estava em causa não era apenas uma expressão política mais forte, nem uma mera deselegância. Era insulto. Era pura difamação. Não era uma opinião política, era mais uma mentira, uma calúnia soez. 

Na primeira oportunidade em plenário, o Grupo Parlamentar do PS, pela voz do seu vice-presidente Deputado Pedro Delgado Alves, não apenas denunciou a situação, que qualificou como “mentira” e “difamação de servidores públicos toda a vida, de lutadores pela democracia, construtores da democracia", como solicitou que houvesse explicitamente um “reparo”, um “repúdio” do ataque, em defesa do antigo Presidente do Parlamento. 

Apesar dos desenvolvimentos que estão em discussão no que toca ao Código de Conduta dos Deputados, Aguiar-Branco, que não estava a presidir aos trabalhos no momento em que a questão foi suscitada pelo PS, nunca deu qualquer sinal de entender que não podia acomodar-se ao insulto e à difamação de um antigo Presidente do Parlamento. 

Perante o ruidoso silêncio de Aguiar-Branco sobre esta matéria, Eduardo Ferro Rodrigues enviou, a 24 de fevereiro passado – soubemos agora – uma carta à segunda figura do Estado. Aí se pode ler: 

“Doze dias passaram sobre estas calúnias, muitas das quais proferidas no Parlamento de que Vossa Excelência é Presidente, algumas delas em Plenário e lembradas na Conferência de Líderes que Vossa Excelência dirige. 

Foram muito graves institucionalmente as ofensas difamatórias e cobardes proferidas contra mim. 

Fui com muito orgulho e honra Presidente do Parlamento, eleito e reeleito em 2015 e 2019. Nunca ficaria em silêncio perante qualquer insinuação ou calúnia feitas nessa AR contra qualquer dos Presidentes que me antecederam – Barbosa de Melo, Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama ou Assunção Esteves. Nunca permitiria que os caluniassem ou ofendessem, em nome de qualquer "liberdade de expressão". 

Estou seriamente ofendido e indignado. Sinto-me atingido na minha honra pelas palavras de quem me caluniou e também pelo silêncio do Presidente da Assembleia da República. 

Espero que atempadamente ainda se pronuncie sobre tudo isto, também em defesa do prestígio da Instituição que tem a responsabilidade de representar.” 

Embora tenha lido referências noticiosas, não vi na sua integralidade a resposta de Aguiar-Branco a Ferro Rodrigues, razão pela qual não a vou comentar. O que sei, porque isso todos podemos constatar, é que o atual PAR, Aguiar-Branco, não deu nenhum sinal público de entender que este caso devia mobilizar o seu dever de defesa do Parlamento. Não deu nenhum sinal público de entender a gravidade da calúnia contra um antigo PAR. Parece que tudo continua a caber na liberdade de expressão dos deputados. 

Como ontem disse no Parlamento a deputada do PS Isabel Moreira (ver notícia nesta edição), ao vivermos tempos em que, “em nome de uma falsa liberdade de expressão, se permite um palco de calúnia e difamação”, enquanto se apelidam de “fake news” notícias que incomodam, temos aí sinal de estarmos num “momento de degradação do regime”. 

Um sinal claro dessa “degradação do regime” é a incapacidade das pessoas que exercem funções da mais alta responsabilidade assumirem o cuidado que lhes é devido pela integridade das instituições. Trata-se da incapacidade para entender a qualidade especial das instituições humanas. Qualquer cidadão com 18 anos pode ser eleito deputado e qualquer deputado pode ser eleito presidente do parlamento, não é preciso pertencer a nenhuma casta de iluminados para exercer essa função; ser presidente do parlamento tão-pouco transforma essa pessoa num ser humano diferente dos outros, não se lhe pede que transcenda a natureza humana, nem que seja um super-herói. Mas a pessoa colocada nessa posição tem de assumir a especificidade da sua função. Exercer o seu papel. Especificamente, a segunda figura do Estado não pode colocar as outras dimensões da sua vida em prejuízo da sua responsabilidade institucional. Tem o dever de ver e ler as situações do ponto de vista da Constituição e da lei, que é o que conforma, neste caso, o seu lugar institucional, e não de qualquer ponto de vista particular. 

