02 dezembro, 2025

ICEBERG

Uso bastante o advérbio "porventura", tanto na escrita como na oralidade, mas estou seriamente a ponderar deixar de o usar. Como um pequeno bloco de gelo separado do principal, não vá o prefixo transformar-se numa preposição. 

27 novembro, 2025

MEIO INVISÍVEL

Os que vêem o copo meio cheio e os que vêem o copo meio vazio, partilham, sem saberem, uma coisa em comum: não ver um copo que está objectivamente a meio. O que não deixa de ser normal, pois, como nos aviões, o lugar do meio é desconfortável, nomeadamente no que diz respeito às virtudes, embora seja lá que ela se encontra.

26 novembro, 2025

PENSAMENTO MÁGICO

«Christoph Kolumbus era o barbeiro de Bloomfield. Fazia parte da bagagem de Bloomfield e aparecia sempre, no final, como reforço. Era uma pessoa conversadora e de nacionalidade alemã. O seu pai era admirador do grande Colombo e, por isso, batizou o filho com o nome do navegador. Mas o filho, com o grande nome de um homem célebre, era barbeiro.»

Quisesse Alonso Quijano ser apenas ele próprio em vez de D. Quixote e passaria despercebido pelo mundo. Ser pobre e vulgar não é risível. O que torna Quixote risível é a ilusão ou delírio sobre a sua identidade. O mesmo efeito cómico consegue Roth numa única linha. O que torna esta passagem letal não é o pai atribuir ao filho o nome Colombo. É ele ser barbeiro e parte da bagagem de um homem importante. A moral da história é fácil: ridicularizar o pensamento mágico. Neste caso, envolvendo a magia do nome. Mudando de cenário, podemos ainda ver o pensamento mágico como um imaginário elevador identitário. Ainda com o nome como recurso, quem diz Colombo diz Salvador ou Benedita para se transformarem num verdadeiro "Salvador" e numa verdadeira "Benedita". Mas também ir, no Verão, às praias dos ricos, para viver a ilusão de ser rico. Ou alguém que, não sendo rico, consegue ter dinheiro para frequentar os restaurantes dos ricos, comprar as marcas de roupa dos ricos, ou mesmo os carros dos ricos. Ou um jovem urbano acreditar que é artista só porque através das roupas, cabelo e óculos compõe artisticamente um ar de artista, tal como em tempos se acreditava que bastaria entrar num café com um livro debaixo do braço para se transformar num intelectual. Quixotes não faltam. E só não são risíveis, estando, ao contrário do original, protegidos dos olhares alheios, porque num mundo de Quixotes é tão cego o que vê como o que é visto. 

25 novembro, 2025

UN ANGE EST PASSÉ

 


Num teste sobre David Hume coloquei quatro imagens no enunciado: uma gaivota, o Taj Mahal, o teorema de Pitágoras e esta que aqui se vê. Não um, não dois, mas três alunos chamaram-me para perguntar o significado desta imagem. Expliquei, não se fez silêncio, mas não sem sentir um anjo a passar bem fundo na minha alma.

24 novembro, 2025

EM SURDINA

Na sexta-feira fiz três exames auditivos para me provarem o que há muito sabia: preciso de aparelho. Mas fatalidade que tenho vindo a rejeitar, uma clara escapadela ao choque da minha obsolescência e decrepitude. Eu sei, recusar o aparelho para fingir contornar o inexorável coloca-me no mesmo nível daqueles velhos com perucas ridículas, ou que pintam o cabelo de um preto tão carregado que transforma a cabeça numa estrada alcatroada, ou aquelas velhas que borram a cara com cremes, rimel e um baton tão forte que mais parecem saídas de uma pintura expressionista. Mas hoje voltei a ter o meu choque de realidade logo na primeira aula. Aluno: "Stor, o que significa............?" Eu: "Caramba, no 11ºano e não sabe o que significa indiferença?!" Aluno: "não, ...............?". Eu:" Indiferente!? Vai dar no mesmo, indiferença ou indiferente, qual é a diferença". Aluno: "Não, stor, ........................?". Lá tive que recorrer à estratégia habitual, aproximando-se do aluno. Eu: "Pode então repetir?" Aluno: "Inferência". Eu: "Ahhhh, inferência!". E pronto, eis o miserável pântano no qual me vou enterrando cada vez mais mais. Mas quero lá saber, continuarei a resistir enquanto puder. Há um romance de David Lodge cuja personagem principal sofre de surdez, sendo esse, aliás, o tema central do romance. Já o li há uns anos, mas lembro-me bem de ele dizer que, ao contrário da cegueira, a surdez é risível, produzindo efeitos cómicos. Quero lá saber, insisto. Sei pelo menos que a minha resistência, sendo meramente mental e não física, livra-me da triste figura dos velhos de peruca ou cabeça alcatroada, ou das velhas que parecem saídas de uma pintura expressionista.

22 novembro, 2025

TECNOFEUDALISMO

Atravessei ontem de comboio uma extensa porção de Ribatejo rumo à estação do Oriente. Esta é a época do ano em que está mais bonito, mais verde sob uma luz coada, muita água devido às recentes chuvadas. Como não poderia deixar de ser, aproveito os lugares livres à janela para os olhos fazerem da viagem não só um  meio, mas um fim em si mesmo, como no poema de Kavafis. Já depois de Santarém vejo um grupo de pessoas a trabalhar no campo, embora sem perceber o quê. Uma visão impressionista, sei apenas que, ali juntas e pelas posturas, estariam a trabalhar. Isto foi poucas horas depois de ter lido, lá pelas cinco da manhã, ao acordar, uma entrevista de Varoufakis, devido ao seu recente livro. Talvez por isso, e pelo que já me tinha apercebido à minha volta, olho, como num jogo de ténis, para as pessoas a trabalhar naquela arcaica paisagem e para o interior do comboio onde ia toda a gente de olhos pregados no telefone, excepto uma senhora a dormir o sono dos justos. Desta vez a viagem não foi apenas uma viagem no espaço, mas também no tempo, unindo num mesmo pontinho cronológico o passado e o presente.