José Pedro Aguiar-Branco, mais recentemente, colocou outra pedra nesta degradação, ao proferir, numa reunião partidária, teoricamente à porta fechada e na prática audível para todos os jornalistas circunstantes, a consideração, noticiada e não desmentida, de que o Secretário-Geral do PS fez “pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos”. Pedro Nuno Santos respondeu com grande sentido de Estado e grande elevação, recusando que tal episódio prejudique as relações institucionais entre ambos, verbalizando até alguma compreensão pelo estado de espírito em que tão desastrado pronunciamento fora proferido. Louvo Pedro Nuno Santos pela elevação, mas isso não nos impede de afirmar, claramente, que um Presidente da Assembleia da República não deixa de o ser por se encontrar numa reunião partidária ou em qualquer outra reunião – e, portanto, não é admissível qualquer intervalo no decoro que deve praticar na sua relação com os deputados. Já não bastava o descuido em condenar que deputados insultem outros deputados, acresce um pronunciamento político desequilibrado, desajustado, injusto, acerca do líder do maior partido da oposição. 

Gritar pela liberdade não chega para ser democrata. Não é possível ser democrata sem defender as instituições próprias da democracia. É por isso que, se conquistámos a liberdade a 25 de Abril de 1974, só conquistámos a democracia, como regime, com a Constituição e com as instituições conformadas de acordo com a vontade popular expressa e com as regras legítima e legalmente consagradas. Gritar pela liberdade e manter-se passivo perante os ataques às instituições, ou, mesmo, minar por dentro o próprio funcionamento das instituições, não é um comportamento democrático. Vivemos tempos difíceis, também, porque chegaram às mais altas responsabilidades concidadãos que não têm a clareza destes pontos a guiar a sua ação. 

A defesa radical das instituições democráticas – radical, quer dizer, plena e sem tergiversação, sem cedência aos interesses partidários de curto prazo – é tarefa de primeiro plano na defesa da própria democracia. Que não nos cansemos de o defender e de o praticar. 

 

(Ligação para a publicação original: Por uma radical defesa das instituições.)

(A ilustração foi gerada por uma ferramenta de IA.)


Porfírio Silva, 15 de Março de 2025
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12.3.25

Como Montenegro derrubou o seu Governo (filme da crise).


Creio ser de interesse replicar aqui este texto, que fui buscar ao Acção Socialista, para não perdermos a memória de uma crise política evitável e detestável no momento vivido pelo país e pelo mundo. 

***

15 de fevereiro

A imprensa noticia a existência de uma empresa da família de Luís Montenegro que trata da compra e venda de imóveis: a Spinumviva. Sendo o primeiro-ministro casado em comunhão de adquiridos com uma sócia, a empresa continuaria na prática a ser sua e é lançada a suspeita sobre o conflito de interesses resultante da alteração em curso da lei dos solos (causa de demissão recente de um governante). O caso nasce por investigação da comunicação social, sem interferência de qualquer partido da oposição.

 

21 de fevereiro

Debate da moção de censura do censurável CH. Luís Montenegro defende-se das suspeitas que ligavam a empresa à questão da lei dos solos, excedendo-se em informações inúteis que favoreciam essa falsa pista e tentando evitar futuros esclarecimentos: “A partir de hoje, só respondo a quem for tão transparente como eu.” O PS ajuda a chumbar a moção de censura.

 

27 de fevereiro

Um semanário noticia que o primeiro-ministro recebe uma avença mensal de 4.500 euros de uma empresa que tem interesses que dependem de decisão governamental. Luís Montenegro, que tinha já revelado que pediria escusa quando interesses dessa empresa estivessem em jogo, confessa apreensão e anuncia um Conselho de Ministros extraordinário para o dia seguinte. A Spinumviva revela uma lista (parcial?) dos seus clientes.