21 novembro, 2025

ÁGORA AGORA

Numa certa rua de uma pequena cidade, que é a minha, por meríssima coincidência, encontraram-se três professores de Filosofia. A professora e um dos professores encontraram-se e ficaram à conversa. Logo depois aparece o outro, que era eu, formando-se um trio. Se naquele momento estivéssemos a ser observados (mas não escutados) por um extraterrestre com bons conhecimentos de história humana embora péssimo a Geografia, e também com uma péssima noção do tempo devido a padrões temporais muito diferentes dos nossos, iria muito provavelmente concluir que estávamos na Grécia Antiga. 

19 novembro, 2025

TAMPÕES


«Conheço Taddeus Montag, o amigo de Zwonimir, pintor de tabuletas, mas que no fundo é caricaturista. É meu vizinho, mora no quarto 705. Já estou aqui há meia dúzia de semanas e, ao meu lado, Taddeus Montag passa fome e nunca grita. As pessoas são mudas, mais mudas que os peixes [...].»

Houve um tempo em que era S. António a dar sermão aos peixes. Resultado de um processo evolutivo socialmente modificado, o que vemos hoje são bem nutridas petingas em solo firme e de cujas potentes goelas são expectorados estrepitosos e desconchavados sermões, enquanto os velhos Santo Antónios deste mundo, lutando contra as ondas, deixaram de se ouvir. Entretanto, tampões nos ouvidos aconselham-se, e não é por causa da água.

18 novembro, 2025

SONATA EUROPEIA


Ao contrário de Ulisses, tenho alguma dificuldade com os nomes das árvores. Daí não saber o nome das que povoam a minha rua e que agora a pintam de amarelo e de várias tonalidades de vermelho, nas copas e no passeio. É nesta época do ano que ao sair de casa ou a chegar me sinto verdadeiramente na Europa. Um sentimento espúrio, devo reconhecer, pois não é só na Europa que existem árvores assim, e porque também a Europa sofre com temperaturas escaldantes no Verão, incluindo no seu coração, que ficou politicamente conhecido como Mittereuropa. A Europa tem as quatro estações, calor e frio,  luxúria solar e penumbra, azul e cinzento. E foi mesmo durante o Verão que duas guerras mundiais, embora bastante europeias, tiveram o seu início. Em suma, racionalmente, não há nada que obrigue a ligar a Europa ao Outono. Mas é assim que a minha livre imaginação funciona, desejar que a Europa seja um continente outonal, a estação em que melhor reconheço as cidades europeias onde a sua história foi sendo feita. O que não falta na sua história são ribombantes momentos a fazer lembrar certas passagens de Wagner. Mas o que sobretudo consigo ver na Europa, o continente onde a história tem mais peso, é um longo e contínuo adagio através do qual um fogo, como archê heraclitiana, vai fazendo e desfazendo tudo o que nela emerge. A Europa é um continente de nascimentos mas, até mesmo por isso, é por excelência o continente das melancólicas despedidas.















Budapeste 2025

17 novembro, 2025

MUROS


Numa exposição de arte contemporânea, nada me levou a tirar o telefone do bolso para memória futura, o habitual neste tipo de exposições. Uma excepção: este breve texto logo à entrada. A minha primeira impressão, e que logo me levou a fotografá-lo para não esquecer, foi a da sua enorme beleza. Impressão que mantenho meses depois e a qual não quero justificar pois a beleza não carece de justificação. Porém, se quisermos desconstruir o texto, resolvermos ir até ao subterrâneo húmus que fez medrar a flor, poderemos dar com um sentido latente cuja carga patológica se sobrepõe à sua força poética. A patologia de quem, descobrindo-se apenas rodeado de silêncio, chilreios ou zumbidos, de flores, árvores e cheiros bons, continua a sentir dentro da sua cabeça o peso esmagador dos muros dos quais pensara ter-se libertado.

16 novembro, 2025

O FANTASMA DE CANTERVILLE

James Tissot, O Círculo da Rua Royale [1868]

Há dias, pus os alunos a fazer uns exercícios de Lógica. Aquele tipo de aula em que o professor anda a circular pela sala para ir dando apoio. Ao passar num corredor entre duas filas de carteiras, vejo um papel escrito no chão. Baixo-me para o apanhar, pergunto a quem pertence e de imediato uma aluna responde que a si, recolhendo-o com ar satisfeito da minha mão, mas sem sequer para mim olhar. Uns dez minutos depois estou a ajudar uma aluna quando cai um telemóvel da carteira atrás da sua. Baixo-me para o apanhar e a aluna recolhe-o apenas abanando a cabeça de um modo discreto, isto, para falar de um modo eufemístico. Não sei dizer se estas duas situações em tão curto espaço de tempo terão relevância estatística ou se se tratou de mero acaso. Mas se pensar na quantidade de vezes em que dou prioridade ao passar numa porta ou agarro a porta, mantendo-a aberta para quem vem atrás de mim, sem observar qualquer reacção, na quantidade de vezes que digo «Bom dia» ou escrevo um mail de trabalho (enviar documentos e assim) sem obter resposta, estou então inclinado a pensar que se trata de uma tendência. O que me faz sentir, apesar de não passar de um vulgar plebeu, um aristocrata ou burguês do século XIX deambulando meio invisível pelas escadas rolantes de um moderno shopping center do século XXI.

15 novembro, 2025

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL

«Acontece que admirei tanto as luvas em amarelo-canário de Alexander como o seu chapéu - olhando para esse homem ninguém pode duvidar que ele veio directamente de Paris e do sítio onde Paris é mais Paris.» 

Há imensos de lugares em Paris, os quais, sendo Paris, não são onde Paris é mais Paris, sítios iguais aos de tantas outras cidades. Se uma pessoa fosse levada às cegas para várias cidades europeias, ou mesmo mundiais, e depois lhe pedissem para adivinhar onde está, não iria ser capaz, visto ser igual a tantas outras. Mas também há em cada cidade lugares onde logo a reconheceríamos, e nem sequer estou a pensar na Torre Eiffel ou no Big Ben. Com uma pessoa passa-se o mesmo. Sabemos que o João é homem, português, engenheiro, benfiquista e gosta de Bacalhau à Brás. Mas ser um homem em vez de uma mulher não é a coisa mais original. Ser português também não. E há milhares de engenheiros, benfiquistas e apreciadores de bacalhau. Onde o João é mais João é na individualidade que o distingue de todos os outros, um conjunto de experiências, características e memórias que são só suas, das quais pode ou não gostar. O mesmo se passa ainda com os países ou culturas. Não haverá um meio-termo entre um nacionalismo ou etnocentrismo serôdio e delirante, e um vazio universalismo que tende a menosprezar uma identidade cultural? Como o João, que não é superior ou inferior aos outros, é bom entender o que Portugal tem de mais Portugal ou o Ocidente de mais Ocidente. Um útil exercício para nos defendermos, não de inimigos que venham de fora para nos destruir, mas do radicalismo, tanto à direita como à esquerda, de quem já nasceu português ou europeu, o qual, como um tumor maligno, mina a coesão social.

14 novembro, 2025

NEWSPEAK

Dizia Fradique Mendes que Lisboa é uma cidade traduzida do francês em calão. Cento e tal anos depois, nem se dá ao trabalho de a traduzir do inglês.

13 novembro, 2025

DIÓSPIROS

Diferente sorte tiveram as palavras pudico e dióspiro. A primeira, sendo grave passou a ser dita como se fosse esdrúxula. Já a segunda, sendo esdrúxula, passou a ser dita como se fosse grave, isto, com claro benefício para a primeira e prejuízo para a segunda. As palavras esdrúxulas têm uma esdrúxula beleza e algumas bem a merecem, como é o caso de pudico. O pudor é uma das grandes conquistas da humanidade a qual, graças a ele, ganhou elegância, delicadeza e sobriedade nos gestos, no rosto, nas palavras ditas e sobretudo nas não ditas. Daí que uma pessoa com esse atributo mereça ser considerada púdica em vez de pudica, ainda que seja esta a correcta. O que raio aconteceu para os dióspiros terem passado a diospiros? Pensemos no ridículo de belas palavras como Diógenes, Andrómeda, Orígenes, Antígona, Penélope, Eutífrone, Eurídice, Édipo, Perséfone, Átila, diâmetro, triângulo, antílope ou ópera, tornadas graves. Um horror, uma degradação do original. Lembro-me da sensação de estranheza ao ver pela primeira vez a palavra asfódelo. Mas de imediato me rendi à sua beleza fonética. O que seria se, desgraçadamente, a palavra passasse a grave como aconteceu com o dióspiro? Um horror ainda pior. Mantendo-se fiel ao original, continua assim digna de uma pintura de Khnopff ou pré-rafaelita, de um parágrafo de Huysmans, de um verso de Baudelaire, Mallarmé ou Pessanha. Há gente que olha com indiferença, ou mesmo desprezo, para as palavras. O que conta é comer o fruto, querem lá saber como se chama. Não é assim, até por uma questão de respeito para com a dignidade da coisa. A Leonor de Camões, a Beatriz de Dante ou a Simonetta de Botticelli seriam as mesmas com outros nomes, sobretudo horríveis? Não. O que é belo e bom merece uma palavra bela e boa. O que não veio a acontecer com os nossos dióspiros, esse sumptuoso fruto descido ao nível da mais desdourada das vulgaridades.  

12 novembro, 2025

CASTA DIVA



Bem sei que uma alegoria não serve para ser interpretada à letra (ou imagem). O que lá está não é bem o que lá está, mas um modo de facilitar a compreensão de uma ideia muitas vezes complexa. Quase sempre resulta, mas há situações em que pode complicar. Creio ser o caso desta Alegoria da Castidade, de Hans Memling [1475] na qual a castidade surge ferreamente protegida. Fosse eu e faria exactamente o inverso. Em vez de fazer depender a castidade de dois ferozes leões, um denso rochedo rodeado de água e elevado face ao nível do solo e do afastamento da cidade, poria, como aconteceu a Lady Godiva, a mulher nua na praça central da cidade diante dos olhares lúbricos da nobreza, clero e povo. Porque a verdadeira castidade está na consciência e quando esta está limpa bem se podem dispensar os leões, rochas, água e o afastamento dos homens.