 

1 de março

Luís Montenegro faz uma declaração ao país, sem direito a perguntas dos jornalistas, onde recusa qualquer conflito de interesses; anuncia decisões de uma empresa que pretendia não ser sua: passará a ser detida apenas pelos filhos e deixará de ter sede na sua residência. Anuncia que não dará mais esclarecimentos. Apresenta a hipótese de vir a apresentar uma moção de confiança. O PCP anuncia uma moção de censura e o PS, pela voz de Pedro Nuno Santos, informa o país de que não contribuirá para a sua viabilização e, volta a avisar com antecipação, votará contra uma moção de confiança. Posteriormente, o Ministro Miranda Sarmento declarará que duas moções de censura rejeitadas dispensam a moção de confiança…

 

3 de março

Tendo Luís Montenegro afirmado indisponibilidade para mais esclarecimentos, o PS não se conforma a essa recusa: anuncia uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Sendo potestativa, o PS pode configurar a CPI em termos civilizados (por exemplo, fez logo saber que não chamaria os familiares do primeiro-ministro).

 

5 de março

A moção de censura do PCP é debatida e, com a abstenção do PS, reprovada no Parlamento. O primeiro-ministro aproveita para voltar ao tema da moção de confiança, defendendo que eleições antecipadas são “um mal necessário”. O PS reafirma-se como principal garante da estabilidade nesta legislatura: evitámos a rejeição do programa de governo, viabilizámos o Orçamento, fizemos reprovar duas moções de censura. E lembra que há, hoje, mais razões para repetir o que dissemos desde a noite eleitoral: o PS não aprovará moções de confiança. 

 

6 de março

O Governo aprova a moção de confiança, que inclui uma linguagem fortemente agressiva para o PS, acusando-nos de “uma férrea vontade de aprofundar um clima artificial de desgaste e de suspeição ininterrupta”, de “atitude destrutiva”, de uma série de dúvidas “sem razão, nem sentido” – tornando difícil entender como se pode pedir ao PS que aprove uma verdadeira “moção de censura ao PS”.

 

7 de março

O Ministro Castro Almeida diz que o Governo pode retirar a moção de confiança se o PS desistir da CPI: destapa a intenção de conseguir do PS que desistisse de esclarecer a situação. O Ministro Leitão Amaro trata de voltar a dissimular a estratégia do Governo, desdizendo o seu colega.

 

10 de março

Na véspera do debate da moção de confiança, Luís Montenegro recusa retirá-la e declara que se recandidatará mesmo que seja constituído arguido, excecionando-se dos seus critérios anteriores. Algumas respostas de Luís Montenegro chegam ao Parlamento e confirmam: em todo o processo, nunca foi sua a iniciativa de dar esclarecimentos; respondeu apenas quando pressionado, sempre de forma parcial e incompleta. O PS avança com o requerimento para a constituição da CPI. A Comissão Política Nacional do PS expressa a união do Partido em torno do rumo traçado: não desejamos uma crise política, fomos os principais contribuintes para a estabilidade nesta legislatura, mas não é da natureza do PS temer eleições.

 

11 de março

No debate da moção de confiança, tendo anteriormente rejeitado o apelo reiterado do PS para a retirar, o PSD sugere conversas à porta fechada com o PS para resolver a crise (como se se esclarecesse o país à porta fechada). Depois, o Governo, que não tem legalmente qualquer poder para influenciar uma CPI, tenta negociar em direto um arremedo de mini-CPI e impor condições regimentalmente impossíveis (começou por propor uma CPI de 15 dias!) e, assim, procura que seja o inquirido a condicionar a inquirição. Evidenciam que a moção de confiança foi um estratagema para tentar condicionar o inquérito parlamentar. O Governo nunca responde à pergunta: “se querem mesmo evitar a crise, porque não retiram a moção de confiança, algo que está inteiramente ao alcance do Governo?”.