11 novembro, 2025

NA MELHOR PAISAGEM CAI A NÓDOA

Tenho em casa uma bela vista, uma paisagem rural com serra ao fundo. Amiúde me ponho à janela a contemplá-la enquanto bebo café ou chá, ou deixo derreter lentamente um pedaço de chocolate negro. Há dias, a magnífica vista passou a ficar conspurcada por um enorme cartaz no qual um emergente político lembra que os ciganos devem cumprir a lei. O cartaz é duplamente violento. Esteticamente, no modo como interfere na melancólica fruição da paisagem. Mas também por me lembrar, não que existem demagogos e charlatães, pois sempre os houve e haverá, mas a famosa de Kraus «o segredo do demagogo é fazer-se passar por tão estúpido quanto o seu auditório, para que este imagine ser tão esperto quanto ele». Ideia profundamente irritante, a de me saber rodeado de gente estúpida, pior ainda quando, no recato doméstico, uma pessoa se aproxima da janela para fruir de uma bela paisagem.  

10 novembro, 2025

VENTURA, VENTURA, VENTURA

Ele adorava a América. Nos dias em que a ração era boa ele exclamava: América! Quando via um primeiro-tenente «fino», dizia: América! E como eu era bom atirador ele chamava aos meus tiros: América!

Tendo ontem chegado já tarde à estação do Entroncamento tive de pegar um táxi convencional por a Uber já não fazer serviço a partir de certa hora. Entrei expectante sobre o tempo que iria demorar o taxista a dizer mal dos pretos, ciganos ou imigrantes em geral. Não disse, mas há que refrear o optimismo. Nem um minuto demorou para começar a falar mal do Entroncamento, isto é, do que deveria ter sido feito pela anterior câmara, mais isto e aquilo de errado nos últimos anos para, logo de seguida, desabafar três vezes que do que o Entroncamento precisa é de políticos que gostem de Portugal e dos portugueses. Achei estranho ele não ter dito políticos que gostem do Entroncamento e das pessoas do Entroncamento, mas logo pensando tratar-se de um taxista e, como se isso não bastasse, de um dos três concelhos de Portugal onde André Ventura foi eleito presidente de câmara, passou a fazer todo o sentido.

08 novembro, 2025

GOYA REVISITADO


O sono da razão produz os seus monstros? Produz. Como o sono dos sentimentos associado ao excesso de luz também produz os seus. Porém, verdade seja dita, também pode produzir os seus anjos, como se pode constatar nesta fotografia de Robert Capa*. É de 1940, no México, e trata-se do regresso a casa de dois políticos regionais após uma ida à capital. Pois bem, alguém imagina dois políticos tão despidos dos seus habituais papéis para assumirem este íntimo, e até comovente, envolvimento físico entre ambos? Só o sono, o adormecimento, o desvanecimento da razão o poderia conseguir. Estes homens estão mergulhados nas trevas do sono com o benéfico efeito que podemos ver. Mas há a luz do dia à sua volta e, fosse de noite, certamente não iria deixar de haver uma luz de presença. E é assim que deve ser.

*A má qualidade da reprodução deve-se à má qualidade do meu telefone.

07 novembro, 2025

CONTRA-ILUMINISMO NA ESCOLA PORTUGUESA


A luta entre a luz e as trevas é eterna. Mais perto de nós, o momento mais significativo dessa luta foi a reacção contra-iluminista ao iluminismo do século XVIII. Ao que parece, as luzes da razão preparam-se para passar de novo um mau bocado, estando o palco da história a ser ocupado pela estupidez,  boçalidade e irracionalidade. Grave, muito grave, é ver a própria escola cúmplice deste processo. Daí custar a engolir ver todos os dias estes autocolantes junto ao bengaleiro nas salas de aula onde trabalho. Como é possível dizer a um jovem que a sua atitude conta, convidando-o a poupar luz? Como se não bastassem já as redes sociais, fora o resto.

06 novembro, 2025

O TAMBOR


«As pessoas continuavam a chegar  de Berlim e de outras cidades. Eram pessoas que falavam em voz alta, gritavam e mentiam aos berros para calar a voz da consciência.»

Dizia Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, mais conhecido por Barão de Itararé, que o tambor faz barulho mas é vazio por dentro. Ainda que fazendo a frase perder a graça, corrigiria a adversativa para a transformar em causal: o tambor faz barulho porque é vazio. E, já agora, quanto mais vazio mais barulho faz. O barulho é sem dúvida uma importante categoria política que revela uma enorme falta dela com o intuito de adormecer as consciências dos outros.

05 novembro, 2025

KITSCH NET

Diria que os repuxos em lagos estão para a natureza como os leões nos muros das casas do Portugal profundo para o gótico. Uma espécie de recriação fofinha da tempestade no mar apresentada por Kant como exemplo de sublime. Ideal, pois, para, em segurança, fazer mais umas selfies para o Instagram.

04 novembro, 2025

CHAPÉUS HÁ MUITOS


«Em toda a minha vida nunca vira um chapéu de feltro tão bonito, era uma maravilha, a cor clara, suave e terna do chapéu não se podia definir bem e, no meio, as dobras tinham sido cuidadosamente feitas. Se eu algum dia usasse este chapéu, sentiria repugnância em cumprimentar alguém, por isso perdoo a Alexander o facto de ele não cumprimentar as pessoas, só põe um dedo no chapéu, o dedo indicador, e faz continência como os militares quando correspondem aos cumprimentos de um cozinheiro militar.»