Luís Montenegro, que tem descurado as suas responsabilidades internacionais num momento de grande incerteza, lança Portugal numa crise extemporânea ao priorizar a sua circunstância pessoal. Parece querer evitar que se saiba qual a extensão e gravidade de uma situação em que, aparentemente, um primeiro-ministro em funções recebe, numa empresa do seu âmbito familiar, meses atrás de meses, pagamentos de empresas privadas com interesses que se cruzam com as suas responsabilidades governativas. O primeiro-ministro não entende que essa sombra tem de ser dissipada para poder continuar no cargo.


Na noite do derrube do Governo, o Financial Times dá a notícia com este título: “Portugal enfrenta novas eleições após a queda do governo devido a um escândalo de ética”.  A isto chegámos. O padrão anteriormente estabelecido era o de um primeiro-ministro que se demitia pela simples razão de ser citado num comunicado da PGR como sendo suspeito de algo que nunca chegou a ser consubstanciado.


Seguem-se, certamente, novas eleições legislativas antecipadas. Onde o PS tem a tarefa de fazer prevalecer a ética republicana e, ao mesmo tempo, contribuir para relançar um Portugal de futuro, mais focado em procurar, de forma sustentável, melhorar a vida dos nossos concidadãos.

  



(Ligação para a publicação original: Como Montenegro derrubou o seu Governo.)

(A ilustração acima foi gerada por Inteligência Artificial, a meu pedido.)

Porfírio Silva, 12 de Março de 2025
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11.3.25

Confiar no Soberano

21:37

Deixo aqui, para registo, o editorial que assino hoje, na qualidade de diretor, no Acção Socialista, no dia em que o Governo de Luís Montenegro foi derrubado por reprovação de moção de confiança na Assembleia da República.

***

Este Governo chega hoje à consequência lógica do modo como começou esta legislatura. É isso que resulta do debate da moção de confiança que Luís Montenegro apresentou para escapar ao escrutínio, ameaçando levar o país para mais uma crise política, num contexto nacional e internacional de enorme incerteza, sobrepondo a tática pessoal ao interesse do país.


A técnica da encenação que a AD escolheu como política para esta legislatura ficou bem exposta pelo primeiro-ministro logo no início do debate. Luís Montenegro avança com uma mistificação, dizendo que na Alemanha os socialistas (SPD) se juntam à direita (CDU) para barrar a extrema-direita e que em Portugal vão confluir com ela. A verdade é que na Alemanha prepara-se uma coligação, com a CDU e o SPD parceiros e com responsabilidades partilhadas na governação: negociaram o programa de governo, vão assumir responsabilidades em conjunto, vão prescindir de alguns pontos do seu ideário para convergir numa plataforma possível. E, sim, desse modo impedem o acesso da extrema-direita ao governo.


Não é nada disso que temos em Portugal. Por cá, este PSD nunca procurou qualquer entendimento sério com o PS. Por cá, este PSD raramente foi capaz, sequer, de um respeito democrático básico pelo PS. Luís Montenegro procurou apenas navegar no nevoeiro da incerteza que a extrema-direita introduz no sistema. Luís Montenegro levou o PSD a aproveitar para, depois, desprezar, tudo o que o PS lhe deu, à conta do respeito dos socialistas pelas instituições democráticas: deixar passar o programa de governo, viabilizar o Orçamento, reprovar duas moções de censura – e retribuíram com a sistemática procura de menorizar o PS.


A própria moção de confiança, que Luís Montenegro apresentou apenas como cortina para a sua falta de esclarecimento, é textualmente um ataque ao PS e à oposição em geral. E, mesmo assim, não se envergonha de exigir ao PS que vote a favor do que o Governo escreve contra o PS.