E quem diz o chapéu diz a cor da pele, a nacionalidade, o apelido, a profissão. Tudo chapéus que nos empossam de um estatuto que nos eleva tão acima do comum dos mortais que o corpo acaba por ignorá-los, obrigando apenas ao movimento de um dedo blasé. O mundo, na verdade, é um quartel, com os seus códigos bem estabelecidos e onde a farda anula o simples cidadão que, moral e humanamente, é apenas mais um, mas que dentro da sua consciência, e nem precisa de ser nas suas profundezas, consegue ser menos um. 

03 novembro, 2025

S. TOMÉ 2.0

Caravaggio | A Incredulidade de S. Tomé [1601]

Ver para crer? Não, e o nosso tempo empenha-se cada vez mais em mostrar que não. Não se trata de acreditar no que vemos, mas vermos no que acreditamos.

01 novembro, 2025

HALLOWEEN

Velázquez | Cristo Crucificado [1632]

O modo tão natural e sorrateiro que quase nem se deu por isso, como em tão pouco tempo passámos dos santos e bolinhos para as abóboras e bruxas, ou seja, de um imaginário cristão para um imaginário pagão, leva-me a desconfiar que talvez não tenha sido assim tão diferente a passagem do imaginário pagão para o imaginário cristão nos primeiros séculos do anterior milénio. A história é mesmo assim, não funciona por decreto (se bem que no caso da religião alguma dela tenha sido imposta aos respectivos povos), mas como um novo gás, invisível e inodoro, lentamente inalado, levando as pessoas a adormecerem com uma consciência para acordarem na manhã do dia seguinte já com outra. 

31 outubro, 2025

A CONSCIÊNCIA COMO CIÊNCIA PERENE


Quase tão inevitável como uma borracha cair para o chão se a largarmos foi ao ver a capa da revista Visão lembrar-me das fotografias de August Sander. Ele foi mais do que isso, mas o que tornou célebre foi a série de retratos de vários tipos sociais alemães ao longo do primeiro quartel do século passado. Embora vejamos pessoas, não foram pessoas que fotografou, mas grupos sociais: cozinheiro, polícia, professor ou agricultor. O mesmo se passa com estes jovens de um desses colégios nos quais a mensalidade pode chegar aos 2000 euros. O que sobretudo me instiga são, tanto as de ontem como de hoje, as suas consciências no momento da pose. Que certamente lhes dizem que não estão a ser fotografados porque, enquanto responsáveis pelos seus actos, se destacaram nalguma coisa que tivessem feito. No caso dos dois jovens, coisas como ganhar uma medalha desportiva, serem os alunos com melhor média a nível nacional, músicos, escritores, actores ou fazerem parte de uma organização com relevante intervenção cívica. Sabem as suas consciências que só são fotografados por serem ricos, ainda que nada tenham feito para isso, e que apenas o são porque assim nasceram, tão natural como a cor dos olhos ou do cabelo. O vestuário, decoração, contextos podem mudar, mas as consciências não mudam. As destes dois jovens não serão diferentes das dos privilegiados jovens de Sandel, ou do nobre que passava a cavalo por entre o miserável povo. O que também explica podermos continuar a ler obras do século XVI ou do século V a. C., percebendo claramente o significado do que dizem ou mostram.

30 outubro, 2025

MEIO CHEIO

Vivemos tempos propícios para lembrar aquela velha ideia de que a história não se repete, mas às vezes rima. Embora não altere a quantidade de água no copo, prefiro, em vez disso, pensar que a história às vezes rima, mas não se repete.

29 outubro, 2025

ENTRONCAMENTO




Durante muito tempo usei o táxi convencional para me levar da estação do Entroncamento até à terra onde vivo. Entretanto, passei para o Uber, e o benefício, sendo também financeiro, é ainda maior ao nível da minha saúde mental. Em vez de massacrado com raivosos ou insidiosos discursos contra os imigrantes, como se fossem cartazes sonoros, passei a ser conduzido pelos próprios imigrantes, o que me permite viajar, seja envolvido num repousante silêncio, seja ir sabendo coisas sobre eles e os seus países de origem, como se nesses momentos estivesse no Bangladesh ou qualquer outro país onde não há o perigo de darmos de frente com certos portugueses.

28 outubro, 2025

A VERDADE A QUE TEMOS DIREITO

Dizer a verdade é um dever se as pessoas tiverem direito a ela, Benjamin Constant dixit. O povo tem assim os políticos que merece, digo eu.

27 outubro, 2025

O LORNHÃO

 


«A Senhora Bernheim olhou para Paul, durante uns minutos, através do lornhão. Ele sabia que isso significava  a preparação da sua mãe para um «tema sério» e esperou.

-Agora estás com trinta anos, Paul - disse a Senhora Bernheim.

A menção dos seus trinta anos afectou-o dolorosamente, como se fossem um padecimento físico. Pois aí estavam, é claro, esses trinta anos, e ele a nada tinha conseguido chegar. (...)

- Nunca pensaste em casar? - perguntou a mãe, algo severa, continuando com o lornhão diante dos olhos.

- Onde é que há mulheres? - disse Paul.

- Há mulheres suficientes, meu menino, tens de olhar à tua volta.

Ela afastou outra vez o lornhão e deixou-o escorregar para a anca, como quem mete uma espada na bainha.»



A filosofia tem fama de difícil, embora popularizada com frases que brilham como néon: "Penso, logo existo", "Só sei que nada sei", ou ainda "O inferno são os outros", a qual, vinda da literatura (Huis Clos), tem a devida justificação filosófica em O Ser e o Nada. A senhora Bernheim com o seu lornhão é disso bom exemplo. Como bem poderia dizer Sartre, a senhora Bernheim olha com os olhos, mas com o  lornhão impõe ao filho o seu olhar. Um olhar que faz o filho ser olhado como uma pessoa apanhada a espreitar pelo buraco da fechadura. O seu eu inclina-se todo para fora, mas logo que o seu olhar é olhado por outro olhar, é obrigado a confrontar-se consigo próprio, revelando toda a sua vulnerabilidade. Este curto, embora tenso diálogo, é todo ele marcado pela implacável presença do lornhão: antes, durante e depois do discurso. Consigo perceber o alívio de Paul no momento em que a mãe larga o lornhão. Só que a espada já havia desferido o seu vulnífico golpe.  

26 outubro, 2025

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA POLÍTICA

Mesmo à minha frente, um fedelho dos seus quinze anos atira um pacote de sumo para o chão, com a agravante de tal ocorrer perto de um caixote do lixo. Advertindo educadamente o garoto, dizendo que a rua é de todos e que todos deverão mantê-la limpa, esclareceu-me que isso era problema dele e fazia o que bem entendia. Entendimento esse que já fará dele mais um viril ultraliberal em potência para juntar ao rol dos ungidos, mais um daqueles indivíduos, portanto, que pensam que mais do que pertencerem a um Estado o que conta é o verdadeiro estado desses indivíduos.

25 outubro, 2025

CONVULSÕES


«Sobre dois estrados situados frente a frente, os músicos desencadeavam-se. Não deixavam que surgisse uma pausa. Quando um tímido silêncio começava a desabrochar, após uma banda ter acabado um tango, a outra banda caía com um jazz em cima do minuto silencioso e esmagava-o entre o tambor e o saxofone. Os pares dançavam incansavelmente.» Joseph Roth, Direita e Esquerda


No famoso livro «O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu», do não menos famoso neurologista Oliver Sacks, são apresentadas duas mulheres idosas que têm em comum ouvir ininterruptamente música dentro das suas cabeças como se tivessem um rádio lá dentro, chegando a ter dificuldade em perceber o que lhes diziam devido ao barulho. Ambas as mulheres foram vítimas de convulsões lobo-temporais, uma devido a uma trombose numa zona do lobo temporal direito, a outra por causa de um raro fenómeno epiléptico. Sem epilepsias e tromboses, o mesmo se passa hoje com o mundo da informação no qual, como servos voluntários, nos vamos despenhando, mentalmente esmagados pelos factos, sejam estes megafactos, minifactos, microfactos ou pseudofactos, um mundo de permanente ruído, sem silêncio, descanso, beleza, lugar para a imaginação ou devaneio, para o prazer de retirar a ficha da tomada eléctrica que nos liga ao mundo onde nos calhou viver. Tal como naquele casino entre o tambor e o saxofone, nós, entre o rato e o comando, vamos sendo convulsivamente informados até adormecermos de vez.


24 outubro, 2025

MEIO CAMINHO ANDADO


 «Os nossos negócios são assim», disse Glanz. «O Böhlaug é um rico de coração pequeno. Veja como são as coisas, senhor Dan, as pessoas não têm mau coração, têm-no é pequeno, é um coração onde além da mulher e do filho não cabe mais nada.»


É caso para lembrar aquela divertida ideia de que, moralmente, só há dois tipos de pessoas: as más e as muito más, sendo as más aquelas que habitualmente consideramos boas. E que são, felizmente, a maioria. Aliás, a língua portuguesa tem uma expressão feliz, «Até nem é má pessoa», a qual indica quem não tem força suficiente para ser bom nem fraqueza em demasia para ser mau. Como o peão que fica parado a meio da rua, tão longe do passeio donde partiu como do que deseja alcançar. Não ser má pessoa é assim uma maneira simpática e indulgente de ser boa pessoa. O comentário de Glanz vai noutra direcção, mas só aparentemente. É verdade que apresenta um padrão quantitativo que justifica a dificuldade de sermos melhores com a pequenez do nosso músculo cardíaco. Fosse maior e seríamos melhores pessoas. Mas que de um modo realista também nos situa no nosso lugar natural, redimindo-nos do egoísmo, da indiferença face ao sofrimento alheio, da ausência de compaixão, apresentando a dificuldade em sermos melhores quase no mesmo plano da impossibilidade de estarmos em dois lugares ao mesmo tempo. E quem dá o que pode a mais não é obrigado.

23 outubro, 2025

MÁSCARAS

Català-Roca | Plaza del Callao [1953]

Seja diante de que imagem for (pintura ou fotografia), mas no caso desta fotografia é especialmente apelativo, podemos dividi-la em várias camadas de interpretação, como propõe o historiador de Arte Erwin Panofsky. Neste caso, o que logo vemos são os rostos humanos de um homem a ler o jornal e de uma rapariga com um livro de B.D. Mas se numa prova cega olhássemos apenas para os seus rostos misturados com os rostos de outras pessoas a verem televisão, numa rede social, a navegarem na Internet ou a jogar no computador, não saberíamos distingui-los nem o que estariam a fazer. Os rostos atentos destas duas pessoas são os mesmo rostos atentos das outras pessoas. Mas o que se passa nas suas consciências não é o mesmo que se passa nas consciências das outras. Este homem, num tempo em que nem sequer há televisão em Espanha, e muito menos Internet, teve que se dirigir a um quiosque e gastar dinheiro para saber o que se passa no mundo, sendo o valor que dá a cada notícia o mesmo que  se dá a cada garfada da comida minimalista de um chef, tal como a rapariga com o seu precioso livro. Eis assim duas consciências estrangeiras face às consciências de quem tem um rato para o infinite scroll ou comando para o infinite zapping, ou telefone, playstation, gameboy ou a própria Internet com centenas de jogos à mão de semear. Estes rostos são os nossos rostos, os humanos rostos de sempre. Mas as consciências por detrás deles já não existem, fazendo desses rostos máscaras cujo significado depende do tempo a que pertencem.