Chegamos aqui com a mesma atitude que o primeiro-ministro teve durante toda a legislatura. Luís Montenegro começou sem atender ao escasso apoio de que dispõe no Parlamento, começou substituindo o diálogo necessário pela arrogância, começou tentando enganar o país dizendo serem suas medidas tomadas pelo anterior governo, começou desmentindo pela prática as promessas eleitorais de que problemas importantes e complexos se resolveriam rápida e facilmente. E acabou pondo a defesa da sua circunstância pessoal acima do país, acima da estabilidade política, acima do seu próprio partido – tudo varrido pela submissão à circunstância pessoal.


O governo de Luís Montenegro chegou ao dia de hoje como começou: repetem, no debate da moção de confiança, que o país cresce mais do que a média europeia – mas esquecem-se de dizer que foi esse o legado que o PS lhes deixou; repetem que subiu o rating da República, graças ao bom desempenho das finanças públicas – mas esquecem-se de dizer que foi esse o legado que receberam dos socialistas; tentam interromper o debate da moção de confiança para substituir um debate parlamentar público por uma conversa privada à porta fechada. O país não merece isto. Os portugueses não merecem isto.


O PS não quis e não quer a crise política. Só que não é da natureza do PS temer eleições. Nunca o PS trocará os valores e os princípios por uma conveniência de calendário eleitoral. O PS nunca teme eleições, porque é o soberano que, em última instância, tem de decidir. E, hoje como sempre, o PS confia na palavra do soberano.



(Publicação original aqui: Confiar no Soberano.)


Porfírio Silva, 11 de Março de 2025
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10.3.25

A crise anunciada e os presidenciáveis

14:37


Esta crise política anunciada, que se deve inteiramente ao facto de Luís Montenegro querer usar as eleições como seu guarda-chuva privativo contra as consequências das suas trapalhadas, já serviu para nos mostrar alguma coisa sobre o leque de putativos candidatos presidenciais.


Todos os candidatos à Presidência da República de que se vai falando mostraram, na atual conjuntura, falta de visão – e falta de compreensão da Constituição. Ou, em alternativa, uma confrangedora falta de coragem.


Não tinham que se enredar em apelos melodramáticos ao entendimento entre partidos, apelos verdadeiramente vazios de conteúdo.


Só tinham de dizer uma coisa: se o governo cair por causa do comportamento do primeiro-ministro, o que um Presidente da República devia fazer era solicitar ao PSD, líder da candidatura que chegou à frente nas eleições, que indicasse outro nome para primeiro-ministro capaz de apresentar um governo a este Parlamento. Esse novo candidato a primeiro-ministro é que teria de tratar de passar no Parlamento.


Fugindo a dizer isto, todos os putativos candidatos a Presidente da República mostram que já foram anestesiados pela desastrada magistratura de Marcelo Rebelo de Sousa, que implementou um desvio continuado ao sistema constante da Constituição da República Portuguesa, tratando de “resolver” tudo com sucessivas dissoluções parlamentares e sucessivas eleições antecipadas. Uma conceção presidencial que desvaloriza o papel do parlamento, que trata de transformar a presidência num acelerador de todas as dificuldades do regime (já por falar demais, já por interferir demais, já por aproveitar cada nova situação para diminuir a sua própria margem de atuação) em vez de se manter como embraiagem capaz de regular o equilíbrio das forças – tornou-se, afinal, a fronteira que os candidatos a futuros presidentes não têm determinação para corrigir. À qual se acomodam. E assim se rebaixam à apagada e vil tristeza de um regime em rampa deslizante. 


Note-se que nada disto que aqui escrevo tem a ver com os interesses do meu partido, que até poderia não apreciar essa posição - ou sim. Que poderia achar-se prejudicado - ou não. Nada disto é uma leitura partidária: a um Presidente da República não cabe defender este ou aquele partido, por muito legítima que seja a sua posição; a um Presidente da República cabe defender as instituições. É nesse plano que Marcelo falha, é nesse plano que os putativos candidatos a suceder-lhe falham também.

Porfírio Silva, 10 de Março de 2025
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