22 outubro, 2025

NUDEZ


«Chegou novamente o tempo dos emigrantes. Eles vinham em grupos, alguns sozinhos. Eram trazidos por caudais de água como alguns peixes em certas épocas do ano. Os emigrantes vão na enxurrada para o Ocidente, levados pelo destino. [...] Conhecem países estrangeiros e outras vidas e, da mesma maneira que eu, já despiram muita vida.»

Seria difícil aqui não pensar na queirosiana «nudez crua da verdade» sob «o mando diáfano da fantasia». Apresentar a vida como coisa que se despe remete, nalguns casos, para um strip-tease existencial, quando é a própria vida que se vai despindo diante de uns desprevenidos olhos que nada podem fazer a não ser assistir ao espectáculo. Já noutros, será a própria pessoa, com as suas inquietas e habilidosas mãos, que vai desvelando a nudez, tirando peça de roupa aqui, peça de roupa ali. Claro que as surpresas podem ser mais, ou menos, agradáveis e, muitas vezes, o que se esconde sob a roupa não é coisa bonita de se ver, como, de resto, mostra a história e as vidas de tanta gente. Tanta gente que nasce, vive e morre, e o que lhes ficou da vida foi uma nudez escondida por grossos e opacos mantos de uma fantasia que, não raras vezes, deixa também imenso a desejar.


21 outubro, 2025

FORA DE SERVIÇO

«Os seus olhos oblíquos focavam-se nas casas, nas tabuletas das firmas, nas montras das lojas, nas árvores à beira da rua, nos veículos e quiosques que, com o encerramento dominical, se assemelhavam a capelas desconsagradas e furtadas ao serviço religioso.»

Estranha-se, mas veja-se como um escritor austríaco de origem judaica, ainda para mais vindo da longínqua Galícia Oriental, ajuda a explicar, em 1929, por que razão, quase cem anos depois, os portugueses são maioritariamente contra o encerramento do comércio ao domingo. O que já não se estranhará é o facto de num povo tão religioso como o português se tratar de uma explicação religiosa. Haverá coisa mais desconsoladora para uma pessoa religiosa do que estar profanamente ante um templo desconsagrado? 

20 outubro, 2025

AS VOZES NO SILÊNCIO


«O mais agradável tempo de Primavera e uma fertilidade luxuriante espalhavam sobre todo o vale a sensação de uma paz revigorante, que o desastrado guia me estragava com a sua erudição, sempre a contar como Aníbal travou aqui uma batalha e todos os incríveis feitos de guerra que tiveram lugar neste vale. Com modos pouco corteses, admoestei-o por estar a lembrar-nos esses fantasmas do passado. E fiz-lhe ver que já nos chegava saber que de tempos a tempos as colheitas eram arrasadas, se não sempre por elefantes, pelo menos por cavalos e homens. Se ao menos não nos assustassem a imaginação e o seu sonho de paz com essas pelejas revisitadas»

Estamos tão habituados que já nem reparamos no que perdemos quando vemos um filme legendado. Por muito treinados que estejamos, é impossível não sacrificar o que se vê  para dar atenção ao que se diz. O mesmo vale para uma visita guiada, sendo muitas delas, infelizmente, obrigatórias, impedindo a pessoa de deambular livremente por um lugar, conduzida apenas pelos seus olhos. Não quero dizer com isto que não se aprendam coisas interessantes com o guia. Aprendem, e até se devem aprender. O que não é possível é ver, tal como deve ser visto, enquanto se aprende. São dois movimentos distintos, os dos olhos e o da mente, que se podem completar, mas não em simultâneo. Vê-se primeiro para aprender depois, ou aprende-se primeiro para ver depois, exercício hoje cada vez mais acessível, graças aos meios técnicos de que dispomos. A melhor experiência que tive no que a esta conjugação diz respeito foi na maravilhosa Cappella degli Scrovegni, em Pádua, para ver os frescos de Giotto. Só há visita por grupos (com marcação), com uma duração de 40 minutos. As pessoas entram para uma sala na qual se sentam a assistir a um vídeo de 20 minutos sobre a capela. Depois, entram nesta, ficando entregues a si próprios durante mais 20 minutos para ver o que quiserem e o tempo que quiserem, folheando com os olhos os vários capítulos desse grandioso e colorido livro de pedra que tanto dá que pensar. Mas em silêncio, tal como o vate alemão também gostaria de estar, sem ter que apanhar com Aníbal e respectivo elefante a ressoar dentro da sua cabeça.

19 outubro, 2025

OSTINATO RIGORE

 «Henry Bloomfield observa tudo com rigor, os seus olhos decoram o mundo» Joseph Roth, Hotel Savoy


Um quase berbicacho: os seus olhos decoram o mundo no sentido de o memorizar ou decoram o mundo no sentido de o embelezar? Quase berbicacho pois bem sei que surge no primeiro sentido. Aqui, nem sequer importa como está no original alemão, há, sim, que aproveitar esta feliz homonímia que pode suscitar confusão, ao contrário de outras como o canto da ave ou o canto da sala, ainda que o senhor Houaiss me explique que decorar (memorização) vem do latim cor, cordis, pondo o coração como sede da memória, e decorar (ornamentação), deve-se a decus, oris, ornato, enfeite. Portanto, raízes bem diferentes que dão origem a sentidos diferentes.

Acontece que os dois olhares, o que decora para memorizar e o que decora para embelezar, podem ser aglutinados, mesmo que o desígnio estético do segundo possa não existir no olhar neutro e frio de quem memoriza como quem lida com símbolos químicos ou capitais de países. Acontece que estes são entidades mentais, o que não acontece com uma sala ou uma paisagem. Quem usa clinicamente o olhar para memorizar uma sala ou uma paisagem, fá-lo com o mesmo olhar atento e estudioso de quem ornamenta uma sala, ou percebe o que há de ornamental numa paisagem. Um olhar preso a todos os pormenores particulares ou combinatórios do que há diante dos olhos. Quando, no olhar da arquitectura, acaba a técnica para dar lugar à estética, ou vice-versa? A língua alemã tem poderes fantásticos para se poder brincar com as palavras, não sendo isso razão para esquecermos os da nossa.

18 outubro, 2025

CORREDORES

Cada um aplica os critérios que bem entender, incluindo os mais complexos e sofisticados. Já o meu critério para avaliar o quanto gosto de um quadro é muito básico e devidamente adequado à minha básica natureza: quanto maior a dificuldade em sair da sua frente pendurado na parede do museu, maior é a minha forte adesão, ou para usar um termo mais radical, aderência, ao quadro. E quando por fim arredo pé, é afastando-me devagarinho, chegando nalguns casos a virar várias vezes a cabeça, como aqueles amantes que após se despedirem à saída de um café se vão beijando com os olhos até a esquina da rua os separar de vez. Com os livros acontece o mesmo. Um enorme pudor em voltar a pô-los na estante, uma inexorável pulsão para de novo folheá-los, seja para reler passagens do que é pecado ser lido apenas uma vez, seja pela pedrinha preciosa que pode ter escapado enquanto remexia o tesouro. Não dramático, apenas levemente melancólico, é saber que enquanto o livro continua na estante à distância de um braço, os quadros que vejo pela última ficam apenas guardados nos corredores de um museu imaginário que percorro levado por alguma memória e bastante esquecimento.

09 agosto, 2024

GATOS

Já adultas poderão ter cães ou gatos conforme as preferências. Mas para benefício da sua formação moral, uma criança deveria ter apenas gatos. Enquanto o fiel amigo é reverente, submisso, adulador, dependente e incondicional, o gato é distante, ensismesmado, livre e caprichoso, preparando a criança para aprender a persuadir, negociar (ceder), compreender a sua relativa posição no mundo e limitações da sua vontade e poder. Crescer com um gato é o melhor antídoto para o egocentrismo e a prepotência, um estímulo à delicadeza e subtileza dos gestos e da linguagem.

08 agosto, 2024

VOX POPULI

Analistas, jornalistas e intelectuais em geral, talvez não saibam, nem isso desejam, que ao chamarem, depreciativamente,  populistas a certos partidos e políticos, é o povo (populus) que acabam por mais menosprezar ou mesmo insultar. Isto, a fazer fé no grande Karl Kraus, que dizia que o segredo do demagogo (e esses políticos e partidos são os que mais, e até algo cientificamente, abusam da demagogia) é fazer-se passar por tão estúpido quanto o povo para que este se julgue tão inteligente quanto ele.

07 agosto, 2024

PRESENÇA

Diz Brigge que tem 28 anos e que praticamente ainda nada aconteceu. Pobre coitado, dirão uns, a quem muito aconteceu. Felizardo, dirão outros, a quem muito também aconteceu. E daí?, dirá talvez a maioria. Seguindo o poeta Manuel António Pina, as vidas dessas pessoas passaram e elas não estavam lá. No passado domingo, dois casais e três crianças faziam um piquenique à sombra de uma árvore no jardim.

06 agosto, 2024

BACHAREL

Diz-se ser a música de Bach a que mais se aproximaria da de Deus se Lhe desse para ser compositor. Sim, mas só no caso de ser o Deus de Espinosa. Fosse o de Moisés, Abraão e David, com a sua manifesta falta de jeito para a Geometria, não passaria do bacharelato, ficando bem mais próximo da bipolaridade romântica do século XIX e, no caso de se virar para a ópera, alternando entre as exaltações de Siegfried e as lágrimas de Mimi. 

05 agosto, 2024

REFUGIADOS


No penúltimo Correo del Artenewsletter semanal do El País, escrevia Ana Marcos, editora de cultura do jornal, sobre o grande potencial dos museus como refúgios climáticos. Dias depois vou dar com este cartaz à entrada de uma exposição. Entre muitas outras categorias, há quem goste mais de cães e quem goste mais de gatos, os que preferem a praia e os que preferem o campo, os que querem banheira e os que querem poliban. Pronto, uma nova dicotomia se anuncia: os refugiados em museus e os refugiados em centros comerciais, os que preferem sentir-se frescos diante de um Velásquez ou Rothko, ou a nova colecção da Zara. Na insuportável estufa em que o mundo se está a tornar, duas pessoas conhecem-se e uma das primeiras coisas que irão querer saber uma da outra é se são das que se refugiam em museus ou das que se refugiam em centros comerciais, vindo também a ser uma das principais causas de divórcio.